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5 OS LIMITES DA ESTÉTICA DO GOSTO: ELEMENTOS PARA UMA

5.2 CRÍTICA FILOSÓFICA À ESTÉTICA DO GOSTO: A ARTE CONTRA A

5.2.3 Ascese e sublimação: o lugar da alteridade

A estética do gosto, ao centrar-se em torno do prazer estético, impôs a necessidade diferenciar o prazer ligado à arte e o prazer vulgar. A metáfora do gosto estético, como apontamos anteriormente no segundo capítulo, exprime a intenção teórica de cindir as sensações vulgares das estéticas, implicitamente, atestando o desprezo filosófico pelo corpo como sede de uma iminente regressão da humanidade à animalidade, dada a partilha comum da condição vivente entre humanos e os demais animais. A arte, desse modo, poderia atestar tanto a superioridade do humano sobre o mero animal, como também da cultura sobre a simples natureza. A expressão da estética kantiana como hedonismo castrado, nas palavras de Adorno (1970), exprime o caráter paradoxal da estética que, ao mesmo tempo em que afirma a conexão estreita entre arte e prazer, interdita o prazer. Kant constrói discursivamente o prazer estético como ligado à mera representação do objeto, suplantando o objeto concreto – fosse ele o belo natural ou o belo artístico. Ao mesmo tempo em que interditava a existência efetiva do objeto, ao definir o prazer estético como expressão do jogo das faculdades da imaginação e do entendimento, a estética kantiana afasta-se de modo paradoxal do belo em sua concretude. A marginalização do objeto estético concreto, graças à ascese e à sublimação, seria condição de possibilidade do prazer estético. Não por acaso, Nietzsche (1998) considera o ascetismo intrínseco ao ponto de vista kantiano, pressupondo uma familiaridade entre o ascetismo filosófico necessário para a ascensão ao conhecimento como algo que é imposto também à arte. Quanto a isso, Nietzsche considera que Kant exigiu, na arte, um espectador ascético, o que teria imposto amarras à arte e à beleza (FIGUEIREDO, 2004). Neste sentido, Adorno e Horkheimer (1985) mobilizam o exemplo mitológico de Ulisses amarrado para resistir ao canto das sereias, como uma metáfora para a situação da arte na modernidade: a experiência da arte à luz do distanciamento estético seria a própria causa da neutralização do poder interno a sua experiência, ou seja, a autoregulação ascética ao mesmo tempo em que atesta a superioridade da cultura sobre a natureza, também suprime o poder da arte.

A relação entre o distanciamento estético – condição do prazer puro – e o distanciamento científico – condição do conhecimento objetivo – não é a de uma afinidade casual (KARAKAYALI, 2004). A objetividade científica, conquistada através de uma visão distante

em relação aos fatos, capaz de capturar a totalidade sem interferir nela e sem por ela ser afetado, exprime discursivamente a intenção ascética vinculada à disposição científica. Na arte e na ciência, a visão mais pura da beleza e da verdade são identificadas através de uma interdição e suspensão dos supostos poderes atribuídos ao mundo da empiria: não apenas o poder de produzir aparências enganosas, mas, principalmente, de despertar interesses. A purificação do prazer à luz da estética conduz à paradoxal visão kantiana que pensa o belo como ligado ao prazer, mas sem referência ao objeto concreto. A ascese estética é inegável, afinal, onde está o corpo no discurso kantiano? Qual o papel desempenhado pela corporeidade na experiência da arte? A redução da arte a mero “fato mental”, ao jogo das faculdades da imaginação e do entendimento, exprimem a negação sistemática do corpo e do objeto artístico como fundamentos ou partícipes de uma genuína experiência da arte.

O problema em relação à estética do gosto é que, ao impor uma lógica ascética e de sublimação como condições de acesso ao prazer estético, acaba-se por atestar uma superioridade do sujeito sobre a obra, bem como os cinde. Esse modelo de comportamento em relação à arte é condenado por Gadamer e Adorno. Para ambos, a experiência da arte está ligada ao encontro com a alteridade, a diferença. A ascese e a sublimação, ao interditarem a experiência efetiva do objeto concreto, de modo a salvaguardar a superioridade ontológica do humano, acaba por dilacerar a experiência da arte, empobrecendo-a, esvaziando-a daquilo que ela tem de mais interessante, que é o encontro com a alteridade.

Assim, para Adorno (1970), o modelo de comportamento em relação à arte adequado deveria ser diametralmente oposto àquele instituído pela racionalidade instrumental – científica e estética – que, ao opor sujeito e objeto, acabaria por buscar a superioridade do sujeito sobre o objeto: na ciência, através da redução do mundo a um conjunto de experimentos padronizáveis e à redução da diversidade a um mínimo de identidades; na arte, através do gosto, ao banir da arte a experiência do não-idêntico, isto é, todo grau de inovação artística. Na arte caberia não o afastamento, mas aquilo que ele chamava de alienação na alteridade. Ao invés de perpetuar a lógica da autoconservação da identidade impressa no distanciamento epistemológico e estético, Adorno defende que o sujeito deveria mergulhar na alteridade, relacionar-se mimeticamente com a obra, submeter-se a ela, de modo a experimentá-la de modo autêntico, isto é, exatamente naquilo em que ela excede o próprio ego. Assim como a arte deveria transcender o estético para que o artístico pudesse aspirar à crítica, a experiência da arte como possibilidade de crítica está intimamente ligada ao fato de ela possuir um excedente em relação ao sujeito: é a alteridade, a diferença que fundamenta o poder crítico da arte, e ela só seria acessível através de uma experiência mimética, oposto ao distanciamento frio da razão instrumental ou do hedonismo

castrado de Kant, que nada conhece ou experimenta do objeto concreto graças a sua aversão à corporeidade e aos poderes das sensações. Adorno reabilita a experiência da arte por duas vias: primeiro, re-significando a sensibilidade e a corporeidade na experiência da alteridade e, ao mesmo tempo, através de uma recondução da arte à dimensão cognitiva. O acesso subjetivo à alteridade da obra de arte seria pensado através da supressão da abstração estética, exigindo que o sujeito, na experiência da arte, partilhasse com essa uma unidade ainda que momentânea.

Para Gadamer (2014), por seu turno, reabilitar a experiência da arte também tinha como pressuposto a supressão da filosofia da consciência, isto é, a cisão entre objeto e sujeito, obra de arte e subjetividade. O conhecimento da arte, segundo seu ponto de vista, também possui um vínculo com a alteridade e a diferença: a arte traz à tona mais do que a subjetividade já possuía. O excedente da experiência da arte, ligado à alteridade, somente seria acessível pela ligação inextrincável entre sujeito e objeto na experiência da arte como um jogo.

Para Hamlin (2015), à luz do pensamento de Gadamer, há uma possibilidade de se instituir uma reflexividade mediada pela arte que se daria não através do distanciamento estético, mas exatamente por uma via contrária, a do êxtase. Na experiência da arte, o indivíduo poderia transcender suas próprias limitações através do êxtase, ao sair de si, perdendo-se na alteridade e, a partir do estranhamento que este encontro pode gerar, ascender a uma reflexividade passível de gerar maior autocompreensão. A experiência da arte como jogo implica concebê-la como um desafio à subjetividade de quem a experimenta, o que acabaria por exigir do indivíduo uma atividade hermenêutica. Assim como Adorno distinguia entre experiências autênticas e experiências falsas, Gadamer afirma que a verdadeira experiência hermenêutica somente se dá quando se encontra com a alteridade, a diferença, com o excedente em relação à subjetividade, o irredutível ao sujeito. Nesse sentido, Hamlin (2015) realiza uma leitura da experiência da arte como espaço privilegiado para a efetivação da experiência hermenêutica, exatamente pelo papel desempenhado pelo êxtase na dimensão estética.

Em ambos os casos, reconhece-se a necessidade de uma alienação estética na alteridade, um contato íntimo com aquilo que é irredutível à identidade e à subjetividade, isto é, a obra de arte. Essa experiência, certamente, mais próxima da dissonância do que do belo, é concebida como uma harmoniosa adequação entre obra de arte e público. Por essa razão Gadamer defendia a supremacia do gênio em relação ao gosto: o gênio é o agente da inovação, o gosto o freio nivelador da alteridade, conduzindo a arte aos limites do já conhecido e, por isso, tornaria o objeto artístico mais facilmente compreendido pelo público.

A leitura da estética kantiana por parte dos críticos, todavia, como já foi mostrado inclusive no capítulo segundo, não é totalmente verdadeira e justa, afinal, como Lyotard (1993)

aponta, o gosto kantiano, por ser um juízo reflexivo (isto é, julgamento de um particular no qual a regra a ser aplicada está ausente), não poderia estar plenamente determinado: uma vez que apenas o particular está dado, a reflexão se torna necessária para encontrar qual seria a regra à qual ele estaria subsumido. Mas, independentemente do grau de divergência entre as diversas interpretações da obra de Kant, o fato essencial é que, do ponto de vista teórico, a leitura interessada da estética de Kant foi mobilizada tanto para criticar o fato de que seu discurso estético aniquilaria a relação com o conhecimento, com a crítica e a reflexividade, quanto para estabelecer que a centralidade do gosto tornaria a experiência da arte inadequada para dar conta da diferença e da alteridade.

Compreender a experiência da arte à luz da harmonia, ao invés da dissonância, torna mais difícil supor o lugar ocupado pela alteridade. Uma experiência da arte na qual nada haja que exceda o que já está presente na identidade, dificilmente tornará possível pensá-la como um fundamento para o conhecimento, a crítica, a reflexividade.