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Da tecnologia às ações com base na comunidade

5. N OTA C ONCLUSIVA

1.1. Perspetiva social da saúde Breve análise histórica

1.1.1. Da tecnologia às ações com base na comunidade

A OMS deixa espaço para um modelo social de saúde mais ligado aos direitos humanos. No entanto, o contexto histórico dificultou a implementação dessa visão e favoreceu uma abordagem mais baseada na tecnologia (OMS, 2005).

Muitos fatores históricos promoveram esse padrão. Um deles foi uma série de revoluções na pesquisa de medicamentos que ocasionou o desenvolvimento de novos antibióticos, vacinas e outros fármacos, o que influenciou os profissionais da área da saúde e o público em geral a acreditarem que estava na tecnologia a resposta para os problemas de saúde do mundo.

Esse avanço também proporcionou o surgimento da indústria farmacêutica moderna, que viria a ser não somente um fornecedor de benefícios e avanços científicos significativos, mas também uma força política cujo poder de lobby viria a influenciar cada vez mais o desenvolvimento de políticas nacionais e internacionais para a área da saúde, pois a necessidade da demonstração dos ganhos aqui e agora sobrepusera-se à consolidação de ganhos em saúde pela alteração de estilos de vida saudáveis (Osswald, 2004).

A má distribuição dos cuidados de saúde, por não prestar assistência aos mais necessitados, torna-se num dos determinantes sociais; contudo, o fardo da doença, responsável pela perda prematura de vida, advém, em grande parte, das condições em que as pessoas nascem, crescem, vivem, trabalham e envelhecem.

A saúde pública internacional da época era caracterizada pela proliferação de programas cujos ganhos em saúde fossem mais ou menos imediatos – campanhas de desenvolvimento tecnológico de curto espectro, que visavam doenças específicas. Esses programas eram considerados altamente eficientes e, em alguns casos, tinham a vantagem de tratar de objetivos facilmente mensuráveis (como o número de vacinas administradas, etc.). Contudo, devido à sua natureza, tendiam a subestimar o contexto social e o seu papel no bem-estar ou nas doenças. O foco de atenção, mais dirigido para os cuidados diferenciados, deixava a descoberto a maioria da população, especialmente as populações mais vulneráveis do meio rural.

O modelo de saúde pública dominante (baseado no atendimento médico) não dava cobertura às necessidades mais urgentes de populações pobres e necessitadas (fragilizadas socialmente). Por pura necessidade, as comunidades locais e os profissionais de saúde pública passaram a procurar alternativas às campanhas que davam relevância ao atendimento médico baseado nas cidades. Dessa forma, surgiu uma maior preocupação com as dimensões social, económica e política da saúde (Briz, 2009).

Os profissionais de saúde e líderes políticos juntaram as suas forças num movimento pioneiro que ficou conhecido como ―Programas de saúde com base na comunidade‖ (Community-based health programs) (Center for the Advancement of Community Based Public Health, 2000). Estas iniciativas consideravam a população como parte integrante no processo de procura de saúde, promovendo uma maior colaboração da comunidade no processo decisório relacionado com a saúde. Estes esforços de cooperação tentavam utilizar a perspetiva dos direitos humanos que relaciona a saúde com fatores económicos, sociais, políticos e ambientais mais amplos. Os determinantes da saúde decorrentes de fatores individuais (genéticos, biológicos e psicológicos) e de fatores ambientais, económicos, sociais e culturais, passaram a ser implementados, a nível nacional e europeu, com redes e programas focalizados em ambientes específicos. Tinham em conta situações do dia a dia, apreendidas através do processo de socialização e constantemente reinterpretadas e testadas ao longo do ciclo de vida e em diferentes situações sociais,

obrigando à implementação de estratégias de promoção da saúde, multisetoriais e multidisciplinares, compreensivas, diversificadas, continuadas e sujeitas a avaliação. Começou a atribuir-se menor importância à tecnologia de ponta. A dependência de profissionais de medicina altamente treinados foi minimizada. Ao contrário, pensou-se que profissionais de saúde comunitária, numa perspetiva dos cuidados de proximidade, poderiam prestar cuidados às populações para apoiá-las nos problemas mais comuns relacionados com a saúde, servindo como ―intermediários‖ no processo de procura de saúde de forma mais eficaz e assertiva. A educação em saúde e a prevenção de doenças estavam no coração dessas estratégias.

A assistência holística dessa época era realizada por ―um conjunto diversificado de profissionais dedicados à saúde numa perspectiva de proximidade, viviam nas comunidades às quais serviam, tinham particular atenção à saúde no espaço rural ao invés do urbano, enfatizavam os serviços de prevenção e não os de cura e utilizavam tanto medicamentos ocidentais quanto tradicionais‖ (Cueto, 2004, p.1867), num compromisso com a ciência mas não descurando a componente cultural das populações.

Em alguns casos, essas iniciativas enfrentavam não somente os determinantes sociais e ambientais da saúde, mas também questões relacionadas às estruturas político- económicas e às relações de poder.

―Essas metodologias de maior participação tornaram-se ferramentas úteis para populações carentes realizarem um ‗diagnóstico comunitário‘ dos seus problemas relacionados à saúde, analisarem a multiplicidade de causas e desenvolverem acções estratégicas para remediar os problemas‖ (Cueto, 2004, p.1872), de maneira inovadora.

Não raras vezes, essa perspetiva da saúde estabelece alianças informais entre programas de saúde baseados na comunidade tornando-se, com o tempo, verdadeiros movimentos interligando as agendas de saúde, de justiça social e de direitos humanos.

Em 1975, Kenneth Newell, da OMS, diretor da Division of Strengthening Health Services, publicou o livro Health by the people, defendendo um forte compromisso com a dimensão social da saúde, argumentando que há estudos que indicam que muitos dos

problemas comuns vêm da própria sociedade e que uma abordagem estritamente setorial é insuficiente, sendo que outras ações fora do campo da saúde têm um efeito maior do que intervenções de saúde por si só (Newell, 1975).

Nesse mesmo ano, a OMS e a UNICEF publicaram um relatório conjunto, examinando abordagens alternativas para se suprir necessidades básicas de saúde em países em desenvolvimento. Nesse relatório, eram sublinhados os problemas de programas verticais baseados em doenças específicas e no desenvolvimento tecnológico, que ignoravam a participação da comunidade. Enfatizava-se que fatores sociais como a pobreza, as habitações precárias e a pouca escolaridade, constituíam ainda as verdadeiras raízes da morbilidade em muitos países (Djukanovic & Mach, 1975).

Halfdan Mahler, um clínico geral dinamarquês e um veterano da saúde pública (eleito Diretor-Geral da OMS em 1973), foi um dos maiores defensores desse modelo de saúde. Mahler era um líder carismático com profundas convicções morais, para quem a justiça social era uma expressão sagrada (Cueto, 2004).

Dentro de um mesmo país, é possível encontrar diferenças dramáticas no campo da saúde, intimamente relacionadas com os diferentes graus de desfavorecimento a nível social, que não deveriam existir. Por isso, o tema da justiça social é de importância vital e afeta a forma como a população vive, a consequente probabilidade de doença e o seu risco de morte prematura.

Estas desigualdades na saúde, por certo evitáveis, surgem por causa das circunstâncias em que as populações crescem, vivem, trabalham e envelhecem, bem como dos sistemas implementados para lidar com a doença. As condições em que as pessoas vivem e morrem são, por outro lado, moldadas por forças de ordem política, social e económica (Marmot, 2000).

A expansão dos serviços básicos de saúde até às comunidades necessitadas, ações que tocam na questão dos determinantes não-médicos, foi importante para se superar algumas desigualdades de saúde existentes e para se alcançar a ―Saúde para Todos no Ano 2000‖, tal como proposto por Mahler na Assembleia Geral da OMS de 1976. Ele dizia que ―o

programa Saúde para Todos tem como premissa tanto a remoção de obstáculos para a saúde – ou seja, o fim da desnutrição, da ignorância, da contaminação de água potável e de habitações não higiénicas – quanto a solução de problemas puramente médicos (Mahler, 1981, p.8).