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Meditação: Autoconhecimento, Processo de Conhecimento e Sam dhi

Em todas as grandes tradições sapienciais do Oriente e do Ocidente encontramos a prática da meditação como exercício espiritual, de autoconhecimento, e de via para o conhecimento verdadeiro. Pelo menos seis tradições do oriente, Yoga, Vedanta, Budismo, Taoismo, Zen e Tantrismo, têm a prática da meditação como um exercício em busca do despertar, da liberação, da iluminação, satori, moksa, nirv na. No âmbito do Yoga, tradição hindu de autolibertação e de unificação com Bráhman, com o Divino, a meditação ocupa um lugar fundamental. As diversas práticas físicas ( sanas), os pr nayamas (práticas respiratórias), a ética do yoga (yamas e niyamas) têm o objetivo de preparar a pessoa para os níveis mais elevados da prática do yoga: praty hara (abstração dos estímulos externos), dh rana (concentração) e dhy na (continuidade da concentração sem distração). Removendo os obstáculos que estão no caminho, tornando a mente clara e dirigindo a consciência para o interior, o praticante pode atingir o estado de sam dhi, finalidade última do yoga. Este é o estado mais elevado da consciência em que o iogue vai-se fundindo com a Mente Universal e, depois, com a Consciência Universal, ou Super-Consciência, como é denominada por algumas linhas da Psicologia Transpessoal (ASSAGIOLI, 1988). O sam dhi do yoga, no budismo, é também conhecido como nirv na, ou mesmo como iluminação em outras tradições ou religiões. É o estado onde os praticantes de meditação estabelecem contato com as chamadas experiências místicas e espirituais. Nas religiões monoteístas, e principalmente no catolicismo, esse estado da consciência é geralmente chamado de estado de graça.

No Ocidente, nas últimas décadas, assistimos um crescente interesse pela prática da meditação, inclusive dissociada da sua filosofia de base, principalmente pela abordagem Corpo-Mente (GOLLEMAN & GURIN, 1997; DANUCALOV & SIMÕES, 2006). A meditação passou a ser um instrumento funcional ao homem, vinculando-se aos benefícios físicos e mais exteriores decorrentes da sua prática. A meditação é uma prática simples e ao mesmo tempo complexa, de grande significado para a evolução humana, que vai muito além da sua dimensão fisiológica e energética. A prática da meditação com fins terapêuticos parece

ser uma das possibilidades de uma medicina holística e integrativa, no entanto, não esgota as inúmeras possibilidades evolutivas que a meditação pode trazer para a humanidade.

O redescobrimento da meditação tem interessado o campo científico desde os anos sessenta, abrindo uma linha de pesquisa, que, embora focada em avaliações fisiológicas, cardiorrespiratórias, neuromusculares, metabólicas, eletroencefalográficas, tem o mérito de estar resgatando a filosofia oriental uma visão integral do ser, aproximando, assim, a razão ocidental da espiritualidade oriental. No entanto, corre-se o risco de nos fixarmos na sua face mais exterior e perder a sua essência, que é pertencente ao campo transcendental. Além desses benefícios mais exteriores, a meditação é um meio para a compreensão da própria mente, para alcançar a clara visão das coisas, para o aumento da sensibilidade, a conquista da calma e do desapego e o aumento da consciência. Lamparelli (1995) nos lembra que a prática da meditação é fonte de sabedoria (praj a) diária, pequenas iluminações, modos de ver o mundo e de interpretar os problemas cotidianos.

A meditação pode ser definida como um “trabalho sobre o ser”, uma cultivação da mente, uma técnica da consciência, um adestramento da sensibilidade, uma disciplina psíquica, que tem dois objetivos principais: a aquisição de uma maior consciência e a recuperação do senso de si mesmo continuamente encoberta pelas vicissitudes da vida e da atividade mental. Aqui, consciência deve ser interpretada com um estado da mente além da comum consciência automática, da reflexão simplista, uma verdadeira faculdade espiritual que supera os habituais modos de pensar e reagir. Com a emergência de uma nova consciência nasce a possibilidade de reinterpretar e reorientar as nossas experiências. Nasce a interioridade autoconsciente (LAMPARELLI, 1995).

A meditação é uma intensa experiência de estar no momento presente, de estar no aqui e agora, uma transcendência dos limites físicos, espaciais e da própria individualidade. Através da quietude do corpo físico, da respiração e da atividade mental, da suspensão temporária do ego, cria-se um estado interno de distanciamento, de atenção plena, de abertura, de receptividade, uma atitude não-reflexiva, não-racional. É neste espaço que nasce a intuição, a sabedoria, a revelação, a inspiração, o conhecimento direto da realidade, método amplamente praticado pelos mestres, iogues e sábios hindus da antiguidade e atuais. Conhecer a realidade através da meditação foi sempre o método privilegiado dos iogues hindus, os rishis. Assim foi que as grandes escrituras védicas foram recebidas em estados de profunda contemplação e introspecção. Trata-se de um conhecimento inspirado que não dispõe de termos intelectuais e filosóficos, mas encontra-se nele a língua de poetas e iluminados. Os hinos védicos são repletos de simbolismo e de mitologia que eram os veículos escolhidos

pelos rishis para a expressão das verdades espirituais mais profundas. Os sábios upanishádicos5 também se voltaram para a prática da meditação, ou adoração interna, (up sana) como meio principal para a obtenção do conhecimento transcendente (FEUERSTEIN, 2003).

Assim, a meditação é uma via de conhecimento: é no estado de sam dhi, “aquele estado contemplativo em que o pensamento colhe imediatamente a forma do objeto sem a ajuda de categoria e da imaginação, estado em que o objeto se revela ‘em si mesmo’, naquilo que há de essencial” (ELIADE, 2007, p. 76). Nesse momento existe uma coincidência real entre o conhecimento do objeto e o objeto de conhecimento. Segundo Paramahansa Yogananda (2001), “por meio das técnicas práticas de ioga o homem deixa atrás de si, para sempre, os reinos áridos da especulação e conhece por experiência própria a verdadeira Essência” (p. 248).

É no Yoga-S tras de Pata jali que se encontra uma descrição aprofundada sobre o sam dhi, o qual muitas vezes é tratado de maneira casual e imprecisa. A experiência de sam dhi é fundamental na prática meditativa, constituindo seu objetivo final e ao mesmo tempo processo experiencial que conduz ao sam dhi mais elevado, o dharma-megha- sam dhi. Sam dhi é definido por Taimni (2006) como um mergulho nas camadas mais profundas da consciência que progressivamente liberta a consciência das limitações. A palavra sam dhi não é usada para expressar um estado específico da mente, mas se aplica a uma extensa série de estados mentais superconcientes, os quais conduzem a um fim em Kaivalya, ou liberação. Existem diversos estágios de sam dhi, os quais serão brevemente descritos a seguir, com a intenção de esclarecer algumas características importantes para a compreensão da metodologia da pesquisa.

Os dois primeiros níveis de sam dhi são sampraj ta e asampraj ta sam dhi.

I-17 Vitarka-vic r nand smit nugam t sampraj tah

Sampraj ta sam dhi é aquele que é acompanhado por raciocínio, reflexão, bem- aventurança e sentido de puro ser. (Yoga-Sutra de Pata jali , TAIMNI, 2006, p. 36).

5 Grupo de estudiosos hindus que há três mil anos transmitia oralmente as Upanishads, textos que compõem os Vedas, e que constituíam uma sabedoria secreta na Índia antiga.

A palavra praj a, em sânscrito, significa a consciência superior atuando através da mente em todos os seus estágios, completamente isolada do mundo físico. Isto significa que nos diversos estados de sam dhi, a mente racional e o intelecto vão progressivamente sendo iluminados pela consciência superior, e dando lugar a um tipo de conhecimento não- racional, intuitivo, criativo, direto do objeto. O conhecimento, nos planos espirituais situados além do intelecto e do ego, não se baseia nem em inferência, nem em testemunho, apenas em cognição direta. “Nos planos superiores da consciência, cada objeto não é visto de forma isolada, mas como parte de um todo, em que todas as verdades, leis e princípios ocupam seu devido lugar. A consciência intuitiva é como um olho, que pode ver todo o céu simultaneamente e na verdadeira perspectiva” (TAIMNI, 2006, p. 103).

A diferença entre sampraj ta e asampraj ta sam dhi está na ausência de um objeto a ser conhecido (pratyaya). Em sampraj ta sam dhi há um objeto no campo da consciência, e a consciência é inteiramente dirigida para ele. Ocorre uma espécie de fusão, união entre o objeto a ser conhecido e o conhecedor. Todos os sentidos estão em estado de recolhimento, a serviço e em harmonia com a mente no estado de sam dhi, não ocorrem distrações, os sentidos reagem somente a este objeto em foco. É um estado sem esforço, a compreensão é tão imediata que não necessitamos mais pensar. Quando este objeto não está presente a consciência retrocede para o seu centro até que tende a emergir para um outro sampraj ta sam dhi. Estes são estágios em que se está plenamente consciente, uma condição dinâmica da mente em que a atenção dirigida na primeira fase é substituída por um vazio na mente no segundo estágio. No primeiro estágio a consciência pode conhecer o objeto que está no seu campo de iluminação e é uma condição para a passagem ao segundo estágio em que a mente fica suspensa no vazio, recolhida ao seu centro, e, em seguida, é transferida para outro plano superior. Pata jali classifica ainda quatro estágios de sampraj ta sam dhi, que se diferenciam por atividades diferentes da mente denominados, respectivamente, vitarka (raciocínio) vic ra (reflexão) , nanda (bem-aventurança) e asmit (puro ser). A discussão de cada um destes níveis foge ao escopo de nosso trabalho. É importante destacar, no entanto, que é um processo de progressiva expansão da consciência que leva a um conhecimento ampliado do objeto observado, integrando os diversos níveis de percepção e conhecimento. “Toda expansão da consciência faz com que ela veja maior riqueza, beleza e importância em tudo o que está ao alcance de sua percepção. Expansão da consciência significa inclusão de mais e mais e exclusão de nada” (TAIMNI, 2006, p. 151).

Antes de tudo, nós refletimos. Isso é chamado de vitarka. Feito isto, o próximo passo é estudar o objeto; isso é vic ra. Conforme o estudo pretendido fica mais refinado, subitamente a compreensão chega. Nesse momento experimentamos uma sensação de alegria profunda, que chamamos nanda, e sabemos com certeza que nos fizemos um com o objeto de nossa meditação – isso é asmit (DESIKACHAR, 2006, p. 177).

Pata jali diferencia ainda o sab ja sam dhi e o nirb ja sam dhi. O sab ja sam dhi abrange quatro estágios de sampraj ta sam dhi (sampraj ta-vitarka. sampraj ta-vic ra, sampraj ta-s nanda, sampraj ta-sasmit ), realizados em relação a algum objeto, o qual também é chamado de semente por ser comparado às diversas camadas que a recobrem. Por meio da técnica de sam dhi as diferentes camadas são conhecidas.

Cada estágio de sam dhi revela uma camada diferente e mais profunda da realidade do objeto... e o processo de aprofundamento talvez tenha que prosseguir, em certos casos, através dos quatro estágios, antes que a realidade última, oculta no objeto seja revelada (TAIMNI, 2006, p. 92).

O nirb ja sam dhi só pode ser atingido após o atravessamento de todos os estágios de sab ja sam dhi. Este é um processo em que o conhecimento do objeto vai sendo isolado dos conhecimentos prévios ou heterogêneos, que é chamado por Taimni (2006) de fusão seletiva em que “naturalmente todos os demais constituintes que dependem da memória desprendem-se, automaticamente, e a mente brilha apenas com o conhecimento puro do objeto” (p. 94). É a extrema tranquilização da mente que produz a separação dos diferentes tipos de conhecimento. Enquanto em sab ja sam dhi o processo é moldado segundo certo padrão determinado pelo objeto do conhecimento e pela vontade sobre a mente, em nirb ja sam dhi ocorre a supressão do objeto, dirigindo a luz que iluminava o objeto para a própria mente, estabelecendo o conhecedor no seu próprio Eu. Este é o último estágio de asampraj ta sam dhi, diferindo-se dos anteriores por não haver um nível mental mais profundo ao qual a consciência possa recolher-se. É nesse estado que a consciência alcança a fonte da Consciência Superior, ou consciência de Bráhman.

O alcance do estado de sam dhi não ocorre de forma espontânea, mas necessita de uma preparação que demanda esforço e disciplina. O praticante deve dedicar-se ao conjunto de práticas que geralmente incluem uma ética do yoga, a qual elimina as perturbações causadas pelos desejos e emoções; sanas, pr nayamas e kriya, que eliminam as perturbações provenientes do corpo físico; prathy h ra, que isola a mente dos órgãos sensoriais, isola o mundo externo e as impressões produzidas na mente. Somente com a mente tranquila é

possível iniciar a prática de dh ran e dhy na, que conduzem ao sam dhi. A concentração (dh ran ) da mente em um objeto de modo firme e ininterrupto, controlando as oscilações e distrações que podem surgir, levam ao estado de dhy na ou meditação. Somente com a conquista deste estado de autocontrole sobre a mente com o consequente recolhimento desta e de sua atividade subjetiva (svar pa) é que a prática de sam dhi pode ser iniciada.

Com o desaparecimento da função subjetiva entra em ação uma faculdade mais elevada que o intelecto, ocorrendo a percepção da realidade oculta por trás do objeto, por intermédio dessa faculdade que percebe se unificando com o objeto da percepção (TAIMNI, 2006, p. 223).

Iniciando em dh rana e terminando em sam dhi, todo o processo é denominado samyama, um processo contínuo sem qualquer mudança abrupta na consciência, cujo tempo para alcançar o estágio de sam dhi depende do domínio da técnica. Pode-se falar de aplicação de samyama a um objeto, os quais podem variar consideravelmente: uma pedra, uma fruta, uma rosa, um ser humano, a respiração, a própria pele, partes do corpo, um sentimento, uma emoção, uma mandala ou yantra, etc. É a aplicação de samyama a objetos cada vez mais complexos que conduz o praticante ao desenvolvimento de habilidades, poderes (siddhis) e estados mais elevados de consciência.

Josso (2004) propõe as práticas de relaxamento e de meditação como técnicas que possibilitam a relação entre atenção consciente e busca de conhecimento e dão acesso a uma via de conhecimento não-reflexivo que permite ao sentido emergir do silêncio do ego desta forma despojado das suas características psicoculturais.

Demetrio (2000) vê na meditação um passo essencial de uma educação à interioridade. Afastando-se das práticas meditativas do Cristianismo, do Islamismo, do Hinduísmo, do Budismo, do Hebraísmo, propõe a meditação autobiográfica, uma das três vias do que o autor denomina de meditações mediterrâneas. Um ritual de recontar sobre si mesmo em que com grande disciplina e fadiga o eu reconstrói a sua vida é arqueólogo de si mesmo. Quanto mais o recontar reconta o ser, a parte invisível, tanto mais toca a interioridade de quem reconta e escuta. O falar-se dentro, encontraria a própria dimensão pedagógica.

A meditação mediterrânea é uma forma de narração: a tradição mediterrânea, também meditativa, sempre se valeu de histórias. A tradição mediterrânea não busca a pura luz, que encontramos, por exemplo, em certas modalidades típicas do misticismo oriental, mas parte das histórias de vida, parte das histórias como estas se apresentam, com os sofrimentos, os prazeres, as dores, do simples gosto de descrever um evento, um objeto, uma sensação. É uma narração particularmente

poética, pois há o senso do efêmero, não foge da dimensão do efêmero como certas tradições místicas, mas sobre a vida, sobre os eventos existenciais, seja essa qual for... A nossa tradição mediterrânea atravessa o sofrimento, não remove o sofrimento, mas diz, “atravesso, percorro”. (DEMETRIO, 2000, p. 4).