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Redes intergeracionais no espaço familiar

3. A F AMÍLIA

4.2. Redes intergeracionais no espaço familiar

A autoridade, a estabilidade e a vida de relações no seio da família constituem os fundamentos da liberdade, da segurança e da fraternidade no seio da sociedade. A família, comunidade onde, desde a infância, se podem aprender os valores e o uso da liberdade, constitui o lugar privilegiado de aprendizagem e fomento das relações de cooperação entre os homens. A vida da família é a iniciação na vida em sociedade, influencia a sociedade e é influenciada por esta. Desta interação deve resultar um

equilíbrio que confira estabilidade, realização pessoal de todos os seus membros e abertura a outras famílias e à sociedade em geral. A família representa e manifesta valores éticos e culturais de solidariedade, educação e convivência, essenciais para a humanidade, e as suas responsabilidades implicam um contributo ativo para o progresso e bem-estar de toda a comunidade.

As funções sociais e culturais da família são muito relevantes. Se outrora, a família teve um papel muito importante na instrução e educação das crianças, nos nossos dias, grande parte destas funções é confiada à escola e aos vários movimentos educativos ou de tempos livres que se ocupam dos jovens. Mas o papel da família permanece indispensável, sendo fundamental os pais reconhecerem a importância desses laços. O papel da mãe e do pai permanece indispensável, pois é no meio da família que a criança faz as aprendizagens sociais que permanecem ao longo da sua existência (Leandro, 2001). Estudos feitos em Portugal no domínio familiar, têm constituído uma valiosa aproximação a uma realidade tão complexa como é a das relações familiares, que têm uma expressão multidimensional, procurando evitar reducionismos deformistas. Segundo Viegas, Guerreiro, Lobo, Torres e Wall (1998) e Torres (1999), é desde os anos 70 que se operam profundas transformações na família portuguesa, que irão ter repercussões na saúde e na doença, bem como na prestação de cuidados de saúde aos seus elementos. Para melhor podermos compreender estas mudanças, importa referir que elas têm sido, ao longo dos tempos, um sinónimo de segurança e proteção, em qualquer tipo de sociedade, contra as agressões exteriores. É, no entanto, importante referir que ―o termo família é pouco específico e utilizado para identificar situações bastantes diversificadas‖ (Pimentel, 2001, p.83).

Ao longo das últimas décadas, a família tem vindo a sofrer grandes transformações ao nível da sua estrutura. Se, antigamente, era espaço privilegiado de solidariedade intergeracional, devido ao seu modelo de família alargada, hoje, está cada vez mais circunscrita a duas gerações (família nuclear). No modelo familiar alargado, a família garantia a proteção aos seus membros mais velhos até ao fim da vida, enquanto no

modelo de família nuclear, as pessoas idosas encontram-se muitas vezes sós, em casal, isoladas ou mesmo em instituições, nos últimos anos da sua vida.

No sentido mais imediato e em todas as épocas e sociedades, a família estabelece um sistema de parentesco fundado sobre os laços de aliança, no caso dos cônjuges, e dos laços de sangue, no que se refere aos ascendentes e aos descendentes. Em sentido restrito, trata-se de um grupo formado pelos ascendentes e descendentes, no caso da família nuclear. De qualquer maneira, trata-se de um conjunto de pessoas que partilham o mesmo espaço de vida e que se querem unidas para o melhor e para o pior. São, contudo, a organização, as suas funções e a distribuição dos papéis no interior deste grupo que têm variado ao longo dos tempos e dos contextos sociais (Leandro, 1995).

O modelo único de família está hoje posto em causa. Há autores que falam de um novo modelo familiar com características diferentes do tradicional. Toffler (1984), enumera duas ―vagas‖ culturais que geraram outros tantos modelos de família e adverte para uma terceira ―vaga‖ a constituir-se. A ―Primeira vaga‖, ou família tradicional, teria começado nos primórdios da humanidade e ter-se-ia estendido até ao século XVII. Classifica-se de tradicional, pois era na tradição multissecular que ela assumia os valores. Pode também chamar-se patriarcal por via da autoridade exercida pelo pater-familias, verdadeiro presidente, responsável e dono de todo o clã. A ―Segunda vaga‖, ou família nuclear, cujo nome provém da sua estrutura, dado que é constituída por duas ou três pessoas, surgiu no século XVII e chegou até aos nossos dias. Na sua base, encontra-se a cultura urbano- industrial, com o fenómeno que lhe anda associado: o urbanismo. A ―Terceira vaga‖, começa agora a consolidar-se na nossa sociedade, existindo em coabitação com a família nuclear. É constituída por formas atípicas, radicalmente diferentes dos modelos anteriores, tais como pessoas que vivem sós, por opção pessoal, casais que renunciam a ter filhos, famílias uno ou monoparentais, famílias agregadas, comunas, entre outras. Das alterações enunciadas, resultaram algumas transformações que vieram a refletir-se de forma mais negativa junto das crianças e das pessoas idosas, situando-se a mudança mais significativa ao nível dos idosos, nomeadamente a solidariedade familiar. Outrora, a saída dos filhos para casar não os desresponsabilizava face ao envelhecimento, doença e

necessidades dos seus pais. Hoje, uma grande parte dessa responsabilidade passou para o Estado e outros organismos de solidariedade. A crescente participação da mulher no mercado de trabalho e na vida pública, o aumento do número de divórcios, a diminuição da taxa de fecundidade, o aumento das uniões de facto e o aumento de nascimentos fora do casamento, contribuíram para quebrar a ―harmonia familiar‖ existente e dar origem a novos conceitos de família (Leandro, 2001).

A explicação para o aparecimento dos novos modelos de organização familiar, como são as famílias monoparentais, as famílias reconstruídas e os pares homossexuais, radica na crescente autonomia e liberdade individual no plano da vida privada e leva-nos à constatação de que se operam mudanças estruturais e socioeconómicas na sociedade portuguesa.

Atualmente, a família, por tudo o que foi referido anteriormente e ainda pela precariedade do emprego para muitos, pelas dificuldades na obtenção de uma habitação adequada às suas necessidades e pela insuficiência de apoios à retaguarda, vê-se confrontada com inúmeros constrangimentos para criar os seus filhos. Tais circunstâncias podem ser atenuadas ou agravadas, dependendo do facto de fazerem ou não parte do agregado familiar uma ou mais pessoas idosas, com menor ou maior grau de dependência.

A interdependência afetiva e a manutenção do bem-estar familiar são dois elementos essenciais à continuidade familiar. Os pais estão muito dependentes da afeição dos seus filhos e esforçam-se por os ajudar, o que muitas vezes dá um maior sentido à sua vida. As trocas são, de um modo geral, mais intensas de pais para filhos do que no sentido inverso. O consenso a respeito da satisfação e gratificação que a família transmite é quase absoluto entre novos e velhos, mulheres e homens, no campo e na cidade, em ricos e pobres, instruídos ou analfabetos, católicos praticantes ou ateus. Suporte, por excelência, da realização afectiva do indivíduo, a família é sentida e desejada, como verdadeira e única amarra que o prende à sociedade. (Pimentel, 2001, p.81) Um eventual jogo de interesses subjacente e a possível ausência de normas que permitam determinar quem, na rede de parentesco, tem o dever de cuidar, levam frequentemente a conflitos. ―Enquanto se trata de pequenas ajudas que não põem em causa os modos de vida dos indivíduos, não se verificam grandes dilemas, quando implicam uma maior

sobrecarga, coloca-se a questão de como repartir os encargos‖ (Pimentel, 2001, p.91). A opinião e a vontade do idoso são frequentemente ignoradas, o que lhe cria um mal-estar e um sentimento de incapacidade e de dependência face aos que o rodeiam.

A família e as alterações de comportamentos ao nível das relações familiares constituem um dos eixos problemáticos da emergência do problema social da velhice. A situação de reforma promove ou uma acentuação das relações familiares ou o isolamento.

Lentamente, a par com a emergência de sistemas de reforma inicia-se um processo de transferência de responsabilidades dos filhos para a sociedade, mais concretamente para o Estado, o trabalhador e a entidade empregadora, através de compromissos que adquirem formas variadas. Os filhos vão ficando dispensados do dever sagrado de cuidar dos pais. E, gradualmente, vão-se modificando a natureza e a intensidade dos laços que unem tradicionalmente as gerações. (Fernandes, 1997, p.14)

Os papéis dentro da vida familiar adquirem outra importância num contexto de reforma. Com os sistemas de reforma e a sua gradual generalização, a segurança na velhice deixa de ser um atributo exclusivo dos filhos. Geraram-se condições sociais que os descomprometeram do encargo dos seus pais. O declínio numérico e social das empresas familiares indica o desaparecimento de uma conceção inseparavelmente económica e moral da família, passando a haver ―a criação dos seguros sociais que tendem, por um lado, a fazer sair da esfera familiar privada o encargo económico dos pais idosos que se tornam então pessoas idosas sustentadas por sistemas de reforma obrigatória‖ (Fernandes, 1997, p.12).

O tipo de solidariedade que se estabelece entre pais e filhos depende não só do capital económico e emocional detido pelos primeiros, como também da trajetória social percorrida pelos segundos.

O espectro da desresponsabilização familiar é uma constante no discurso público das instituições de ação social e remete para um modelo ideal, intemporal e harmonioso de coabitação intergeracional. A família é considerada o lugar natural da pessoa humana. Nela, efetivamente, somos mais naturais, mais nós mesmos, conhecidos, sem máscaras sociais, pelos nossos defeitos e pelas nossas qualidades. Por isso, podemos observar no idoso uma dependência familiar que o torna particularmente suscetível a mudanças e

alterações no seu domicílio. Conhecer a família é, de alguma maneira, conhecer o passado e o presente dos nossos idosos, e assim poder projetar um futuro mais digno num ambiente harmonioso. Nessa linha de pensamento, inscreve-se o que afirmou o Papa João Paulo II, na sua carta aos idosos: ―para além de uma clara exigência psicológica do ancião, o lugar mais natural para viver a condição de ancianidade continua a ser aquele ambiente onde ele é ‗de casa‘, entre parentes, conhecidos e amigos, e onde pode prestar ainda algum serviço‖ (João Paulo II, 2000, p.13). O ideal é, pois, que o idoso fique na família, com a garantia de ajudas sociais eficazes, relativamente às necessidades crescentes que supõem a idade ou a doença.