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4. CAPÍTULO IV – CONTRARREVOLUÇÃO NEOLIBERAL

4.4. A ÉPOCA DO CAPITALISMO NEOLIBERAL

4.4.2. Segunda conjuntura: 1990 – 2008:

Esse segundo período é associado a uma fase de expansão global do neoliberalismo e caracterizada pela tentativa de consolidar a ideia consagrada na insígnia thatcherista There Is No Alternative – TINA. O colapso e queda dos regimes soviéticos no leste europeu a partir do final dos anos 1980 facilitariam a agitação da perspectiva de que qualquer alternativa ao restabelecimento do capitalismo de mercado era não só indesejável, como impossível. Em função dessa pretensão hegemônica que marca esse período de construção do Estado Neoliberal, ele é descrito como normativo (DAVIES, 2014, tradução nossa), gestionário (DARDOT; LAVAL, 2016) e, ainda, progressista (FRASER, 2017).

Poderíamos traçar seis particularidades desse período. Em primeiro lugar, após as primeiras investidas “militantes” contra a regulação democrática dos mercados e contra as alternativas socialistas, o colapso soviético atestaria a superioridade da lógica concorrencial do mercado. Essa lógica, então, passaria a ser promovida como uma racionalidade global em nome

da liberdade, permitindo reconsiderar toda a moralidade e institucionalidade nos termos da concorrência e dos modelos empresariais e de capital humano. A liberdade de escolha se tornaria a obrigação da escolha, conduzindo a uma cada vez maior justificação moral da desresponsabilização pública e coletiva pelo sucesso e fracasso individual, pelas desigualdades e a uma elevação correspondente da individualização dos riscos como um valor (DARDOT; LAVAL, 2016; BROWN, 2015; DAVIES, 2014).

Em segundo lugar, destaca-se o predomínio global da financeirização. O processo de desregulamentação financeira empreendido desde os anos 1970, além de permitir a recuperação dos níveis de renda e riqueza das classes capitalistas (DUMÉNIL; LÉVY, 2004; HARVEY, 2008), fez do mercado financeiro o agente disciplinante da nova norma global (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 201). O poder político das finanças teria sido possibilitado, ainda, pela transição dos modos de financiamento do Estado que, segundo Streeck (2013; 2012), passaram das políticas inflacionárias para a ampliação da dívida pública e depois das dívidas privadas.

As organizações internacionais criadas no pós-II Guerra, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, foram reorientadas para impor uma política monetária e orçamentária que funcionaria como um disciplinamento político e social macroeconômico restringindo a margem de ação dos países. Conforme Dardot e Laval (2016, p. 202, grifo dos autores), “o novo capitalismo está profundamente ligado à construção política de uma finança global regida pelo princípio da concorrência generalizada”.

Em terceiro lugar, destaca-se nesse período talvez a maior vitória ideológica do neoliberalismo sobre os antigos adversários: a inflexão neoliberal do Partido Democrata, nos EUA, e do Partido Trabalhista, na Inglaterra, com repercussão sob os partidos social- democratas europeus e de outras partes do mundo, como na América do Sul. A “Terceira Via”, como foi chamada e teorizada, consistiu numa reorientação das políticas desses partidos através da aceitação da TINA e da irreversibilidade das políticas neoliberais.

Tal reorientação assumiu não mais uma via média entre o socialismo e o liberalismo, mas entre o liberalismo democrático e o neoliberalismo (GUIMARÃES, 2017). Ela era muito mais próxima, no entanto, do neoliberalismo, como confirma de forma cristalina um trecho do manifesto “A Terceira Via e O novo centro”, assinado por Tony Blair (Partido Trabalhista) e Gerhard Schröder (Partido Social-Democrata Alemão): o objetivo da esquerda moderna era oferecer “um quadro sólido para uma economia de mercado competitiva [...] Por essa razão, é necessário dotar-se de um quadro que permita às forças do mercado funcionar

convenientemente” 164. A escolha dessa passagem procura expor a indisfarçável assimilação do

núcleo do programa neoliberal, como vimos nos capítulos anteriores, pelos líderes da Terceira Via, ainda que retoricamente procurassem se opor ao neoliberalismo com o discurso contra o laissez-faire.

Em quarto lugar, e, de certa forma, prolongando o aspecto anterior, estaria aquilo que levou Nancy Fraser (2017) a identificar um caráter progressista dessa fase do neoliberalismo. Isto é, a “aliança entre, de um lado, correntes majoritárias dos novos movimentos sociais (feminismo, antirracismo, multiculturalismo e direitos LGBT) e, de outro lado, um setor de negócios baseado em serviços com alto poder ‘simbólico’ (Wall Street, o Vale do Silício e Hollywood)”. Essa aliança entre forças progressistas e forças do capitalismo, especialmente ligadas às finanças, teria sido realizada no bojo desses movimentos de Terceira Via.

Nesse argumento, a cientista política estadunidense está desdobrando a tese apresentada em outros momentos165 segundo a qual “as mudanças culturais impulsionadas pela segunda

onda, saudáveis em si próprias, serviram para legitimar uma transformação estrutural da sociedade capitalista que avança diretamente contra as visões feministas de uma sociedade justa” (FRASER, 2009, p. 14). A fragmentação dos aspectos políticos, culturais e econômicos da crítica feminista da segunda onda ao capitalismo patriarcal teria proporcionado a “astuta” ressignificação dessa crítica pelo neoliberalismo progressista contra o Estado de Bem-Estar e em prol da responsabilização individual pelo sucesso.

Outras teóricas feministas chamam a atenção para esse mesmo processo. Sônia Alvarez (2014) destaca a “convergência perversa” entre as agendas focalizadas de combate à pobreza e algumas conquistas reais de alguns elementos da agenda feminista representou uma “humanização” do neoliberalismo. Verónica Schild (2016) analisa o modo como o predomínio do neoliberalismo afetou as agendas feministas na América Latina despolitizando a luta pela autonomia das mulheres, central no período de democratização no continente. Para a autora, sob o neoliberalismo a “emancipação feminina veio a ser formulada em termos de participação no mercado” (SCHILD, 2016, p. 67) e a noção de autonomia e empoderamento passou a ser utilizada pelo próprio neoliberalismo nas suas políticas de desenvolvimento pessoal. Schild ainda aponta que, embora nem todo o movimento feminista tenha se reorientado se, o

164 Citado em DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. Op. Cit. p. 234.

165 FRASER, Nancy. O Feminismo, o Capitalismo e a Astúcia da História. In: Revista Mediações, Londrina, v.

14, n.2, jul-dez. 2009, p. 11-33; FRASER, Nancy. Fortunes of Feminism: From State-Managed Capitalism to Neoliberal Crisis”. Londres/Nova York: Verso, 2013.

predomínio de um feminismo liberal ao longo dos últimos vinte e cinco anos possibilitaria uma convergência preocupante entre a emancipação das mulheres e o capitalismo neoliberal.

Em quinto lugar, esse período também se destaca por mudanças nos regimes constitucionais e nos modos de regulação dos Estados nos âmbitos interno e internacional166.

Entre outras esferas da vida social afetas, essas mudanças geraram impactos para:

• A redução da soberania nacional, sobretudo através da criação de instituições supranacionais com poderes discricionários, como é o caso mais emblemático das instituições da União Europeia (PISARELLO, 2014); dos Tratados de Livre Comércio, novas regulamentações financeiras e privatizações que retiram, cada vez mais, os fluxos de capitais e os recursos estratégicos do controle das populações e os transferem, sobretudo, do sul para o norte global e para as grandes corporações empresariais transnacionais (HICKEL, 2016);

• A globalização de instituições democráticas formais como regras procedimentais mínimas de seleção de governantes, sujeitas à normatividade do direito privado e dinâmicas elitistas cada vez mais controladas por mecanismos de lobby por parte das corporações (HICKEL, 2016; CROUCH, 2001);

• A desconstituição do modelo de cidadania social, seja através da forte tendência de concentração de renda (PIKETTY, 2013) ou dos fenômenos de retrenchment dos EBES, ou seja, dos ajustes que implicaram alterações nos modelos de provisão e na composição dos gastos sociais (PIERSON, 1994; CLAYTON; PONTUSSON, 1998; KERSTENETZKY, 2012), orientados por uma moralização conservadora da pobreza como responsabilidade individual (DARDOT; LAVAL, 2016) ou pela ideia de capital humano (BROWN, 2015);

• O papel do Estado-Nação na nova ordem global que se comporta como garantir da estrutura de regras que organizam a globalização dos mercados e o ambiente de operação das corporações (WOOD, 2014) e como uma espécie de cobrador de dívidas (STREECK, 2012) ou como Estado corretor (DARDOT; LAVAL, 2016);

166 No Brasil, por exemplo, mesmo após a Constituição de 1988, chamada de “cidadã” por formalmente aproximar

o país do paradigma constitucional liberal-social, a implementação da política neoliberal nos anos 1990 não se restringiu a pauta econômica do chamado “Consenso de Washington”. Efetivamente, tratou-se de iniciar uma série de reformas constitucionais – ou simplesmente impor bloqueios à implementação da constituição – para adequar o Estado brasileiro ao neoliberalismo.

• A concentração midiática167, diminuindo e obstruindo a voz como um valor

(COULDRY, 2010), impossibilitando a formação de uma opinião pública democrática (GUIMARÃES; AMORIM, 2013) e favorecendo a legitimação de um senso comum neoliberal (CUPPPLES; GLYNN, 2016);

• A desconstituição das relações de trabalho e das subjetividades do trabalho, seja no âmbito da desestruturação e flexibilização do mercado de trabalho para fazer dele um espaço de concorrência no qual o sucesso está relacionado com a “liberdade de escolha da ocupação” e do uso das habilidades adquiridas por cada trabalhador no curso da sua valorização como capital humano, seja no próprio âmbito das empresas onde os trabalhadores e as trabalhadoras estão submetidos à lógica da financeirização e dos parâmetros de avaliação de rentabilidade e lucratividade dos acionistas (DARDOT; LAVAL, 2016).

Um sexto e último traço característico desse período tem relação com as próprias resistências que foram articuladas, como por exemplo a Revolta de Chiapas (México), em 1994, liderado pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional – responsável, inclusive, pela propagação da conotação denunciadora do termo neoliberalismo – ou nas articulações partidárias dos países da América Latina ou nas edições do Fórum Social Mundial, e que ensejaram, em maior ou menor grau, perspectivas pós-neoliberais (SADER, 2009). Além delas, os governos progressistas eleitos a partir do final dos anos 1990, que compuseram a chamada “onda rosa” ou o campo do Novo Constitucionalismo Latino-Americano (NCLA), se propuseram a desenvolver alternativas à desconstituição dos EBES no continente latino- americano e, particularmente no caso do NCLA, a avançar em novos e necessários processos constituintes emancipadores que superassem os limites liberais dos EBES (PASTOR; DALMAU, 2017).