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3. CAPÍTULO III – O PENSAMENTO POLÍTICO DE HAYEK

3.2. F ORMAÇÃO DE UMA LINGUAGEM POLÍTICA NEOLIBERAL

3.2.4. Justiça Social como ilusão e jogo da catalaxia

Em algumas passagens anteriores já vimos afirmações sobre a relação entre a noção de liberdade adotada por Hayek e o princípio da igualdade. Retomaremos, agora, duas delas para analisarmos o pensamento de Hayek a respeito da justiça social e do funcionamento da ordem de mercado. Uma é a afirmação de que a igualdade material, de que trata a perspectiva da justiça social, seria incompatível com o Estado de Direito, uma vez que exigiria um tipo de intervenção consciente nos resultados da concorrência que seria indesejável e impossível; outra, seria que o Estado de Direito e a ordem de mercado chegam mesmo a produzir desigualdades econômicas que são, no entanto, consequência necessária e justificativa do estado de liberdade.

Fundar-se no direito privado significa que o Estado seria regido por normas gerais de conduta justa que se caracterizam pela ignorância quanto às situações específicas de cada caso. Ele pertenceria ao âmbito da nomos, que expressa justamente as normas não intencionais que

permitem o desenvolvimento da ordem espontânea. A igualdade material, por sua vez, exigiria uma ação política oportunista84 que visa um efeito concreto e que, consequentemente, estaria

no âmbito da thesis ou das organizações. Além de serem duas esferas distintas, segundo a compreensão de Hayek, a nomos precederia e limitaria a thesis. Mais do que isso, a exigência de uma ação política específica pressuporia que houvesse ou um consenso sobre um fim, no caso a igualdade material, ou a coerção à uma vontade arbitrária, ou seja, a negação da liberdade, o que se presumiria ser a principal tendência uma vez que os acordos sobre os fins seriam muito raros.

Diante disso, a única forma de igualdade compatível com o Estado de Direito, porque conduz à liberdade, seria aquela estabelecida pelas normas gerais de conduta justa. Pois seria o seu caráter genérico e abstrato o que asseguraria que ela fosse universalmente aplicável. Essas normas seriam negativas, assim como a definição de liberdade, uma vez que elas não prescreveriam nenhuma ação específica, mas apenas orientariam a ação dos indivíduos quanto às expectativas que pudessem ter num regime de concorrência e protegeriam o domínio privado como a esfera que cada um disporia para usar livremente seus conhecimentos com vistas à realização dos seus objetivos. Para Hayek (1985b, p. 49), “a concepção de justiça [...] [é] o princípio de tratar a todos segundo as mesmas normas [...] não é em absoluto uma equilibração de interesses particulares em jogo num caso concreto”.

Este tipo de igualdade formal não admitiria sequer a igualação das oportunidades materiais, uma vez que estas oportunidades estariam inseridas num fluxo contínuo da ordem espontânea e a “posição inicial de qualquer pessoa será sempre fruto de fases anteriores e, portanto, um fato não intencional e dependente do acaso tanto quanto os desdobramentos futuros” (ibidem, p. 155). A tentativa de igualar de oportunidades equivaleria, pois, a dizer que o governo deve controlar todas as circunstâncias relevantes para as perspectivas de um indivíduo, o que conflitaria com todo o fundamento lógico das sociedades livres (HAYEK, 1983, p. 110; 1985b, p. 10).

Segundo esse princípio de igualdade formal, o que deveria ser assegurado a todos, portanto, seria a oportunidade de competir (HAYEK, 1983, p. 110). A igualdade para participar do regime de concorrência seria o interesse geral da sociedade, uma vez que numa sociedade livre o bem geral consistiria principalmente na facilitação da busca de propósitos individuais 84 Hayek empregou essa expressão para designar tentativas utilitárias de equilibrar a medida de liberdade e de

coerção julgando as vantagens e desvantagens na escolha livre: “a defesa da liberdade deve, portanto, ser dogmática e não fazer concessão alguma ao oportunismo, mesmo quando não for possível mostrar que, além dos efeitos benéficos conhecidos, algum resultado prejudicial específico também decorreria de sua transgressão” (1985a, p. 68)

desconhecidos (HAYEK, 1985b, p. 2). Esse seria o interesse geral numa sociedade livre, não porque expresse um acordo sobre os fins, mas porque seria o único consenso possível: sobre os meios que podem servir a objetivos distintos, pois, como Hayek (2010, p. 104) afirmou em The Road to Serfdom, “é o controle dos meios que contribuirá para a realização de todos os nossos fins”. É, portanto, nesse sentido que a intervenção jurídica seria requerida.

A definição da propriedade privada e das condições de livre concorrência seriam, afinal, o principal papel do Estado de Direito no sentido de assegurar os meios para a consecução de fins variados. O meio generalizado que serve para a obtenção da maioria dos fins particulares seria o dinheiro (HAYEK, 1985b, p. 9) e, nesse sentido, a ordem de mercado seria a instância que mediaria as possibilidades de utilização dos meios, buscando o melhor uso dos conhecimentos dispersos registrados no sistema de preços para a consecução de oportunidades desejadas. Como afirmou Hayek (ibidem, p. 9, grifo nosso), “num mundo de incerteza, os indivíduos devem visar sobretudo não a alguns fins últimos, mas a obter meios que julguem poder ajudá-los a alcançar esse fim”.

Por essas razões, a intervenção nos resultados da concorrência com vistas à igualdade material seria impossível e indesejável, pois: presumindo a inexistência de uma igualdade absoluta, para Hayek, qualquer escala de valores compatível com uma igualdade relativa iria além dos poderes de imaginação de qualquer agente humano; a determinação de uma escala de valores e dos meios que cada indivíduo dispõe por uma autoridade dotada de poderes para tanto reduziria de maneira indesejável a diversidade de objetivos individuais; e dotar uma autoridade de poderes para definir quem deve receber algo e quem não deve implica que essa autoridade não se submeteria mais à impessoalidade e universalidade da norma geral de conduta justa, mas a uma legislação organizativa com fim específico, contrariando, portanto, a regra do Estado de Direito.

A motivação igualitária da intervenção nos resultados da concorrência seria ainda mais perniciosa para o estado de liberdade. A presunção de que deveria haver alguma justiça social nos resultados “é provavelmente, em nossos dias, a mais grave ameaça à maioria dos valores de uma civilização livre” (ibidem, p. 85). Deve-se compreender, pois, que “para dar significado a essa expressão, será preciso efetuar uma completa mudança de todo o caráter da ordem social, e que alguns dos valores que antes a norteavam precisarão ser sacrificados” (ibidem, p. 86).

Por isso, Hayek argumentou que o conceito de justiça não se aplicaria aos resultados de um processo espontâneo. Por um lado, acabamos de ver que a condição de norma de conduta justa diz respeito ao fato dela ser independente dos fins ou ignorante quanto aos efeitos concretos. Sendo esse o tipo de norma que serviria à formação da ordem espontânea, a questão

a saber é se ela seria justa, aplicando-se igualmente a todos, e não se os resultados do processo o seriam. Por outro lado, a noção de justiça teria um significado social evidente quando diz respeito a um atributo do funcionamento da sociedade e, nesse sentido usar a expressão “justiça social” seria um pleonasmo. Mas o problema é que o uso do adjetivo “social” passou a expressar gradualmente “que a ‘sociedade’ deveria considerar-se responsável pela posição material dos seus membros [...] [e] isso implicava que os processos sociais deveriam ser deliberadamente dirigidos para resultados específicos” (ibidem, p. 93).

Nesse sentido, Hayek afirmua que o uso da expressão “justiça social” seria um abuso da palavra, pois ela passou a ser usada indicando que a noção de justiça é um atributo da sociedade – um agente não humano, como ele mencionou em The Constitution of Liberty. Hayek foi enfático ao dizer que “a expressão ‘justiça social’ não pertence à categoria do erro, mas à do absurdo, como a expressão ‘uma pedra moral’” (ibidem, p. 98). O que teria conduzido a tal absurdo, na sua narrativa, seria justamente o abandono dos princípios de ação justa dos indivíduos a que visava o liberalismo clássico e a atribuição cada vez maior do dever de equalizar os resultados da concorrência às autoridades dotadas de poder ilimitado conferido pela ilusão da soberania popular (ibidem, p. 83).

Ao contrário, segundo Hayek, o caráter de norma de conduta justa só seria atribuível à conduta humana, pois só a ação de alguém pode ser considerada justa ou injusta. Apenas se o mecanismo de mercado correspondesse a uma alocação deliberada de recursos a pessoas específicas, o que o tornaria uma organização e não uma ordem espontânea, poderia ser considerado justo ou injusto. Mas, não sendo esse o caso, “exigir justiça de semelhante processo é obviamente absurdo, e selecionar pessoas numa tal sociedade como fazendo jus a uma parcela específica é evidentemente injusto” (ibidem, p. 82), pois essa última ação humana configuraria um tratamento desigual perante a lei.

Foi com base nesses argumentos e no contexto dessa transição de um conceito negativo para um positivo de justiça que Hayek direcionou uma crítica contundente à Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovado pelas Nações Unidas em 1948. Segundo Hayek, essa transição “efetua-se frequentemente por meio da ênfase nos direitos individuais” (ibidem, p. 123). O significado do substantivo “direito” é que toda norma de conduta individual justa criaria um direito correspondente dos indivíduos: a delimitação do domínio privado a partir do qual pode perseguir a realização dos seus objetivos (ibidem). A criação de uma organização, como o governo, visaria a cumprir a contrapartida desse direito, ou seja, o dever de proteger esse domínio privado encarregando-se de garantir a observância das normas de conduta justa.

De acordo, ainda, com esse postulado, a reivindicação de direitos individuais só constituiria uma exigência legítima e justa se dissesse respeito à algum indivíduo ou organização. Isto é, “não tem sentido falar do direito a uma condição que ninguém tem o dever, ou talvez nem mesmo o poder, de propiciar” (ibidem, p. 124). Essa transição para um conceito positivo de justiça, na qual se atribui a uma entidade não humana (a sociedade) e a um processo espontâneo (o mercado) a responsabilidade por garantir direitos individuais, leva, portanto, a duas possibilidades: ou seria uma inconsistência chamar de “direito” a garantia da justiça social ou seria um pesadelo garantir a uma autoridade o poder de determinar os resultados.

Hayek compreende que os direitos civis e políticos surgiram como princípios do Estado de Direito, na medida em que “somos todos compelidos a manter a organização governamental” (ibidem, p. 124). Mas a esses direitos negativos (civis), “mero complemento das normas que protegem domínios individuais, institucionalizados nas diferentes cartas constitucionais dos governos” (ibidem), e positivos (políticos) de participar da organização governamental, “acrescentaram-se, nos últimos tempos, novos direitos ‘sociais e econômicos’ positivos, para os quais se reivindica uma dignidade igual ou mesmo maior” (ibidem, p. 125).

Não se pode, contudo, derivar85 dos direitos civis e políticos quaisquer poderes positivos para o governo determinar a posição material de indivíduos e grupos. Não teria sentido definir esses novos direitos como “direitos a serem garantidos pela ‘sociedade’, visto que a ‘sociedade’ é incapaz de pensar, agir, avaliar, ou ‘tratar’ alguém de maneira específica” (ibidem). Diante da inconsistência apontada, Hayek questionou e concluiu (ibidem, p. 126)

Qual será, por exemplo, o significado legal da afirmação de que todo homem “tem direito à realização [...] dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade” (art. 22)? A quem deve “todo homem” reivindicar “condições justas e favoráveis de trabalho” (art. 23 (1)) e uma “remuneração justa e satisfatória” (art. 23 (3))? [...] Chega-se a afirmar que “todo homem tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados” (art. 28) – ao que tudo indica, na presunção não só de que isso é possível, mas também de que existe hoje um método conhecido pelo qual essas reivindicações possam ser atendidas, no tocante a todos os homens.

No mesmo sentido, em outro trecho, Hayek ironizou a proposição de universalização de direitos sociais e econômicos: “a ideia de um ‘direito universal’ que assegure ao camponês, ao

85 É interessante notar que Hayek utilizou o termo “derivar” para abordar a relação entre os direitos civis, políticos

e sociais, demonstrando atenção à abordagem da evolução dos direitos de T.H. Marshall, que constitui o paradigma da cidadania liberal-democrática.

esquimó e, quem sabe, ao Abominável Homem das Neves ‘férias remuneradas periódicas’ mostra o absurdo da proposição” (ibidem, p. 127)

Seria evidente, então, que essa derivação não faria parte da tradição liberal, mas seria entendida como uma tentativa, realizada no contexto da Declaração, de conciliar os princípios dessa tradição com os princípios socialistas: “esse documento é, como se sabe, uma tentativa de fundir os direitos da tradição liberal ocidental com a concepção completamente diversa oriunda da revolução marxista russa” (ibidem, p. 126). Esses novos direitos positivos só poderiam ser justificados com base na concepção construtivista da ordem social da tradição socialista, segundo a qual a sociedade é uma organização deliberadamente criada por um ato da vontade.

Por essa razão, a tentativa de conciliação dos dois paradigmas e a aplicação dos novos direitos por lei não poderia ser feita sem levar à destruição da ordem liberal. Nas palavras de Hayek (ibidem), “eles não poderiam ser tornados universais num sistema de normas de conduta justa”, como a que se baseia a ordem espontânea, e, ao mesmo tempo, “requerem [...] que toda sociedade seja convertida numa única organização, isto é, tornada totalitária no mais amplo sentido da palavra”. Se “o documento fosse apenas produto de um grupo internacional de filósofos sociais” (ibidem, p. 127) poderia ser considerado apenas um indício da influência daquela tradição. Mas tratando-se de um documento aceito por um corpo de estadistas ele revelaria uma possível tragédia que, ironicamente, pretenderiam evitar estando empenhados na criação de uma ordem internacional pacífica.

Tendo visitado os argumentos de Hayek sobre a razão da incompatibilidade entre o Estado de Direito e a igualdade material, veremos agora a segunda proposição de que trata essa seção: a de que o Estado de Direito e a ordem de mercado chegariam mesmo a produzir desigualdades econômicas que seriam, no entanto, consequência necessária e justificativa do estado de liberdade. Recapitulando o que vimos anteriormente86, o estado de liberdade

permitiria que cada um buscasse seus próprios fins mediante a melhor utilização dos conhecimentos o que levaria, necessariamente, a resultados desiguais. E seria a seleção das práticas individuais, as que levassem aos melhores resultados, o mecanismo que faria a civilização progredir. Disto decorre que uma civilização mais avançada seria também uma civilização desigual, embora somente ela ofereça as melhores oportunidades para que cada indivíduo use o conhecimento acumulado para melhorar sua posição. Assim, “se os efeitos da

liberdade individual não demonstrassem que certos modos de vida levam a resultados melhores do que outros, provavelmente seria impossível justificá-la” (HAYEK, 1983, p. 103).

Aqui importa considerar, mais uma vez, o significado que a relação entre a liberdade individual e a noção de responsabilidade teriam para o bem-estar geral, uma vez que é esta responsabilidade que impulsionaria os indivíduos a buscarem os melhores resultados e proporcionarem o progresso da civilização. Mas para tornar isso mais claro, é preciso desenvolver a explicação de Hayek sobre o funcionamento da ordem de mercado, pois seria nesta que os indivíduos interagiriam buscando a realização dos seus objetivos.

Hayek distinguiu a ordem de mercado da “economia”, pois no sentido estrito e literal este termo faz referência a um tipo de ordem de gestão segundo um propósito específico, uma taxis, portanto. A ordem ou o kosmos de mercado, por sua vez, “não é nem poderia ser governado por tal escala de fins; ele serve à multiplicidade de fins distintos e incomensuráveis de todos os seus membros individuais” (ibidem, p. 130). Numa ordem de mercado, várias economias se inter-relacionariam. Para evitar essa confusão, Hayek propôs o termo “catalaxia” para designar o “tipo especial de ordem espontânea produzida pelo mercado, mediante a ação de pessoas dentro de normas jurídicas da propriedade, da responsabilidade civil e do contrato” (ibidem, p. 131).

A origem dessa ordem estaria, em sua narrativa, ligada à descoberta de que o esforço organizado em torno da colaboração por fins concretos poderia ser substituído pela colaboração em torno de normas gerais e abstratas de conduta justa que, como vimos, baseiam-se na promoção dos meios. O insight decisivo para essa descoberta foi proporcionado pela troca e pelo escambo, pois essa prática teria demonstrado o benefício que a mesma coisa (ou meio) gerava para a consecução de interesses diferentes. Percebeu-se que não era necessário ter acordo sobre os propósitos de cada transação, nem mesmo conhecê-los, pois “tudo que era preciso para isso é que se reconhecessem normas que determinassem o que pertencia a quem, e o modo como essa propriedade podia ser transferida por acordo” (ibidem, p. 132).

As relações de troca teriam representado, ademais, a própria fonte de coesão da Grande Sociedade, pois é nessa ordem de mercado que se tornou possível o alargamento das possibilidades para cada indivíduo perseguir seus próprios fins, mas também a pacificação, pois baseada na consciência de que pessoas com objetivos diferentes poderiam conviver (ibidem, p. 136). O tipo de colaboração presente na Grande Sociedade, nesse sentido, nada tem a ver com a “‘solidariedade’ no verdadeiro sentido de união na busca de metas comuns conhecidas, sendo de fato incompatível com ela” (ibidem, p. 134). Esta “solidariedade” seria, na realidade, a moralidade que pretende justificar a justiça social, mas que só poderia ser percebida em

pequenas sociedades ou grupos mais íntimos, pois estaria baseada não na relação entre estranhos como ocorre na Grande Sociedade, mas no desejo voluntário de ajudar os próximos (ibidem, p. 112).

Nesse sentido, a ordem de mercado seria benéfica em si mesma, sendo a única maneira pacífica de satisfazer duas condições do estado de liberdade: fornecer as informações que coordenam nossas intenções e expectativas diante do desconhecimento inerente à ação humana na Grande Sociedade; e aumentar as perspectivas de cada indivíduo ter à sua disposição um número maior de meios para realização dos seus fins (ibidem, p. 91; p. 129). A política governamental, portanto, não se justificaria no sentido de interferir e controlar os resultados particulares que o funcionamento dessa ordem gera, mas assegurar uma estrutura de regras abstratas que tornariam aquelas condições possíveis, como faz o Estado de Direito.

Hayek sugere que a melhor forma de compreender como a catalaxia criaria uma ordem espontânea e aumentaria o retorno que os indivíduos recebem pelos seus esforços seria conceber o seu funcionamento como um jogo. Seria um jogo de riqueza que aumenta o fluxo de bens e de perspectivas dos participantes, mas continuaria sendo um jogo, ou seja, “uma competição disputada segundo normas e decidida pela maior habilidade, força ou boa sorte”, conforme a definição do Oxford English Dictionary que ele utilizou (ibidem, p. 139). E mesmo num jogo com oportunidades iguais para todos os participantes, alguns ganhariam – que não seriam sempre os que mais se esforçam, mas os mais eficientes87 - e outros perderiam – o que ampliaria

a frustração no curto prazo, mas teriam novas chances de ganhar (ibidem, p. 150). A informação que cada jogador disporia para efetuar seus lances seria fornecida pelo sistema de preços, que registra as oscilações das remunerações de cada transação e, ao mesmo tempo, orienta a ação dos participantes88.

As desigualdades econômicas geradas nesse jogo, desse modo, além de figurarem como uma característica necessária de justificativa da liberdade, não possuem nenhuma legitimidade intrínseca para a sua correção. Isto é, como elas resultam de um jogo jogado que seria benéfico por si mesmo, “não há qualquer necessidade de dar justificativa moral à distribuição específica (de renda ou riqueza) que não foram deliberadamente efetuadas” (ibidem, p. 141). O

87 Em outro lugar, Hayek afirmou que “num sistema livre não é nem conveniente nem praticável que as

recompensas materiais correspondam àquilo que os homens entendem por mérito” (1983, p. 111) e também “nós não pretendemos que as pessoas conquistem o máximo de mérito, mas um máximo de utilidade com um mínimo de esforço e sacrifício e, portanto, um mínimo de mérito [...] [pois] só podemos julgar com segurança o valor do resultado, e não os diferentes graus do esforço que sua consecução custou a cada pessoa” (ibidem, p. 114).

88 Nota-se na narrativa que um mercado original como lugar de troca passaria a ser considerado como um lugar de

fundamento lógico do jogo da catalaxia pressupõe não que o resultado seja “justo”, mas apenas que a conduta dos jogadores o seja, na medida em que observam as normas de conduta justa. Além disso, e voltamos ao ponto da responsabilidade, se os indivíduos podem “agir com base em suas próprias convicções morais, não se pode também, ao mesmo tempo, exigir que os efeitos totais de suas respectivas ações nas diferentes pessoas correspondam a algum ideal de justiça distributiva” (ibidem, p. 144).