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2. CAPÍTULO II – O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DO NEOLIBERALISMO

2.2. D ESENVOLVIMENTOS NACIONAIS DO PENSAMENTO COLETIVO NEOLIBERAL

2.2.4. Ascensão da Escola de Chicago

A chamada Escola de Chicago constitui uma referência fundamental na história do neoliberalismo. Ela ocupa um lugar central seja para as abordagens que consideram a política econômica, o projeto político classista ou a governamentalidade neoliberal. Naomi Klein (2008, p. 74), por exemplo, toma o departamento de economia da Universidade de Chicago como um dos “poucos ambientes acadêmicos tão profundamente mitificados”. No seu estilo jornalístico, ela mesma confere o tom mitificador ao dizer que “entrar ali significa alistar-se numa batalha” (KLEIN, 2008, p. 75), apoiada numa síntese de Gary Becker, um dos intelectuais mais proeminentes dessa Escola, que dizia: “nós éramos guerreiros em combate contra a maior parte dos outros membros da profissão” (ibidem).

Na narrativa de Klein, o departamento de Economia da Universidade de Chicago, comandado por Milton Friedman, era uma verdadeira “Escola de Pensamento”, a academia por onde passavam os “doutores do choque neoliberal”. Foi para lá que partiram estudantes do “Projeto Chile”, coordenado pela Administração para a Cooperação Internacional dos Estados Unidos e pelo departamento de economia da Universidade de Chicago. O projeto, lançado oficialmente em 1956, financiou estudantes da Universidade Católica do Chile com o “objetivo de produzir guerreiros ideológicos capazes de vencer a batalha de ideias contra os economistas ‘vermelhos’ da América Latina” (ibidem, p. 88), os famosos Chicago Boys70. Klein ainda informa que o programa foi ampliado em 1965, incluindo toda a América Latina, principalmente da Argentina, Brasil e México (ibidem).

É no próprio Gary Becker e na sua teoria do capital humano que, por sua vez, Foucault (2008) mira sua análise sobre o neoliberalismo americano. Essa teoria seria central para a tese de Foucault sobre o neoliberalismo como governamentalidade71. Isto é, para Foucault (2008, p.

310), de modo bastante sintético, o importante a destacar é que essa teoria consideraria o trabalhador como o próprio capital composto por suas competências. Desse modo, o indivíduo poderia conceber a si mesmo como uma empresa, o modelo de conduta das condutas da governamentalidade neoliberal.

Dada essa centralidade conferida à Escola de Chicago, é bastante oportuna e reveladora a análise que Rob van Horn e Philip Mirowski (2009) fazem do seu surgimento e das suas relações com o movimento transnacional do neoliberalismo. Os autores defendem que a identificação da fundação da Escola de Chicago com o economista Frank Knight, professor influente no departamento de Economia da Universidade de Chicago, é incorreta. E afirmam que esse erro leva a duas consequências: de um lado, desvia a atenção para o fato de que a fundação da Escola fazia parte de um projeto internacional; de outro lado, turva as linhas conceituais dos princípios deste neoliberalismo, tornando impossível uma compreensão lúcida das suas bases econômicas e políticas resultantes (HORN; MIROWSKI, 2009, p. 158).

Horn e Mirowski (ibidem) revisam a história da fundação da Escola de Chicago por meio de documentações arquivadas. A análise dessa documentação revela que o surgimento da Escola não esteve ligado ao domínio das ideias econômicas neoclássicas nos EUA, como defenderiam algumas concepções. Ao contrário, esse processo estaria relacionado a uma orientação política explicita. A tese central dos autores é a de que “o surgimento da Escola de Chicago deve ser entendido como um componente de um amplo e especifico projeto transnacional de inovação das doutrinas do neoliberalismo no mundo pós-Segunda Guerra” (ibidem, p. 140, tradução nossa). Além disso, teria uma grande importância para os esforços posteriores de validação científica do programa político neoliberal.

Os autores relatam em detalhes esse processo, que tentaremos apresentar resumidamente72. Na ocasião em que Hayek esteve em Detroit para o lançamento do livro The

Road to Serfdom, em 1945, ele faria contato com grandes empresários dispostos a financiar uma empreitada para derrotar o New Deal. O principal destes investidores seria Harold Luhnow, mantenedor do Volker Fund, um fundo filantrópico que durante mais de 30 anos (1932-1965) patrocinou intelectuais conservadores com objetivo de repensar as políticas liberais nos EUA.

71 Remetemos à seção 1.3.2 do Capítulo 1.

72 Ver HORN, Rob van; MIROWSKI, Philip. “The Rise of the Chicago School of Economics and the Birth of

Luhnow teria proposto que Hayek produzisse uma versão americana do seu livro, ao que este teria reagido propondo que fosse um trabalho coletivo realizado na Universidade de Chicago.

A sugestão de Hayek teria visado efetivar uma parceria com Henry Simons, professor na Faculdade de Direito daquela universidade. Simons teria bastante interesse no projeto que, então, teria se tornado inicialmente o centro de gravidade do novo grupo de Chicago, e ele teria nomeado como “Projeto Hayek”. Simons seria muito próximo do reitor da Universidade, Robert Hutchins, que não hesitou em apoiar o projeto. Em uma sequência de correspondências trocadas com Hayek, Simons teria concebido a criação de um Instituto, livre das querelas departamentais e das rígidas fronteiras disciplinares, que seria dirigido por Aaron Director73.

Para Simons, o Instituto deveria se preocupar, ao longo de vinte anos, com a publicação de materiais liberais, incentivar indiretamente a ação política e trazer professores visitantes para facilitar a discussão acadêmica. Na concepção de Simons, deveria estar “preocupado principalmente com a filosofia política e com os principais problemas práticos da política econômica” (In. HORN; MIROWSKI, 2009, p. 146, tradução nossa). Director, por sua vez, entenderia que o melhor seria planejar o médio prazo, no máximo dez anos, e com uma produção mais empírica para ajudar a “vender” o projeto e sustentar planos de longo prazo. No entanto, a recusa de Director para se mudar para Chicago exigiu mobilizações de Hayek e Simons para negociar o adiamento do projeto com Luhnow. Foi um esforço revelador da dedicação de Hayek em garantir um projeto que lhe parecia “uma das maiores contribuições na luta contra o mal que ameaça todo o gênero humano” (In. HORN; MIROWSKI, 2009, p. 149) e estaria relacionado à organização de uma sociedade internacional, que veio a se estabelecer com a SMP.

A negociação então teria avançado com maior participação de Luhnow no controle do projeto e com o aceite da Faculdade de Direito da Universidade de Chicago em acolher o Instituto, o que teria representado uma questão relevante para o subsequente desenvolvimento da Escola de Chicago combinando economia e direito. A partir desse momento o “Projeto Hayek” passaria a ser identificado como o “Projeto Livre Mercado” e começaria a ser esboçado por Milton Friedman. Essa nova configuração seria uma forma de Hayek acalmar as preocupações de Luhnow que estaria reivindicando a urgência de uma peça que refletisse a questão americana. O estudo procuraria defender o mercado como organizador mais eficiente

73 Este é o terceiro personagem-chave da história, além de Hayek. Director era formado na Universidade de

Chicago, mas passou a maior parte dos anos 1930 em Londres, onde fez contatos com Lionel Robbins e Arnold Plant na London School of Economics e onde também conheceu Hayek. Foi ele quem teria convencido a editora da Universidade de Chicago a publicar o livro de Hayek nos EUA (HORN; MIROWSKI, 2009, p. 147).

da atividade econômica, relacionar essa defesa à liberdade política e individual e apontar a regulação pública dos preços como a principal ameaça. Ele seria apresentado como um “estudo de um quadro jurídico e institucional adequado de um efetivo sistema competitivo” (ibidem, p. 152).

O suicídio de Simons, em 1946, teria sido apenas um episódio trágico que encerraria o projeto se Hayek não tivesse feito um novo esforço para convencer Director a assumir o projeto, em nome da memória de Simons. Com a concordância deste, os “termos” do acordo que envolviam a confirmação do financiamento do Volker Fund para a Faculdade de Direito da Universidade de Chicago e manutenção do projeto foram selados.

Estes termos também seriam determinantes para o desenvolvimento do neoliberalismo. Por meio deles, Luhnow, representado no comitê executivo do projeto por Leonard Read, um empresário de direita e organizador do think tank Foundation for Economic Education (FEE), exerceria influência política e filosófica sobre a produção intelectual em torno do projeto. Isto é, a criação da Escola de Chicago estaria comprometida com a perspectiva corporativa dos grandes capitalistas dos EUA. Neste sentido, a obra de Friedman, Capitalism and Freedom (1962), poderia ser entendida como a entrega daquele estudo e “uma versão neoliberal corporativa de Road to Serfdom” (ibidem, p. 166, tradução nossa).

Apesar de todo o empenho em transformar a Universidade de Chicago nesta peça fundamental do movimento transnacional do pensamento coletivo neoliberal, Hayek encontrou portas fechadas no departamento de Economia quando se interessou por dar aulas nos EUA. Ele também não foi aceito na Universidade de Princeton, que não queria se comprometer com o Volker Fund. A solução acabou sendo a participação em um comitê de Pensamento Social criado pelo reitor Hutchins especialmente para ele e financiado pelo Volker Fund. Milton Friedman, por sua vez, tornou-se a referência central da chamada Escola de Chicago à medida que o seu sucesso a tornava menos dependente da vinculação direta com Hayek.

A recuperação dessa memória sobre a fundação da Escola de Chicago é importante, portanto, para considerar este movimento, entre 1944 e 1946, e a preparação do encontro de fundação da Sociedade Mónt-Pelèrin, em 1947, no mesmo contexto. Foram dois acontecimentos marcantes e conectados que iniciaram a história do neoliberalismo no pós- Segunda Guerra. Além de partilhar diversos personagens centrais na organização da SMP74, a

própria inspiração epistemológica construtivista e metodologicamente transdisciplinar das duas iniciativas eram complementares.

74 Diversos membros da Escola de Chicago ocuparam as funções de presidente e tesoureiros da SMP. Ver

Nesse sentido, alguns temas deste pensamento coletivo neoliberal são relevantes em Chicago, como: a) as condições para o triunfo da ordem de mercado deveriam ser construídas politicamente; b) o neoliberalismo seria antes de tudo uma teoria sobre como o Estado deve ser redesenhado para garantir o sucesso do mercado e dos principais agentes econômicos, as corporações; c) o conceito de liberdade seria ressignifcado para expressar apenas a capacidade (subjetiva) de autorealização da vontade individual no mercado competitivo (HORN; MIROWSKI, 2009, p. 161, tradução nossa). Além disso, “foi a Escola de Chicago que inovou a ideia de que muito da política poderia ser entendido como se fosse um processo de mercado e, portanto, passível de formalização através da teoria neoclássica” (ibidem, p. 162, tradução nossa) e com consequências para as teorias democráticas.

Com objetivo de conclusão dessa seção, resumimos (Tabela 4) as principais referências do desenvolvimento do neoliberalismo nesses países a partir da proposta analítica de Mudge (2008):

Quadro 2: síntese do desenvolvimento do neoliberalismo nos primeiros anos pós-II Guerra75

“Escola”

Campo Intelectual Campo Político Campo Burocrático

Expressão do desenvolvimento dos temas teóricos relacionados ao programa de pesquisa do CWL e da SMP

Expressão das posições políticas (think tanks, grupos empresariais, partidos) sobre as questões relacionadas ao mercado e ao Estado

Implementação de políticas e esforços para realização do programa neoliberal Francesa Questão intervencionista: tensão entre os campos intelectual e político A partir do CWL, criação do CIERL, Louis Rugier, Jacques Rueff, Maurice Allais com posições anti- laizzesfairianas e anti- coletivistas Association de la Libre Entreprise (ALE) e radicalização da agenda pró-mercado livre. Participação de Rueff na política governamental, assessorando os planos econômicos Pinay-Rueff (1958) e depois com o plano Armand-Rueff (1959-1962) Inglesa Envolvimento com a política governamental e força do keynesianismo no campo intelectual desloca o neoliberalismo inglês para o campo político

Influência de Hayek, Lionel Robbins, Arnold

Plant e John Jewkes, membros da LSE, contra o

liberalismo social e o keynesianismo de

Cambridge.

A partir dos anos 1950 a maioria dos participantes foram figuras ligadas a grupos de pressão e think tanks,

como o Institute of Economic Affairs (IEA),

criado em 1955.

Coordenação da economia de guerra por Robbins e montagem do

quadro político que influencia os primeiros

governos do pós- Segunda Gurra.

Alemã

Permanência da Escola de Freiburg, reflexão dos intelectuais exilados e contexto pós-Segunda Guerra favorecem integração dos campos intelectual e burocrático

Escola de Freiburg e “política da ordem”, com

Eucken e Böhn; e sociólogos e a “questão social”, Röpke, Rüstow e

Müller-Armack

Não há uma referência relevante de ação diretamente nesse

campo

Papel central de Ludwig Erhard na implantação da “Economia Social de Mercado” Estadunidense Desenvolvimento marcado pela

articulação entre grupos empresariais e Universidade de Chicago

Criação da Escola de Chicago, com envolvimento central de Hayek, Simons, Director e

Friedman

Envolvimento determinante dos grupos

empresariais, especialmente o Volker Fund, e think tank como

o FEE.

Os neoliberais estadunidenses não

tiveram papel fundamental na implantação das políticas governamentais antes do

governo Reagan.