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2. CAPÍTULO II – O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DO NEOLIBERALISMO

2.2. D ESENVOLVIMENTOS NACIONAIS DO PENSAMENTO COLETIVO NEOLIBERAL

2.2.3. Ordoliberalismo alemão e Economia Social de Mercado

67 Ver PLEWHE, Dieter. op. cit. e também TRIBE, Keith. “Liberalism and Neoliberalism in Britain, 1930-1980”.

Nos anos do pós-Segunda Guerra e até a década de 1980, período no qual o liberalismo social predominou na tradição e na cultura política liberal, a corrente alemã do neoliberalismo certamente foi a que alcançou maior influência política. Como vimos, ainda que representantes centrais das correntes francesa (Jacques Rueff) e inglesa (Lionel Robbins) tenham tido uma importante participação ou exercido influência na política governamental, isso se deu num quadro mais geral de formação do Welfare State em que suas posições não eram dominantes68.

Além do mais, isso ocorreu às custas de divisões entre os campos intelectual e político, ou às vezes no interior dos mesmos, do neoliberalismo. Esse não foi o caso do neoliberalismo alemão que, pelas condições particulares da República Federal da Alemanha (Alemanha Ocidental), foram determinantes para a fundação do novo Estado alemão.

Segundo Dardot e Laval (2016, p. 101) essa corrente do neoliberalismo seria denominada como “ordoliberal” em razão da ênfase comum que os seus diferentes teóricos conferem à ordem constitucional e procedural que se encontra na base de uma sociedade e de uma economia de mercado. Apesar dessa ênfase comum, a corrente ordoliberal resultaria do encontro, que se aprofundou entre os anos 1920 a 1940, do pensamento e da ação de algumas figuras que não tiveram contato desde o início. Assim, normalmente o ordoliberalismo é esquematicamente dividido em dois grupos (DARDOT; LAVAL, 2016), que se complementaram no esforço político de construção do Estado alemão: de um lado, estariam os economistas e juristas ligados à Escola de Freiburg, entre os quais os mais importantes eram Walter Eucken e Franz Böhm; de outro lado, liberais de inclinação “sociológica”, principalmente Wilhelm Röpke, Alexander von Rüstow e Alfred Müller-Armack. O primeiro grupo dedicaria maior atenção ao quadro jurídico-político da economia de mercado. O segundo grupo estaria mais preocupado com o quadro social e moral que favorece a ordem de mercado (ibidem).

Ralf Ptak (2009) destaca que essa atenção à ordem jurídico-política e social do ordoliberalismo costuma ser erroneamente associadao a uma tradição estatal alemã e, quando comparado ao modelo anglo-saxão, definido como um modelo de economia de mercado coordenada. Essa associação refletiria a tentativa de identificar as relações entre o modelo da 68 Aqui o uso do termo nos parece exigir uma explicação. A abordagem de Gosta Esping-Andersen (2012[1990])

sobre as condições de surgimento dos Welfare State nos países capitalistas chama a atenção para a existência de diferentes regimes políticos de Welfare State, configurados a partir de uma determinada relação de força entre os grupos políticos vinculados ao trabalho e ao capital e da formação de coalizões políticas que os sustentem. Segundo a sua tipologia, o Welfare State inglês seria próximo de um tipo liberal e o francês se aproximaria de um tipo conservador. Essa abordagem política, embora não seja nosso interesse avaliar o seu mérito, permite conceber a atuação das correntes neoliberais na disputa em torno desses regimes.

“economia social de mercado” e as variedades de Welfare State, mas não seria capaz de explicar porque os sindicatos, os socialdemocratas e os comunistas lutaram contra os esforços para implantá-lo ou porque Thatcher reivindicaria esse modelo para a sua gestão e Friedman o recomendaria ao Chile de Pinochet (PTAK, 2009). O próprio Hayek diria que o uso do termo “social” causaria confusões, mas é claro sobre o sentido da expressão “economia social de mercado”: (1985 [1976], p.100): “lamento empregar essa expressão, embora por meio dela alguns amigos meus pareçam ter conseguido, na Alemanha [...] tornar agradável a círculos mais amplos o gênero de ordem social que defendo”.

Apesar da influência que essa tradição estatal alemã exerceria no ordoliberalismo, ele seria substancialmente mais próximo de outras matrizes do pensamento neoliberal e teria contribuído para a evolução internacional do neoliberalismo de forma mais relevante do que como mera reiteração de uma concepção alemã paroquial do Estado (PTAK, 2009). A distinção que Foucault (2008) faz entre o ordoliberalismo e o neoliberalismo austro-americano não apaga o seu entendimento de que ambos seriam formas de neoliberalismo. Mas a referência de Hayek é um importante exemplo da ênfase nos elementos comuns entre elas. Mesmo que as duas correntes tenham divergido nas discussões do CWL69, elas compartilharam a mesma visão

sobre o mercado concorrencial e o mesmo esforço comum de construir uma ordem política baseada nele.

Segundo Ptak (ibidem), no final dos anos 1920 e ao longo dos anos 1930, Eucken, Röpke, Rüstow e Müller-Armack publicaram artigos nos quais polemizam com a acusação de que as falhas do mercado teriam sido responsáveis pela crise. Para eles, a crise não provaria a ineficácia do capitalismo de mercado, mas resultaria, ao contrário, de uma insuficiente compreensão sobre o papel do Estado. O liberalismo clássico teria negligenciado a ordenação política do mercado, ou seja, como afirma Eucken (1948 apud DARDOT; LAVAL, 2016, p. 104, tradução dos autores):

os clássicos reconheceram claramente que o processo econômico da divisão do trabalho impõe uma tarefa difícil e diversificada de direção [...] viram que esse problema somente poderia ser resolvido por uma ordem econômica adequada [...] apesar disso, a política econômica [...] não foi suficientemente orientada para o problema da ordenação. Os clássicos viam a solução do problema de direção na ordem “natural”, na qual os preços de concorrência conduzem automaticamente o processo.

Com essa negligência os princípios da ordem liberal teriam sido enfraquecidos diante da combinação da democracia parlamentar e do Welfare State (PTAK, 2009). Isto é, essa

combinação favoreceria a captura do Estado por interesses que resultavam em intervenções nos resultados do mercado. Assim como para Carl Schimitt, desde 1929 o problema para Rüstow era o de como fortalecer a atuação estatal contra a democracia parlamentar (ibidem).

Como Foucault (2008) aponta, os ordoliberais procuraram demonstrar essa tese através da experiência nazista, argumentando que toda intervenção daquele tipo levaria a esses resultados catastróficos. Portanto, para eles, o problema político era o de alterar os termos em que o liberalismo clássico abordou a economia de mercado: ao invés de estabelecer o limite da liberdade de mercado, através da separação entre o domínio público da política e o domínio privado da economia, a questão agora era a de “adotar a liberdade de mercado como princípio organizador e regulador do Estado, desde o início da sua existência até a última forma das suas intervenções” (Foucault, 2008, p. 158-159).

Assim, a “economia social de mercado” constituiu um programa que articulou os princípios ordoliberais aos desafios políticos de fundar e legitimar um novo Estado (PTAK, 2009; DARDOT; LAVAL, 2016). Ela seria uma “política da ordem” no sentido dos ordoliberais da Escola de Freiburg, ou seja, presumiria uma forte intervenção do Estado para criar e manter a ordem competitiva do mercado capitalista. Ao mesmo tempo, ela compreenderia o problema da coesão social como uma questão de primeira ordem na Alemanha do pós-Segunda Guerra. Nesse sentido, se apoiaria particularmente em Röpke e Rüstow e suas concepções sócio- políticas da ordem de mercado como uma combinação dos mecanismos concorrenciais do mercado com o conservadorismo político-cultural. Diante da crise social, a estabilidade e a segurança das classes médias e populares seria resolvida por meio de uma reintegração social dos indivíduos que se baseava no incentivo à pequena e média empresa, na pequena agricultura, nos valores morais e na hierarquização das esferas sociais que vêm da tradição católica. Essa seria uma maneira de enfrentar as forças centrífugas do mercado sem oferecer o flanco ao crescimento da assistência social, do sindicalismo e da socialdemocracia.

Segundo Ptak (2009), a implementação desse programa político tornou-se possível em razão de uma convivência – e em alguns casos de uma colaboração! – com o partido Nazi. Apesar do exílio de Röpke e Rüstow, Eucken havia se tornado professor em Freiburg já durante a Era Nazi, lá permaneceu e mantinha contato com os dois primeiros. Nesse período, Ludwig Erhard, um especialista em microeconomia e consultor do governo, começou a desempenhar um papel importante na promoção do ordoliberalismo. Ele se tornaria o responsável pela administração econômica na área de influência norteamericana e britânica, a Bizona, e, a partir de 1951, o ministro da Economia responsável direto pela implementação da “economia social de mercado”. Fundamentalmente, a permanência na Alemanha – e sobrevivência – durante a

Era Nazi teria permitido a esses intelectuais ordoliberais manter a elaboração e conferido vantagens no esforço de reconstrução do Estado alemão.

Por fim, destaca-se ainda que a implementação desse programa seguiu um esquema metódico, mas não dogmático, de realização da política neoliberal. Conforme Ptak (ibidem), ela seguiu um passo de cada vez a partir da realidade política e não simplesmente da lógica teórica. A “economia social de mercado” expressou não uma política social, mas uma “estratégia societal” que consistiu em três aspectos invariantes: 1) a promoção do dinamismo da economia de mercado; 2) a preservação do equilíbrio social com permanente supressão do conflito; e 3) a estabilidade e crescimento econômico por meio da concorrência e política financeira (PTAK, 2009).