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3. CAPÍTULO III – O PENSAMENTO POLÍTICO DE HAYEK

3.2. F ORMAÇÃO DE UMA LINGUAGEM POLÍTICA NEOLIBERAL

3.2.1. Caminho da Servidão

Hayek concluiu The Road to Serfdom (2010, p. 221, grifo nosso) indicando esse empenho programático que, começando agora, só poderia ser um “novo, longo e árduo processo pelo qual todos nós esperamos criar pouco a pouco um mundo muito diferente daquele que conhecemos nos últimos vinte e cinco anos”. Mas se o uso do verbo criar sugere uma contradição com a sua crença sobre as limitações humanas na construção deliberada de uma nova ordem, ele logo em seguida deixou mais nítido que se trata, na verdade, de “encontrar um consenso em torno de certos princípios e de nos libertar de alguns erros que pautaram a nossa conduta nas últimas décadas” (ibidem). Isto é, o empenho em criar pouco a pouco esse mundo muito diferente estaria relacionado com a reafirmação dos valores do liberalismo e com a

83 Nas três obras que analisaremos, Hayek procura cobrir exatamente os temas encaminhados no primeiro encontro

da SMP, conforme vimos na seção anterior: a) à análise e explicação da crise atual; b) à discussão sobre as funções do Estado, de modo a distinguir claramente entre a ordem totalitária e liberal; c) aos métodos de estabelecer o Estado de Direito e respeito ao direito privado; d) ao estabelecimento de normas mínimas de funcionamento do mercado; e) ao combate aos métodos de estudo da história que ameaçam a liberdade; e f) ao problema da criação de uma ordem internacional conducente a salvaguarda da paz.

superação da arrogância planificadora. Somente essas duas tarefas permitiriam “criar as condições favoráveis ao progresso, em vez de ‘planejar o progresso’” (ibidem).

Nessa obra ele procurou exatamente fundamentar esse outro caminho, o da liberdade, sistematizando a crítica dos princípios e dos erros que perfazem o caminho da servidão. Como vimos na seção sobre o neoliberalismo inglês, no capítulo dois, em The Road to Serfdom a premissa de Hayek é que houve nas últimas décadas um progressivo abandono dos valores liberais que fundamentaram a civilização ocidental, particularmente o individualismo. Esse abandono teria resultado de uma luta política que se aproveitou dos equívocos da política liberal para promover os princípios socialistas, importados da tradição germânica centrada no estado. O principal equivoco das políticas liberais teria sido não perceber a “enorme diferença entre criar deliberadamente um sistema no qual a concorrência produza os maiores benefícios possíveis, e aceitar passivamente as instituições como elas são” (ibidem, p. 42). A criação desse sistema, ou seja, desse “arcabouço institucional de uma sociedade livre” (ibidem, p. 43), seria um processo lento realizado por meio de uma política de melhoria gradativa das leis baseada na própria evolução das normas gerais de conduta. Mas ela é necessária e não se confunde com a “obstinada insistência de alguns liberais em certas regras gerais primitivas, sobretudo o princípio do laizzes-faire” (ibidem, p. 42). Para Hayek (ibidem, p. 58), ao contrário dessa atitude dogmática de alguns liberais,

a doutrina liberal é a favor do emprego mais efetivo das forças da concorrência como um meio de coordenar os esforços humanos, e não de deixar as coisas como estão [...] Essa doutrina não nega, mas até enfatiza que, para a concorrência funcionar de forma benéfica, será necessária a criação de uma estrutura legal cuidadosamente elaborada, e que nem as normas legais existentes, nem as do passado, estão isentas de graves falhas [...] [essa doutrina] considera a concorrência um método superior [...] sobretudo por ser o único método pelo qual nossas atividades podem ajustar-se umas às outras sem a intervenção coercitiva ou arbitrária da autoridade [...] ela dispensa a necessidade de um “controle social consciente” [...] o bom uso da concorrência como princípio de organização social exclui certos tipos de intervenção coercitiva na vida econômica, mas admite outros que às vezes podem auxiliar consideravelmente seu funcionamento, e mesmo exige determinadas formas de ação governamental.

Esse equívoco das políticas liberais deu lugar, no entanto, a algo que Hayek considerava muito pior: o “coletivismo”, ou seja, todos os métodos que procuram planejar uma orientação comum para a sociedade. Nas suas palavras, “o significado do termo tornar-se-á mais preciso se deixarmos claro que por ele entendemos a espécie de planejamento necessário à realização de qualquer ideal distributivo” (ibidem, p. 57). Desse modo, ele alertou aos leitores que compreendessem que a crítica empreendida neste trabalho “visa exclusivamente ao

planejamento contrário à concorrência” (ibidem, p. 63). E sistematizou a polêmica instalada entre os planejadores modernos e seus adversários como um debate que (ibidem, p. 57)

busca determinar se os detentores do poder coercitivo devem limitar-se em geral a criar condições em que os próprios indivíduos disponham de um grau de conhecimento e iniciativa que lhes permita planejar com o maior êxito; ou se a utilização racional dos nossos recursos exige uma direção e organização

central de todas as nossas atividades segundo algum “projeto” elaborado para

este fim.

As consequências negativas do coletivismo para a humanidade seriam generalizadas. Isto porque as tentativas de planejar centralmente a sociedade para realizar um fim especifico são impossíveis e indesejáveis. Impossíveis, pois não haveria uma forma de medir e ajustar as preferências dos indivíduos através de um planejamento consciente, uma vez que “os limites dos nossos poderes de imaginação nos impedem de incluir em nossa escala de valores mais que uma parcela das necessidades da sociedade inteira” (ibidem, p. 78). Por essa razão, é o que um sistema de preços livres possuiria uma função fundamental no regime de concorrência, ao mesmo tempo orientando o e resultando do fluxo de decisões individuais (ibidem, p. 70).

E, mesmo que fossem possíveis, seriam indesejáveis, pois, a partir de uma perspectiva individualista, restringiria a diversidade de objetivos de felicidade e bem-estar que cada indivíduo prefira e possa ter. O controle da atividade econômica através do planejamento centralizado significaria controlar os meios que os indivíduos dispõem para decidir livremente sobre seus objetivos. O planejamento seria, pois, um controle da existência (ibidem, p. 104), ao passo que o regime de concorrência baseado na “propriedade privada é a mais importante garantia da liberdade [pois, assim] ninguém dispõe de poder absoluto sobre nós e, como indivíduos, podemos escolher o sentido de nossa vida” (ibidem, p. 115, grifo do autor).

Além de impossíveis e indesejáveis, essas tentativas de alcançar um ideal distributivo por meio do planejamento seriam também decorrentes do predomínio histórico de uma concepção da democracia como um fim e que expressaria a “crença ilusória e infundada de que, enquanto a vontade da maioria for a fonte suprema do poder, este não poderá ser arbitrário (ibidem, p. 86). Essa crença implicou que o corpo de representantes democráticos julgasse que seus poderes para deliberar sobre a organização social fossem ilimitados.

Essa concepção de democracia representaria uma ameaça para toda a sociedade livre, mas vejamos antes as consequências negativas para o próprio governo democrático. A primeira delas é que um corpo de representantes não seria capaz de chegar a acordos majoritários sobre diversos assuntos que dizem respeito à vida social e, consequentemente, aumentaria o desgaste das instituições democráticas junto à população (ibidem, p. 79-82). Uma segunda consequência,

que se desdobraria diretamente da anterior, é que a tarefa de planejar se tornaria inconciliável e intolerante com a democracia, pois, como afirma Hayek (ibidem, p. 83)

a concordância com a necessidade do planejamento, juntamente com a incapacidade das assembleias democráticas de apresentarem um plano [...] aumenta cada vez mais a convicção de que, se quisermos resultados, devemos libertar as autoridades responsáveis dos grilhões representados pelas normas democráticas [...] O clamor por um ditador econômico é um estágio característico da tendência ao planejamento.

Segundo Hayek (ibidem, p. 78), para a doutrina liberal, ao contrário, a democracia seria vista como um instrumento de uma organização própria, o Estado, que existe na medida em que os indivíduos concordam sobre certos objetivos específicos, geralmente relacionado aos meios para se alcançar outros fins mais supremos, sobretudo a liberdade. Ao compreendê-la dessa maneira, o mérito da doutrina liberal, para Hayek (ibidem, p. 85), foi ter “reduzido a gama de questões que dependem de consenso a proporções adequadas a uma sociedade de homens livres” e que “não é a fonte do poder, mas a limitação do poder, que impede que este seja arbitrário” (ibidem, p. 86). Nesse sentido, “a característica que mais claramente distingue um país livre de um país submetido a um governo arbitrário é a observância, no primeiro, dos grandes princípios conhecidos como o Estado de Direito” (ibidem, p. 89).

O fundamento lógico do princípio liberal do Estado de Direito seria a ignorância quanto aos resultados que determinada estrutura de regras pode gerar. Assim, ele deveria ser baseado em regras formais, que seriam impessoais, duradouras e estruturantes. Como Hayek afirma (ibidem, p. 95), a “imprevisibilidade dos efeitos concretos [...] é a característica distintiva das leis formais de um sistema liberal [...][e o que] contribui para desfazer outro equívoco acerca da natureza desse sistema: a ideia de que sua atitude característica é a inação do Estado”. Isto é, a política liberal deve ser ativa para assegurar o funcionamento de um regime de concorrência, através da criação e ajustamento dessa estrutura de regras formais.

Mas diferentemente desse intervencionismo jurídico, a gestão coletivista das atividades econômicas, como um planejamento que visa dirigir os resultados do regime de concorrência, estaria orientada por normas substantivas, que consistiriam em ser direcionadas, específicas e contextuais. Por essa razão, a “igualdade substantiva que exigiria uma determinada ação política visando a equidade estará sempre em contradição com o princípio do Estado de Direito [...] [e] qualquer política consagrada a um ideal substantivo de justiça distributiva leva à destruição do Estado de Direito” (ibidem, p. 94).

Temos, portanto, um encadeamento de uma perspectiva que estabeleceria um vínculo entre a ameaça ao Estado de Direito e, consequentemente, à sociedade livre, e a soberania

popular e o governo democrático (ibidem. p. 96). Isto é, o planejamento com vistas a um ideal distributivo decorreria, em primeiro lugar, de um equívoco filosófico a respeito da possibilidade de um ordenamento consciente da infinidade de preferências individuais; e em segundo lugar, do predomínio de uma concepção de governo democrático que não reconhecesse limites para a vontade da maioria. Mas, fundamentalmente, não seria possível alcançar conscientemente um ideal distributivo e a única estrutura de regras possível para organizar o regime de concorrência na qual as preferências se distribuem livremente seria aquela do Estado de Direito. E seria, ademais, essa estrutura de regras formais do direito que limitaria o governo democrático.

A imprevisibilidade dos efeitos concretos que caracteriza essas regras formais tornaria, ainda, como vimos, impossível que esse ideal distributivo seja o de alcançar equidade nos resultados da distribuição. Nesse sentido, Hayek (ibidem, p. 94) não tergiversa e afirma que “é inegável que o Estado de Direito produz desigualdade econômica” e que, enfim, “tudo que se pode afirmar em seu favor e que essa desigualdade não é criada intencionalmente com o objetivo de atingir este ou aquele indivíduo de modo particular”. Essa declaração favorável se explica diante da perspectiva de que a desigualdade continuaria existindo mesmo num regime de planejamento, pois não sendo possível um princípio geral de igualdade absoluta, qualquer igualdade relativa manteria as questões de que alguns continuam sendo desiguais, de quem decide sobre o grau de igualdade e como se distribui os recursos. Ela se transformaria, então, em um problema político quando fosse percebida como um resultado consciente do planejamento, ou seja, em suas palavras (ibidem, p. 117)

assim que o estado assume a tarefa de planejar toda a vida econômica, o problema da posição dos diferentes indivíduos torna-se inevitavelmente a questão política predominante [...] no sentido de que a sua solução dependerá exclusivamente de quem manejar o poder coercitivo.

A “justiça cega” do regime de concorrência e do Estado de Direito teria o mérito, portanto, de preservar o próprio governo democrático das pressões distributivas que o desgastam, pois como ela não seria criada intencionalmente “afeta bem menos a dignidade do indivíduo” (ibidem, p. 116).

Nesta obra, Hayek apresenta ainda um outro argumento moral para justificar a desigualdade. É que o empenho em garantir a segurança econômica, “muitas vezes apresentada como condição indispensável da autêntica liberdade” (ibidem, p. 127), produziu com o tempo o “deliberado menosprezo de todas as atividades que envolvem risco econômico e a condenação moral dos lucros que compensam os riscos assumidos, mas que só poucos podem obter” (ibidem, p. 135). Um regime de concorrência ofereceria não a segurança absoluta, mas a

segurança decorrente da liberdade econômica para buscar novas ocupações que evitassem perdas de remuneração, de empreender e aproveitar a grande variedade de oportunidades para prosperar. Seria verdadeiro que num regime de concorrência “as probabilidades de um homem pobre conquistar grande fortuna são muito menores que as daquele que herdou grande fortuna”, mas nesse tipo de regime tal feito seria possível pois ele seria o “único em que o enriquecimento depende exclusivamente do indivíduo e não do favor dos poderosos” (ibidem, p. 114).

Crítica dos fundamentos político-filosóficos e epistemológicos do coletivismo, sua concepção de governo democrático e seu ideal distributivo, suas consequências para a liberdade individual, para o Estado de Direito e para a sociedade livre: são esses os temas que Hayek apresenta em The Road to Serfdom com o propósito, como vimos, de encontrar um novo consenso em torno dos princípios liberais e denunciar os erros que pautaram a política ocidental no seu tempo. Esses temas serão aprofundados e refinados na estudo das obras seguintes.

Em razão do caráter declaradamente complementar entre The Constitution of Liberty e Law, Legislation and Liberty, o nosso método de análise será abordar simultaneamente o desenvolvimento que cada tema recebe no conjunto das duas obras. Pretendemos evitar, com isso, a retomada desnecessária de argumentos já desenvolvidos por Hayek, o que ocorreria caso nossa opção fosse por abordá-los cronologicamente.