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3. CAPÍTULO III – O PENSAMENTO POLÍTICO DE HAYEK

3.2. F ORMAÇÃO DE UMA LINGUAGEM POLÍTICA NEOLIBERAL

3.2.2. Liberdade

The Constitution of Liberty se inicia com uma nova demonstração da consciência que Hayek tinha, naquele momento – a obra foi publicada em 1960, quando Hayek ainda estava nos Estados Unidos – da importância da disputa de valores. A obra é dedicada “à civilização desconhecida que se desenvolve nos Estados Unidos da América” e logo na introdução ele explicou que “se quisermos vencer a grande luta que se está travando no campo das ideias, devemos, antes de mais nada, saber em que acreditamos. Devemos também ter ideia clara daquilo que desejamos preservar” (HAYEK, 1983, p. 20).

A explicitação e reafirmação dos valores dessa civilização era uma questão política pertinente, mas também um programa de pesquisa necessário, uma vez que “aparentemente, não existe nenhuma obra que apresente um quadro completo da filosofia na qual uma teoria liberal coerente se possa fundamentar” (ibidem). Dada essa aparente inexistência, ele se diz “levado à ambiciosa e talvez presunçosa tarefa de abordá-los mediante uma reformulação abrangente dos princípios básicos de uma filosofia da liberdade (ibidem, p. 21).

Hayek ainda esclareceu que a tradição da liberdade não é exclusiva de nenhum país e que ninguém detém a forma exclusiva de promovê-la. Ele se referiu, no entanto, à história dessa tradição tal como se desenvolveu na civilização ocidental. O seu principal objeto, desse modo, seriam os princípios que os Estados Unidos ou a Grã-Bretanha “elaboraram baseados nos fundamentos oferecidos pelos gregos antigos, pelos italianos do começo da Renascença e pelos holandeses e aos quais franceses e alemães prestaram importantes contribuições” (ibidem, p. 22).

Ele define a liberdade como a “condição do ser humano na qual a coerção que alguns exercem sobre outros se encontra reduzida, tanto quanto possível, no âmbito da sociedade” (ibidem, p. 27). Segundo Hayek (ibidem, p. 27-28),

o significado de liberdade que adotamos é, aparentemente, o significado original da palavra [...] ela sempre significou a possibilidade de um indivíduo agir de acordo com seus próprios planos e resoluções [...] uma das mais antigas definições de liberdade é, portanto, “independência da vontade de outrem”.

Ao decompor a sua definição, temos que a liberdade seria concebida, em primeiro lugar, como uma condição social. Em segundo lugar, ela diria respeito a uma relação entre os próprios indivíduos. Em terceiro lugar, ela exigiria uma política que assegure que a coerção que uns exercem sobre outros fosse reduzida tanto quanto possível. Além disso, como um aspecto pressuposto, para a existência desse estado de liberdade seria necessário que “o indivíduo tenha assegurada uma esfera privada, que exista certo conjunto de circunstâncias no qual outros não possam interferir” (ibidem, p. 29). Essa definição negativa, ou seja, a condição de estar livre da interferência na ação de cada indivíduo dentro do seu limite privado, implicaria que um indivíduo pode ser mais livre ou menos livre em função do grau de coerção exercida sobre si por outrem no âmbito da sociedade. O estado de liberdade poderia variar, portanto, conforme o grau.

Hayek, entretanto, contrapôs essa definição a concepções de tipos de liberdade, como a liberdade de algo ou para algo. Por exemplo, seria uma definição contraposta à de liberdade política, que seria usada com o propósito de indicar a participação na escolha do governo, no processo legislativo e no controle da administração. Mas que Hayek (ibidem, p. 30) rejeita como definição de liberdade ao dizer que “um povo livre, nesse sentido, não é necessariamente um povo de homens livres, e não é preciso que o indivíduo compartilhe dessa liberdade coletiva para ser livre”. Isto é, essa definição de liberdade política não eliminaria a possibilidade de uma pessoa renunciar, por meio do voto, à sua liberdade no sentido que ele emprega. A sua definição também se contrapõe à de liberdade interior, no sentido de uma dimensão psicológica da

liberdade como a liberdade de consciência. Ainda que pudessem se aproximar, uma vez que esse tipo de liberdade significa não estar coagido pela vontade de outrem, a possibilidade de uma pessoa “agir em conformidade com uma resolução por ela tomada é distinta da possibilidade de outras pessoas lhe imporem ou não seus desejos” (ibidem, p. 32).

Todas as condições que asseguram os graus desse estado de liberdade não seriam liberdades de tipos distintos, mas direitos. Hayek (ibidem, p. 36) retomou, como exemplificação do seu argumento, a carta de direitos assegurados aos escravos libertos na Grécia Antiga. Entre eles estariam: 1) a situação legal como membro protegido da comunidade; 2) a imunidade contra prisão arbitrária; 3) o direito de se dedicar ao trabalho desejado; 4) o direito de ir vir de acordo com a sua própria escola”. O direito de propriedade estaria omitido dessa carta porque até o escravo poderia usufruí-lo, mas, com a sua inclusão, a lista conteria todos os elementos necessários para proteger um indivíduo da coerção. Comparando com as definições anterior, Hayek (ibidem) concluiu que “evidentemente, um escravo não se tornará livre pela mera obtenção do direito de voto; e não será, tampouco, um grau qualquer de ‘liberdade interior’ que fará dele algo mais do que um escravo”

A principal contraposição, no entanto, seria com um sentido positivo da liberdade enquanto poder. A liberdade como ausência de coerção à vontade arbitrária de outrem seria diferente da liberdade como poder fazer o que quiser. Segundo Hayek (ibidem, p. 33), essa confusão “foi facilitada pela tradição filosófica que, ao definir liberdade, utiliza a palavra ‘restrição’ em lugar do que, nesse estudo, denominamos ‘coerção’”. Apesar de reconhecer que o uso dos dois termos seria proveitoso, o problema é que a palavra “restrição” passou a indicar a “ausência de obstáculos” para a realização de algo, o que “equivale a interpretá-la como poder efetivo de fazer qualquer coisa que se queira” (ibidem).

Por motivos que se tornarão mais nítidos quando analisarmos a sua concepção de justiça social, a sua preocupação aqui estaria relacionada à eliminação da possibilidade de indicar que “agentes não humanos” interferissem nas ações humanas. Isto é, a liberdade seria uma condição social específica das relações entre os seres humanos e não a condição de ausência de obstáculos que “a sociedade” ou “o mercado” imporia à realização de algo. É nesse sentido que ele entendeu que “a confusão do conceito de liberdade enquanto poder com o de liberdade no sentido original conduz inevitavelmente à identificação de liberdade com riqueza” (ibidem, p. 34). Ou então, dito de um modo mais explícito e controverso, “no sentido em que empregamos a palavra, o mendigo sem vintém que leva uma vida precária, baseada na constante improvisação, é, realmente, mais livre que o conscrito com toda sua segurança e relativo conforto” (ibidem, p. 35).

Para evitar essas confusões e fixar o sentido de liberdade como estado ou condição social no qual um indivíduo estaria livre para agir dentro dos seus limites privados sem a coerção de outrem, é preciso explicar o que se entende por coerção. Para Hayek (ibidem, p. 37), a coerção seria “o controle exercido sobre uma pessoa por outra em termos de ambiente ou circunstância, a ponto de, para evitar maiores danos, aquela ser forçada a agir para servir aos objetivos desta” e não de acordo com seus próprios planos. Mas, como expresso na própria definição, a coerção não poderia ser evitada, pois a única maneira de impedi-la seria pela própria ameaça de coerção. Nesse caso, diz Hayek (ibidem)

a sociedade livre tem resolvido esse problema conferindo o monopólio da coerção ao Estado e tentando limitar esse poder a circunstâncias em que a ação do Estado é necessária para impedir a coerção exercida pelos indivíduos. Isto só será possível se o Estado proteger as esferas privadas conhecidas contra a interferência de outras pessoas.

Desse modo, essa esfera privada aparece como condição suposta da liberdade, como vimos anteriormente, e como princípio que confere, ao mesmo tempo, a necessidade e a limitação da ação do Estado. A centralidade da esfera ou domínio privado para essa filosofia da liberdade estaria, além disso, no próprio desdobramento da história epistemológica e institucional que justificaria a liberdade como valor supremo.

Do ponto de vista epistemológico, o reconhecimento da “inevitável ignorância de todos os homens no que diz respeito à maioria dos fatores dos quais depende a realização dos nossos objetivos e dos nosso bem-estar” (ibidem, p. 45) proporcionou que as práticas sociais evoluíssem no sentido de reservar a cada pessoa um domínio próprio no qual pudessem ser os próprios juízes. Portanto, seria o reconhecimento dessa ignorância o que fundamentaria um estado de liberdade como preservação desse domínio livre da coerção de outrem, ou seja, como “um estado no qual cada um pode usar seu conhecimento com vistas a seus propósitos” (HAYEK, 1985a, p. 61).

Mais do que isso, o estado de liberdade desse domínio privado é o que permitiria o progresso da civilização. Conforme a abordagem racionalista evolucionista adotada por Hayek, essas práticas mostraram-se mais adequadas ao progresso da civilização, pois elas teriam permitido que os indivíduos utilizassem, dentro do seu limite privado, o seu precário conhecimento para desenvolver soluções criativas em busca dos seus próprios objetivos. A concorrência entre soluções diversas para alcançar fins semelhantes demonstrou quais delas eram mais eficientes e essa demonstração fica registrada como um conhecimento acumulado, que possivelmente não seria alcançado conscientemente por uma mente qualquer, e que se torna uma vantagem coletiva (HAYEK, 1983, p. 47-48).

Esse processo não seria possível caso a noção de liberdade estivesse separada da noção de responsabilidade. Para Hayek (ibidem, p. 90), a “liberdade não apenas significa que o indivíduo tem a oportunidade e, ao mesmo tempo, a responsabilidade de escolher; também significa que deve arcar com as consequências de suas ações”. Para o processo que descrevemos, isso significa que a responsabilidade desempenharia um papel na orientação das livres decisões do indivíduo, “ela visa a ensinar às pessoas o que devem levar em consideração em situações futuras semelhantes” (ibidem, p. 94). A responsabilidade impulsionaria o indivíduo a utilizar melhor o conhecimento acumulado, as suas habilidades e as suas competências para alcançar os resultados pretendidos. Ainda que isso gerasse frustrações, pois independentemente do mérito de cada um, o que importa é que nem todos conseguem alcançar esses resultados, mas essa iniciativa contribuiria para o desenvolvimento de toda a civilização e, consequentemente, geraria novas boas oportunidades.

Uma vez que suas vantagens começaram a ser reconhecidas, “o aperfeiçoamento da teoria da liberdade deu-se principalmente no século XVIII e iniciou-se em dois países, Grã- Bretanha e França” (ibidem, p. 72). A partir desses dois países, formaram-se duas tradições, embora pensadores de cada um deles partilhassem ora as concepções formadas em um ora aquelas formadas em outro e tenham se confundido definitivamente quando se integraram ao movimento liberal do século XIX, através do utilitarismo benthamiano (ibidem). Uma tradição da liberdade foi a formada a partir da Grã-Bretanha, que conhecia a liberdade e, portanto, seria empírica e assistemática. A outra, formada a partir da França, que desconhecia a liberdade seria, então, especulativa e racionalista (ibidem).

Teria sido, afinal, a tradição britânica que, afirmando uma concepção evolucionista segundo a qual “a civilização [seria] um resultado cumulativo e conseguido com esforço mediante o processo de tentativa e erro” (ibidem, p. 77), concebeu o estado de liberdade desse domínio privado como um produto não intencional da civilização. Todavia, ao contrário do enfoque racionalista, para o qual o surgimento desse estado de liberdade deveria ser explicado como resultante de uma vontade, para a abordagem evolucionista, o seu surgimento representaria um acúmulo civilizacional que evoluiu como tradição e costume. Isto é, à medida que esse estado de liberdade foi sendo reconhecido como mais eficiente para fazer a civilização progredir, a ação normativa dos antigos preceitos e costumes que o garantiram foram se consolidando institucionalmente como normas gerais de conduta e viajando no tempo por meio da tradição. Assim, “por mais paradoxal que possa parecer, provavelmente, uma sociedade livre e bem-sucedida sempre será, em grande parte, uma sociedade ligada às tradições” (ibidem, p. 79).

O respeito às instituições criadas com base nessa tradição da liberdade seria exatamente o compromisso com o conteúdo moral, normativo, abstrato que orientaria a conduta individual, sobretudo aquele que assegura o domínio privado do indivíduo. Conforme afirmou Hayek (ibidem, p. 86), “como todos os princípios morais, a liberdade individual exige que a aceitemos como um valor intrínseco”, ou seja, que deveria ser respeitado independentemente das consequências em cada caso ou vantagens específicas (idem; 1985a, p. 64). Essa norma de conduta moral regeria tanto a ação individual quanto a ação política e é nesse sentido a que o Estado deveria o seu princípio de legitimidade, ou seja, o fundamento da sua necessidade, o monopólio da coerção que protege esse princípio moral, e da sua limitação, sua ação se estenderia somente até o limite dessa necessidade.