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3. CAPÍTULO III – O PENSAMENTO POLÍTICO DE HAYEK

3.2. F ORMAÇÃO DE UMA LINGUAGEM POLÍTICA NEOLIBERAL

3.2.3. Estado de Direito

Como vimos anteriormente na análise dos temas desenvolvidos em The Road to Serfdom, o Estado de Direito seria precisamente esse tipo de Estado regido pelo respeito intransigente ao princípio moral da liberdade individual, bem compreendida historicamente como a liberdade do domínio privado através do qual os indivíduos poderiam usar o seu conhecimento com vistas a seus propósitos. Do respeito a esse princípio moral, ou seja, de tomá-lo como norma de conduta geral, derivariam regras formais, abstratas e impessoais, ignorantes quanto aos efeitos concretos que poderiam gerar, que caracterizam a noção de Direito como Nomos.

É este o sentido que Hayek empregou e desenvolveu teoricamente em Law, Legislation and Liberty, distinguindo as Leis do Direito e as leis da legislação. À rigor, o termo Lei deveria estar reservado apenas ao primeiro caso. O que os distingue é exatamente que, enquanto nomos, as Leis do Direito expressariam a evolução não intencional da ordem social, estando baseadas nas normas de conduta gerais; enquanto a legislação seria a criação intencional de leis (thesis) que serveriam a propósitos específicos (idem, 1985a, p. 82 e ss.).

Hayek compreendeu toda sociedade como uma ordem configurada pela “correspondência entre as intenções e as expectativas que determinam as ações de diferentes indivíduos” (ibidem, p. 37, grifos nossos). A existência dessa ordem não significa, entretanto, que tivesse resultado de uma ordenação intencional ou uma organização (TAXIS), como um ato ou uma vontade – portanto, com um propósito específico – de criação externo ao sistema. Como vimos, ao contrário, sua perspectiva é que a ordem social resultaria de uma evolução espontânea, autogerada (KOSMOS), na qual aquela correspondência entre as intenções e as

expectativas seriam conduzidas a um equilíbrio interno a partir do respeito às normas de conduta gerais.

Em qualquer grupo numeroso de pessoas, afirmou Hayek (ibidem, p. 48), “a colaboração se baseará tanto na ordem espontânea quanto na organização intencional”. Isto é, sempre haveria grupos de pessoas que formariam organizações que levassem adiante propósitos específicos. Hayek situou, nesses casos, “a família, a propriedade rural, a fábrica, a pequena e a média empresa e as diversas associações, e todas as instituições públicas, entre as quais o governo” (ibidem). Mas elas estariam integradas numa ordem espontânea mais abrangente e a coordenação das atividades desses indivíduos e organizações seria produzida por aquela dinâmica de equilíbrio interno. O termo sociedade, portanto, seria usado para designar essa coordenação espontânea das atividades. No entanto, concretamente, os indivíduos participariam frequentemente de várias organizações e, consequentemente, formariam sociedades diferentes. Por isso, Hayek usou o termo Grande Sociedade para designar a ordem social mais geral (ibidem, p. 49).

A diferença fundamental, segundo sua filosofia do conhecimento, é que numa organização, determinada pela vontade e propósitos específicos, a complexidade estaria condicionada ao que a mente humana pode dominar. Uma ordem espontânea, por sua vez, seria distinguida porque seus aspectos concretos vão além do controle da mente humana; sua existência poderia se basear em relações puramente abstratas, ou seja, no caráter geral das normas que permitem aos indivíduos fazer face à incapacidade de controlar os aspectos concretos; e não possuem um propósito específico (ibidem, p. 40). Uma ordem espontânea, nesse sentido, só poderia evoluir se houvesse obediência de seus elementos a certas normas de conduta. Isto é, “a sociedade só pode existir se, mediante um processo de seleção, tiverem evoluído normas que levam os indivíduos a se comportar de maneira a tornar possível a vida social” (ibidem, p. 46), ou seja, normas que levassem os indivíduos a reconhecerem, num processo de seleção ou concorrência, a sua efetividade para o progresso da civilização.

Ainda que o sistema de normas como um todo seja resultante de uma evolução espontânea dos costumes e desse processo de seleção, Hayek (ibidem, p. 47, grifos nossos) ressalva que “o caráter espontâneo da ordem resultante deve, pois, ser distinguido da origem espontânea das normas nas quais se fundamenta”. Isto tem uma importância crucial para o entendimento da sua crítica ao laissez-faire, pois o que caracterizaria a norma adequada ao desenvolvimento da ordem espontânea seria o seu caráter abstrato e genérico e não a sua criação deliberada. Portanto, não poderíamos controlar o sentido da evolução da ordem social, mas com

o tempo aprenderíamos a aperfeiçoar as normas devendo criá-las para que auxiliem e facilitem o funcionamento dessa ordem (HAYEK, 1983, p. 87; idem, 1985a, p. 47 e 53).

Para Hayek, “o direito, no sentido de normas de conduta aplicadas, é indubitavelmente tão antigo quanto a sociedade” (HAYEK, 1985a, p. 82). Há, nesse sentido, uma integração entre o desenvolvimento da ordem social e o desenvolvimento do Direito, uma vez que seria a aplicação das normas de conduta gerais que permitiria a evolução da ordem social. Não se trata, então, da perspectiva de que primeiro a sociedade se constitui e, num segundo momento, se outorga suas próprias leis. “Só é possível um grupo de homens manter-se unidos através de relações ordenadas a que chamamos uma sociedade se os indivíduos observarem certas normas comuns” (ibidem, p. 110). Ademais, a legitimidade da autoridade estaria fundada nesse Direito e “só infunde obediência porque (e só na medida em que) aplica leis cuja existência se presume ser independente dela, leis fundamentadas numa opinião difusa acerca do que é certo” (ibidem, p. 111).

Mas se a evolução das normas que favorecem a ordem espontânea seria também resultado do aprendizado e do aperfeiçoamento deliberado, essa tarefa política de legislar caberia à jurisdição. A função dos juízes e dos especialistas em Direito seria exatamente a de se dedicar ao aperfeiçoamento do “sistema vigente pela formulação de novas normas” ibidem, p. 116). A tarefa de legislação não se confundiria aqui com a produção de atos visando propósitos específicos, o que seria um atributo do governo e deveria ser limitado ao máximo. Mas representaria a aplicação, correção e criação de normas de conduta justa, ou seja, aquelas que correspondem às legítimas e costumeiras ações dos indivíduos e que não causem prejuízo ou dano à liberdade individual e que, portanto, tem como única função “a de informar as pessoas sobre que expectativas podem ou não ter” (ibidem, p 118). Seriam normas que operam como guia para enfrentarmos a ignorância sobre os efeitos concretos das nossas ações, visando coordenar nossas intenções, e que assegurassem o estado de liberdade.

Como as normas de conduta poderiam distinguir as expectativas que são justas e legítimas das que não são? O primeiro critério seria o do caráter impessoal e genérico, que ignora os efeitos concretos ainda que possa frustrar algumas ou muitas expectativas particulares. O segundo critério seria que as expectativas que devem ser protegidas são aquelas que têm relação com os meios que permitem a todos buscarem a realização de seus próprios fins (ibidem, p. 120). Nesse sentido, a coincidência máxima das expectativas seria obtida pela definição da propriedade privada. Isto é, a demarcação da “gama de objetos que só determinados indivíduos têm direito de utilizar e de cujo controle os demais são excluídos”

(ibidem, p. 125). No sentido amplo do termo tal como definido por John Locke, segundo o qual a propriedade representaria “a vida, a liberdade e os bens”, para Hayek (ibidem) a propriedade

é a única solução já descoberta pelos homens para o problema de conciliar a liberdade individual e a ausência de conflito. Direito, liberdade e propriedade constituem uma trindade inseparável. Não existe direito, no sentido de corpo de normas universais de conduta, que não determine limites dos domínios de liberdade, estabelecendo normas que possibilitem a cada um definir sua esfera de livre ação.

Em síntese, como expusemos no princípio deste tópico, a propriedade privada estaria no âmbito da nomos, ou seja, no âmbito definido por normas de conduta justa que, não sendo criadas com um propósito específico, seriam a salvaguarda da liberdade e o princípio de progresso da civilização. Nas palavras de Hayek (ibidem, p. 126),

não pode haver mais dúvidas de que o reconhecimento da propriedade precedeu a formação até mesmo das culturas mais primitivas, e de que certamente tudo aquilo a que chamamos civilização evoluiu daquela ordem espontânea de ações que é possibilitada pela delimitação de domínios protegidos de indivíduos e grupos.

O sistema de normas de conduta justa criado politicamente a partir da legislação jurídica seria, enfim, o que se define como Estado de Direito, o único compatível com a sociedade livre, como Hayek antecipou em The Road to Serfdom. O núcleo da definição desse Estado seria, nesse sentido, a proteção da propriedade privada, como observância intransigente ao valor intrínseco da liberdade.