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As virtudes na teoria bioética principialista

3. P RINCIPIALISMO

3.4. As virtudes na teoria bioética principialista

Apesar da predominância do principialismo, existem outras teorias que pretendem fornecer as bases do agir moral na ética biomédica, como é o caso da ética das virtudes. Essa teoria chama a atenção para o facto de conter argumentos fortes e de se apoiar na tradição aristotélica, sustentando, basicamente que não são os princípios, mas o carácter virtuoso dos agentes executores das ações que tornam possível em última instância, a moralidade destas.

Sob o ponto de vista das virtudes, enumeramos a competência científico-profissional, a consciência dos valores, a coerência no comportamento e na colaboração. É no momento operativo que se desenvolve a vida ética e se realizam os valores. O que é importante reter é que a operacionalidade da ação, quando conduzida de acordo com a coerência entre a competência específica e a consciência dos valores, torna ética, em primeiro lugar, a ação por si só, mas contribui para o enriquecimento quer do profissional, quer do doente, quer ainda da comunidade onde este está ou estará envolvido.

As dificuldades com as quais se depara o principialismo prende-se com o conflito que existe entre princípios diante de um dilema moral ou em relação à sua correta aplicação, atendendo à característica prima facie (ausência de hierarquia), não podendo, por isso, tornar um ato, só por si, moralmente correto.

São os próprios autores do principialismo (Beauchamp & Childress, 2001) que afirmam: ―frequentemente, o que mais conta na vida moral não é a adesão consistente aos princípios e regras, mas um carácter confiável, um bom senso moral e uma responsividade emocional‖ (p.26). Tendo em conta que os autores referem que os nossos sentimentos e preocupações pelos outros não raras vezes nos levam a agir de forma diferente da das regras pré estabelecidas, não podemos limitar a nossa ação a princípios e regras, pois há circunstâncias em que mais importante do que segui-las é ser-se um agente virtuoso, dado que a aplicação de um determinado princípio depende sempre das virtudes do profissional, como, por exemplo, da prudência.

Para Pellegrino e Thomasma (1988), o fim da medicina não é apenas o restabelecimento da saúde, do corpo, mas também a saúde psicológica e social. É nesse sentido que o profissional de saúde deve, também, procurar que o indivíduo retome a sua autonomia o mais precoce e eficazmente possível. Por essa razão, as diferentes atribuições de valores permitem compreender que existem diferentes tipos de bem, alguns mais importantes do que outros, permitindo, assim, hierarquizar os bens, de forma a evitar conflitos éticos na prática. A saúde incorpora, assim, outros valores, na medida em que há um conceito de bem inerente a ela, o qual interage com outros valores exteriores à prática meramente clínica.

Segundo Pellegrino e Thomasma (1988), o alvo da relação assistencial não é apenas chegar a um diagnóstico, testar uma hipótese ou avaliar a eficácia de um tratamento. Mesmo a saúde pública tem por objetivo a melhoria da saúde e a prevenção da doença das populações, o que, em última análise, irá beneficiar seres humanos individuais.

Relativamente ao facto de a teoria abordada por Pellegrino (2003) no livro ―A Philosophical Basis of Medical Practice‖, se concentrar demasiado na pessoa doente, esquecendo outros aspetos igualmente importantes, como os relacionados com a saúde pública ou a prevenção da doença, o próprio autor esclarece que o objetivo do seu pensamento foi desenvolver gradualmente um paradigma, uma filosofia da medicina que pudesse, por semelhança, ser aplicada à medicina comunitária, à medicina preventiva e às relações terapêuticas que também caracterizam outras profissões da saúde. Explica ainda

que, embora utilize a medicina e em particular a relação médico-doente como modelo de reflexão, o que classifica de medicina clínica, aplica-se igualmente a outras áreas da saúde. Como referiu Daniel Serrão (1995), a medicina é uma antiquíssima atividade humana que, no que lhe é essencial, não muda nunca; e o essencial é: um ser humano inquieto ou perturbado procura outro ser humano e pede-lhe ajuda.

Em Portugal, ainda é uso a leitura de uma versão adaptada do Juramento de Hipócrates para os médicos, o que denota a preocupação universal em reafirmar certos princípios de conduta na prática clínica, como a beneficência e a não maleficência. Importa, porém, não esquecer que os códigos éticos e deontológicos, apesar de importantes, têm um valor limitado, pois em última análise, dependem do carácter e consciência ética do profissional de saúde.

Jorge Cruz (2012), no seu livro ―Que médicos queremos‖, baseando-se em Pellegrino e Thomasma, busca a excelência da prática médica, sabendo que a medicina não é apenas o exercício profissional meramente técnico, mas que inclui também uma vertente ética, pois como refere, é uma responsabilidade que o clínico tem de saber assumir, nomeadamente tendo em conta todos os ensinamentos técnicos e também comportando-se como um ser humano virtuoso.

Para isso, Cruz (2012) procurou elencar oito virtudes essenciais que, segundo ele, devem caracterizar os profissionais de saúde, sendo ainda relevante que elas sejam ensinadas, aprendidas e apreendidas por cada um individualmente. Considera, tal como Pellegrino, a vertente eminentemente médica, podendo igualmente aqui o pensamento alargar-se às outras profissões da saúde, pois elas também contactam com o utente em situação de debilidade. Aliás, todos nós, de uma forma ou de outra, ao longo de todo o percurso da nossa existência, seremos utilizadores dos serviços de saúde, quer como cuidadores quer como promotores de saúde e também aqui poderemos fazer a pergunta que Cruz fez a si mesmo: ―Que médicos queremos?‖, podendo mesmo dizer-se: ―Que profissionais de saúde queremos?‖.

A virtude é uma disposição para se fazer o bem em função do bem maior do indivíduo, fruto da nossa ação, sendo, por isso, evidente que nem todas as virtudes são necessárias em todas as decisões.

No principialismo de Beauchamp e Childress, embora se reconheça a primazia dos princípios como orientadores da ação moral, as virtudes desempenham um papel importante. Atendendo a que os princípios necessitam de discernimento, responsabilidade e de julgamentos para serem seguidos, um profissional moralmente virtuoso será, concerteza, uma mais-valia para atuar irrepreensivelmente em defesa do indivíduo, sendo que a atuação correta, mesmo que exija um carácter virtuoso, é algo avaliado a partir do cumprimento dos princípios e regras deles derivados.

Para os autores, ―o carácter consiste num conjunto estável de características (virtudes) que afectam o julgamento e a acção da pessoa‖ (Beauchamp & Chidress, 2001, p.30), pois quando um indivíduo é levado a agir, fá-lo a partir das suas crenças, motivos ou emoções, as quais compõem o seu carácter e a sua personalidade e determinam o seu modo de atuar e juízos, tornando tanto a ação quanto o motivo desta um ato correto. Percebe-se aqui a influência aristotélica no tratamento das virtudes.

Respondendo um pouco às críticas que lhes são apontadas, Beauchamp e Childress (2001) argumentam: a ética das virtudes ―ajuda-nos a ver por que boas escolhas morais frequentemente dependem mais do carácter do que dos princípios, e também permite-nos julgar o carácter moral de uma pessoa de maneira mais rica que a que seria feita por uma ética de princípios e regras‖ (p.14).

Para o principialismo, as virtudes não têm valor por si mesmas, uma vez que não levam a atitudes corretas, mas têm valor instrumental, pois um indivíduo virtuoso tem naturalmente mais predisposição para seguir as regras adequadas a cada circunstância.

As características de um indivíduo virtuoso passam por: (i) compaixão, expressa pelo indivíduo na sua relação com os outros; (ii) discernimento, associado à sabedoria prática, que implica saber como e quais os princípios ou regras mais relevantes em determinadas circunstâncias; (iii) confiabilidade, que será a virtude mais importante, pois tudo decorre da

credibilidade, e a capacidade de transmitir e ganhar a confiança do outro faz-nos manter certas relações; (iv) integridade, que representa dois aspetos do carácter da pessoa: por um lado, a integração coerente das emoções e aspirações do indivíduo, por outro, uma atitude de confiança nos próprios valores; (v) consciência, que faz com que a pessoa atue de acordo com os seus valores, aqueles que considera corretos independentemente das pressões externas em sentido contrário.

É a partir das virtudes, que foram colocadas no segundo capítulo da última edição do livro ―Principles of biomedical ethics” (Beauchamp & Childress, 2008), mas não dependendo apenas delas, que se pode proceder a um agir correto, tendo em conta os princípios e as regras. Exigir que os autores sejam capazes de fornecer soluções para todos os problemas morais é exigir aquilo que nenhuma teoria é ainda capaz de conseguir.

O facto de esta teoria ser pluralista e ter campo de abertura para incluir outros princípios contribui para que ela seja flexível o suficiente frente aos avanços da ciência e da sociedade, num mundo decisivamente mais globalizado, onde a saúde é cada vez mais algo diferente da ausência de doença.