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Para falar da bioética aplicada à saúde, é necessário relembrar o percurso histórico anterior à divulgação do próprio termo bioética: a ética médica hipocrática, a moral médica de inspiração teológica, a contribuição da filosofia moderna e a reflexão sobre os direitos do homem, sobretudo depois da segunda guerra mundial.

A ética médica hipocrática está espelhada no juramento que representa a expressão própria da cultura do seu tempo, de carácter pré-jurídico, que era, de algum modo, considerada acima da lei, pois a profissão médica estava envolvida num clima de transcendência, revestindo-se de carácter sagrado. O resultado dessa visão médica teria dado contributos substanciais para que houvesse um fundamento filosófico-teológico, a que hoje se daria o nome de paternalismo clínico, uma vez que não se tratava de defender a classe médica, mas de defender o doente através do princípio da beneficência e da não maleficência (Gracia, 2008).

Por outro lado, não se pode deixar de refletir na teologia cristã e nos seus contributos para a área da saúde. Essa contribuição começa, desde logo, com o estabelecimento do conceito de pessoa humana, considerada como um todo físico e espiritual. Durante vários séculos, a Igreja e a comunidade cristã asseguraram a prestação de cuidados, nomeadamente em relação à saúde pública, como um dever (atendendo à parábola do Bom Samaritano – Lc 10, 30-37). As diretrizes das diferentes confissões religiosas são objeto de atenta consideração, se não pelas convicções dos profissionais, pelas convicções dos utentes.

Temos, ainda, o contributo laico que se desenvolveu logo depois do processo de Nuremberga (1945-1946) onde, a propósito desses horrores nazis, foram desenvolvidas normativas, desde a Declaração Universal dos Direitos do Homem (ONU, em 10 de dezembro de 1948) e Convenção de salvaguarda dos direitos do homem e das liberdades fundamentais (Tratado de Roma, de 4 de novembro de 1950), que contêm afirmações firmes de salvaguarda da vida e de outras liberdades civis e políticas fundamentais, até uma vastíssima série de Declarações, Convenções, Recomendações e Cartas. ―Sabe-se que uma boa política exige hoje uma boa medicina, e que uma boa medicina requer uma ética sadia‖ (Sgreccia, 2004, p.13).

A bioética tem oferecido, por isso, subsídios teóricos e práticos para impedir que se desenvolvam conflitos de interesses a nível da administração da saúde pública. Por isso, torna-se imprescindível relembrar o que representa o sistema de saúde, visto que os seus princípios fundamentais da universalidade de cobertura, igualdade de acesso e integralidade na assistência, constituem princípios de alto teor bioético, que permitem estabelecer as bases de uma gestão moralmente legítima e socialmente aceitável.

Sabemos que a vida sofre os efeitos de uma contínua correlação entre o dado biológico individual de carácter hereditário e o ambiente ecológico e social…a saúde deve ser entendida como um equilíbrio dinâmico condicionado por quatro dimensões: a dimensão biológica ou física, a psicológica, a dimensão sócioambiental e a ética. (Sgreccia, 2004, p.13)

Limitar a liberdade individual para se ter a diminuição de doenças transmissíveis, ou racionar recursos que são sempre finitos, não corresponde, de uma forma linear, às bases filosóficas dos diferentes dilemas éticos da saúde pública, servindo apenas como linhas de recomendação.

Por isso, temos de nos consciencializar de que a superação de conflitos éticos é dinâmica e envolve uma ampla interação de necessidades, obrigações e interesses das várias entidades envolvidas: o governo, por ser o maior agente protetor e regulador, financiador e comprador; a indústria e os fornecedores, que exercem grande pressão inflacionária, para a incorporação dos seus produtos no mercado; as instituições e os profissionais da saúde, que pressionam pela atualização da sua capacidade instalada, variedade de oferta de serviços e

atualização técnico-científica; e os doentes, por exigirem, nem sempre com informação adequada e o necessário poder crítico ou de discernimento, o que se lhes apresenta como solução para o seu mal-estar.

Estes diferentes dilemas éticos recomendam que a comunidade científica se mantenha atenta e atualizada, nomeadamente à grande evolução da ciência relativamente aos inúmeros estudos apresentados.

A indústria farmacêutica visa construir remédios cada vez mais comerciáveis e com os quais possa conseguir mais lucros, enquanto não causam crescimento comercial aqueles remédios muito caros, mas que servem para o tratamento de doenças graves, embora de pouca incidência. O remédio mais ou menos eficaz para os resfriados de Inverno traz sempre mais resultado à indústria que a produção de remédios em geral que acabarão por ser usados por poucas pessoas, embora indispensáveis a elas…por outras palavras não é a saúde que orienta a farmacologia, mas ao contrário, com muita frequência, é a indústria farmacêutica que condiciona a pesquisa e a assistência médica. (Sgreccia, 2004, pp. 27-28) A biologia e a medicina são ciências experimentais, pois seguem um método bem preciso, o experimental, proposto por G. Galilei e por R. Bacon, sendo pouco a pouco aprimoradas pelos cientistas atuais (Sgreccia, 2002).

O método experimental baseia-se num itinerário preciso cujas etapas comportam a observação dos fenómenos, a hipótese interpretativa, a verificação experimental e a avaliação do resultado da experimentação. Esse percurso metodológico tem uma validade intrínseca própria, que permite o acumular de conhecimentos que, embora possam ser positivos ou negativos, são um contributo para o investigador que, ao seguir a mesma metodologia, pode apresentar novas contribuições.

O método experimental tem, no entanto, uma limitação, que é o facto de dever forçosamente apoiar-se em dados de ordem quantitativa, suscetíveis de serem observados, computados, comparados.

A ética, neste tipo de estudos, reduz-se, muitas vezes, à fidelidade às regras da pesquisa, tendo em conta o rigor metodológico, a exatidão da comunicação dos resultados, a transparência nos procedimentos, de forma a possibilitar o controlo por parte da comunidade científica. Outras vezes, a ética é tida em conta durante a investigação e na

aplicação dos resultados. Contudo, a ética não pode e não deve limitar-se a esses códigos de honestidade.

…o método experimental é, por natureza, redutivo do real, pois considera apenas o aspeto experimental e quantitativo, enquanto o aspecto mais profundo e compreensivo, a natureza ontológica e o valor axiológico do real escapam aos procedimentos do método experimental, o momento metodológico experimental levanta a pergunta ética, mas essa pergunta exige que se ultrapasse e se interprete coerentemente o nível experimental para abraçar a complexidade e profundidade do real, bem como o seu valor. (Sgreccia, 2002, pp. 63-64)

Tal reflexão corrobora o pensamento de K. Jasper (1991), quando refere que, por si só, a ciência experimental não é capaz de interpretar nem o aspeto qualitativo da realidade, nem a sua natureza e, por si só, não pode esclarecer os próprios fins em si mesmos da ciência exata e da sua pesquisa, pois tudo exigiria que se esclarecessem os fins das atividades humanas e da própria vida humana em si e no seu contexto. Será então necessário esclarecer quem é o homem, qual o seu valor, qual o seu percurso e qual o seu destino. E quando se aborda a temática alusiva ao homem enquanto homem, vai-se à procura do que é comum a todo o homem, como seja, a sua dignidade em relação com o outro homem e com o seu ambiente.

Definitivamente, a bioética relaciona-se com a saúde como uma visão holística e integradora, pois se considerarmos a saúde pública, verificamos ser:

…totalmente insuficiente a consideração científica unilateral na abordagem do conceito de doença, de saúde, de prevenção e assim por diante. A incidência de fator pessoal, psicológico e espiritual em todo o âmbito da assistência é elemento decisivo não apenas na avaliação do bem-estar do doente, mas também na avaliação do agente sanitário. (Sgreccia, 2002, p.65)

Na saúde pública, é imprescindível a educação para a saúde, a participação inclusiva dos cidadãos e exige-se o conceito de justiça na distribuição dos recursos e na oferta de estruturas e serviços de forma equitativa e proporcional, sendo de considerar que a ética da economia e a ética da saúde são concebidas como áreas interdependentes no plano social. Não podemos considerar a comparação de duas dimensões diferentes, como por exemplo, o gasto com uma determinada terapêutica e o valor da vida humana, que acabariam por assumir um carácter utilitarista, podendo induzir a rejeição de determinadas terapêuticas ou

tipo de assistência em função dos custos ou de um conceito de QV baseado simplesmente na avaliação de fatores biológicos ou económicos.

A saúde é um capital adquirido à nascença, sendo um direito e um dever a necessidade de criar mecanismos para a sua rentabilização, os quais devem minimizar os fatores de risco que possam conduzir à redução desse capital. Sabe-se, também, que a saúde, quer a nível individual quer a nível comunitário, reflete muitas das medidas noutros setores, sendo uma variável dependente do sistema social, económico e ambiental.

É, pois, importante observar que as condições de saúde não permitem uma avaliação satisfatória, se pensarmos nos recursos escassos e nos dilemas que no dia a dia se apresentam aos profissionais de saúde; estes princípios são tão evidentes que parece totalmente supérfluo referi-los.

Beauchamps e Childress (2001), no seu livro ―Principles of biomedical ethics”, elaboraram uma espécie de paradigma ético voltado para quem trabalha na área da saúde, com o fim de fornecer referências prático-conceptuais que os pudesse orientar nas situações concretas do dia a dia clínico, e é fundamentado em quatro princípios e interpretado à luz de duas teorias, o utilitarismo e a deontologia prima-facie. Esse paradigma ético constitui a base do principialismo.