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3 A AMBIVALÊNCIA POLÍTICA DA LÓGICA ESTÉTICA DO GOSTO

3.4 HANNAH ARENDT: DESLOCAMENTO DO GOSTO DA ESTÉTICA PARA A

ARENDT, 1992).

Afinal, o gosto, embora seja fundamentado na subjetividade, aponta para a possibilidade de que os indivíduos, construam consensos através do sentimento, contradizendo o caráter tirano e irreversível da verdade racional (EAGLETON, 1993). O poder político atribuído à lógica estética do gosto é impensável sem a paralela crise da razão em constituir um projeto de harmonia social verdadeiramente capaz de conciliar indivíduo e sociedade. A mobilização contemporânea do gosto tem a ver, exatamente, com seu potencial de conciliar o particular e o universal, isto é, permitir a construção intersubjetiva do coletivo sem ferir as unidades constituintes – ou seja, os indivíduos. Há algo na lógica estética do gosto que fundamentaria seu potencial para instituir uma lógica política distinta, verdadeiramente democrática, onde a diferença tem seu lugar salvaguardado. Como, então, seria possível deslocar a exigência do gosto – de conservar sua autonomia sem abdicar do consenso – para a dimensão política? Em que a dimensão estética poderia ser útil à política?

3.4 HANNAH ARENDT: DESLOCAMENTO DO GOSTO DA ESTÉTICA PARA A POLÍTICA

Hannah Arendt esteve diante da barbárie moderna dos regimes totalitários, fenômeno ao qual dedicou investigações aprofundadas como em As Origens do Totalitarismo. Aquilo

diante do qual se deparou não foi outra coisa senão um projeto de aniquilamento da diferença. Paradoxalmente, ao reconhecer a instrumentalização das estruturas de poder na direção de um maior controle e dominação, Arendt (1960) postulou que esse empreendimento era antipolítico por natureza. O mais simples argumento é também o mais rigoroso: o empreendimento histórico de redução da pluralidade à unidade arruína os fundamentos da política (ARENDT, 1997).

Para a filósofa, o político é constituído por ações e discursos realizados em um mundo comum, partilhado por outros sujeitos, um mundo público. A pluralidade é o fundamento do político. Utilizando uma metáfora, ela diz, em Que és la política?, que Deus criou apenas o Homem, e que tanto a ciência quanto a filosofia e a teologia prolongam a seu modo a obsessão pelo Homem, por essa universalidade no singular, abstração de todas as diferenças. Contrariamente, a existência de “homens” no plural seria produto da própria história humana, não sendo evento transcendental em relação à história. A política possuiria sua especificidade exatamente no fato de que ela só é possível em meio à pluralidade. É impensável sem a existência de outros seres humanos, sem a vivência de um em meio a outros. Por essa razão, para Arendt, há algo de político em um fenômeno aparentemente banal como o nascimento. Mas, a seus olhos, nascer é romper um certo isolamento, vir à tona, tornar-se aparente, realizar a aparição em um mundo já existente e habitado por outras pessoas. O político, então, seria caracterizado pela ação realizada em um mundo público, onde a existência do outro é pressuposta como uma audiência, e tendo como característica o fato de ser um ato irreversível e imprevisível (ARENDT, 1960).

Como a ação é essencial à política, para Arendt (1997) o sentido da política não seria outro que não a liberdade. Todavia, a liberdade de Arendt (1960) nada tem a ver com a liberdade conquistada através de um afastamento em relação ao mundo. A emancipação em relação às determinações práticas da vida, culminando em um encerramento da liberdade a um espaço privado – ora como liberdade interior, ora como livre arbítrio – seria um empobrecimento da verdadeira liberdade. Ao associar liberdade com a distância em relação ao mundo público, à sociabilidade e à comunidade, estaria se produzindo um isolamento cuja consequência seria a destruição do político. O político, pelo contrário, é agir e falar em um mundo público, em meio a outros indivíduos, realizar uma aparição para uma determinada audiência. O caráter público da ação exigiria uma série de virtudes, especialmente a coragem, para aparecer e submeter-se a julgamentos diversos. A verdadeira liberdade, então, é aquela da ação realizada em meio à pluralidade e à intersubjetividade, submetido ao caráter irreversível e imprevisível da ação, demonstrando liberdade através da coragem de exprimir-se em meio a uma audiência de julgadores. Assim, se o sentido da política é a liberdade, para Arendt seria na ação que ela

estaria localizada, afinal, “homens são livres [...] enquanto agem, não antes ou depois; porque ser livre e agir são a mesma coisa” (ARENDT, 1960, p. 33).

Se o político e a liberdade são impensáveis fora da pluralidade, há dois importantes aspectos inerentes à concepção arendtiana da política.

Como o processo de redução da pluralidade à unidade aparece como antipolítico por natureza, Arendt concebe uma política oposta ao consenso, ou, ao menos, uma política que não enxerga o consenso como o fim último dos debates públicos. Diverge, assim, da visão de Habermas (2014), que conceberia a esfera pública como lugar privilegiado para a construção de consensos a partir de uma racionalidade comunicativa, em que os sujeitos, através da elaboração dos melhores argumentos, estariam em condições de construir um consenso não- violento. Diferentemente disso, Arendt não enxergaria a política como voltada à conquista da universalidade do consenso, mas sim como lugar para a comunicação entre individualidades, isto é, espaço para a intersubjetividade (ZERILLI, 2005). Para Arendt, o que melhor exprimiria a dimensão política das discussões seria uma oposição entre opinião e verdade (BEINER, 1992). Enquanto esta última abre espaço para a existência de argumentos e demonstrações irrefutáveis, impelindo todo debate a um termo comum quase inexorável, a opinião pertenceria ao reino das disputas irredutíveis a um único ponto de vista, pois presume a existência de diversos pontos de vista.

O segundo impacto da concepção da política como pluralidade é que, dessa forma, Arendt oporia a atividade filosófica – o pensamento livre – bem como o imperativo moral, à política, pois seriam atividades privadas, que operariam uma despolitização por suspender ou restringiriam a importância da intersubjetividade (FLYNN, 1988). Diferentemente, para Arendt, seria a atividade do julgamento, pois ainda que seja subjetivamente fundamentado, possui um destino público. É na publicização do julgamento que Arendt (1992a; 1960) encontra afinidade entre o julgamento e a política e, por consequência, entre a arte e a política: em ambos os casos, o mundo público é um mundo de audiência, de espectadores e julgadores.

Se a capacidade de julgar aparece como adequado para fundamentar uma política da pluralidade, para Arendt (1992a; 1992b) o julgamento estético – o gosto – é eleito o instrumento privilegiado para esse papel. Ao trazer o gosto para a dimensão política, utiliza-se de seu sentido metafórico, assim como os estetas o fizeram. Concorda divisão lógica dos sentidos, separando- os entre sentidos públicos (visão e audição) e privados (paladar, olfato, tato), considerando os primeiros como ligados à possibilidade de instituir representações, enquanto os últimos teriam o privilégio de serem sentidos capazes de produzir discriminações (ARENDT, 1992a). A questão se torna, então, como o mais privado dos sentidos poderia ser mobilizado para uma

teoria política que pressupõe a existência da pluralidade, da intersubjetividade, de um mundo público.

Como Arendt mobiliza o gosto – em seu sentido estético – para fundamentar sua política?

Ótimo ponto de partida é o próprio debate entre Kant e Hume acerca do padrão do gosto. Lembremos que para Hume (2008) é possível postular a existência de um padrão do gosto a partir do reconhecimento de autoridades: o crítico. Para Kant (2010), por outro lado, não é possível que haja um padrão objetivo e recusa a existência de qualquer autoridade em matéria de gosto que fosse capaz de impor determinado julgamento a todos os outros. Pelo contrário, para Kant, a universalidade – um consenso estético – só seria possível através de sentimentos, haja vista que o gosto é um sentimento de prazer/desprazer e não possui qualquer relação com conceitos e conhecimento.

Arendt (1992a; 1992b) apropria-se da teoria kantiana exatamente por essa razão. Em Kant, as discussões em matéria de gosto são marcadas pela exigência de autonomia, liberdade e irredutibilidade da pluralidade. A universalidade do gosto é apenas uma possibilidade, não uma necessidade. O julgamento estético, em comparação com o pensamento lógico ou o imperativo moral, possuiria maior afinidade com a intersubjetividade, a comunicabilidade e a sociabilidade (SCHIO, 2011). Afinal, na visão kantiana, ao se proferir um julgamento em matéria de gosto, realiza-se um julgamento público: “isto é belo” possuiria uma profunda distância em relação ao “isto me agrada”. A asserção segundo a qual algo é belo é pública e, por consequência, pressupõe a possibilidade de que outros venham a concordar com o julgamento emitido.

Se, por um lado, o julgamento estético postula a possibilidade de um assentimento, por outro, haja vista que o gosto é um sentimento que espera ser partilhado universalmente, não possui a força ou violência das proposições científicas e filosóficas. Aqui, o essencial é reter a distinção entre opinião e verdade (BEINER, 1992). Para Arendt, o gosto pertence ao reino das opiniões e, por essa razão, não poderia ser destruído por qualquer demonstração ou argumento. Embora seja possível a consecução de consensos através de uma persuasão em meio aos debates, Arendt afirma que o essencial às discussões em matéria de gosto é que eles são opiniões e não possuem qualquer necessidade de se adequarem a algum critério absoluto, afinal, o gosto, para Kant, é um juízo estético reflexivo, não um juízo determinante. Sendo um juízo para o qual falta o universal, a regra, a lei, o gosto é sempre um processo de reflexão indeterminado. Alheio ao peso de uma totalidade irrefutável, o gosto aparece como modelo para a vida política: por um lado, concede liberdade e autonomia àquele que profere o julgamento, por outro, não tem

como telos a construção de um consenso. Em matéria de gosto, a pluralidade não é uma anomalia, o dissenso não é uma violência, o que o tornaria privilegiado para se pensar o político (FLYYN, 1988)

Todavia, ao defender a autonomia e a liberdade dos indivíduos, Arendt não está regredindo à esfera privada. Pelo contrário, Arendt (1992a; 1992b) retoma o julgamento estético como modelo para se pensar o político decorre exatamente do fato dele possuir um aspecto não- subjetivo em meio ao sentido mais subjetivo e privado. A dimensão não-subjetiva do gosto é a própria intersubjetividade. É a interação entre sujeitos que permite ascender a uma dimensão imparcial, ultrapassando o reino privado dos interesses e preferências. Assim, é a imparcialidade do gosto que o torna superior à objetividade das proposições científicas.

A imparcialidade seria produto do próprio funcionamento do gosto enquanto juízo reflexivo. Ora, haja vista que não há uma regra, uma lei, um universal a ser aplicado a determinado particular, a reflexão busca, de modo livre e indeterminado, por um padrão. O julgamento estético, para Arendt, tem sua vitalidade não na busca pelo assentimento puro e simples, de uma imposição de um ponto de vista sobre os demais, mas, pelo contrário, enraíza- se naquilo que ela chama de mentalidade alargada (FLYYN, 1988). A ausência de padrão leva os sujeitos a colocarem-se no lugar de outros sujeitos, a assumir o ponto de vista de outros, ultrapassando, assim, as condições privadas de seus pensamentos, sentimentos e julgamentos. A imparcialidade dos debates em matéria de gosto enraíza-se na possibilidade de pôr-se no lugar de outros, não como uma forma de empatia, mas pura e simplesmente pensar nas diversas possibilidades de julgamento e apreciação a que estão sujeitos os objetos estéticos.

O alargamento da mentalidade seria o produto da imaginação, faculdade fundamental ao julgamento estético (BEINER, 1992). Para Kant, a experiência estética tinha como fundamento o livre jogo da imaginação e do entendimento. A imaginação, para Arendt, responderia pela possibilidade de tornar “o ausente presente”. Assim, ao mesmo tempo em que a imaginação permite substituir a experiência sensorial mais crua por uma representação do objeto experimentado – transição da presença real por uma presença imaginada - também tornaria possível aos sujeitos colocarem-se no lugar dos demais: tornar o julgamento de terceiros mentalmente presente. A mentalidade alargada é um produto subjetivo, não é necessariamente um fato objetivo, do mundo público. Ocorre independentemente da presença de outros, afinal, ela se consuma na possibilidade de que outros tenham julgado de forma distinta, através de outro ponto de vista. Pressupõe uma intersubjetividade, exterior ou internalizada no pensamento, e produz uma imparcialidade fundamentalmente através das comparações que ela realiza entre os diversos pontos de vista, julgamentos.

O elemento não-subjetivo do gosto – a intersubjetividade, a comunicabilidade, a validade pública – é fundamental para o caráter político do gosto, embora conceda um respeito à liberdade e autonomia dos sujeitos. Arendt retoma Kant para afirmar as três máximas do senso comum (FLYYN, 1988). A primeira, a máxima do esclarecimento diz: pensar por si próprio. A segunda, a máxima da mentalidade alargada: pensar a partir do ponto de vista de qualquer outro. A terceira, máxima da consistência: pensar de modo consistente. As máximas do senso comum são máximas do julgamento. Em “O que é Esclarecimento”, Kant (2005) afirmava que o uso público da razão era fundamental à autonomia e à liberdade: julgar a partir de si próprio, ter-se como fundamento sem submeter-se a nenhum outro juiz. A máxima da mentalidade alargada permite que os sujeitos sejam capazes de ultrapassar os limites de sua condição privada assumindo um ponto de vista mais complexo, rico, imparcial. A consistência exige a coerência, a harmonia dos julgamentos proferidos.

Enxergar na lógica estética do gosto o fundamento para um discurso político só é possível através de uma leitura que transcenda o subjetivismo. Não é por outra razão que Luc Ferry (1994), ao se deparar com o contexto pós-tradicional contemporâneo, coloca, no horizonte democrático, o respeito à diferença (tanto a existência do pluralismo quanto o respeito a autonomia individual) como central à política, e defende que a lógica estética do gosto permitiria pensar a possibilidade de formas mínimas de consenso, instituídas a partir de baixo, através de acordos intersubjetivos, mediados não por uma racionalidade tirânica e autoritária, mas pela espontânea esfera do sentimento.

A lógica estética do gosto permitiria conciliar o ímpeto individualista e a exigência social de se instituir uma comunidade. Assim como em Arendt, a dimensão estética funcionaria como modelo para uma política da pluralidade, sem pretensão de reduzir a diversidade a uma unidade. Do ponto de vista de Eagleton (1993), o recurso à dimensão estética para se pensar um modelo de política, nem sempre manteve uma conexão verdadeira com a liberdade. Em A Ideologia da Estética, Eagleton busca mostrar como o mundo dos sentimentos e da interioridade – objetos privilegiados da Estética – foram mobilizados pelo discurso filosófico para se pensar possibilidades de se instaurar consensos ideológicos, deslocando a dominação social das estruturas sociais para a própria subjetividade. Dessa forma, os sujeitos passariam a internalizar a dominação, gerando um problema histórico: se os indivíduos são livres e autônomos na medida em que seguem seus próprios princípios subjetivos de ação, como poderiam, ao seguir sua própria interioridade, seu próprio coração, seus próprios desejos e sentimentos, gerar ações que ao invés de exprimir liberdade, apenas reproduzem de modo sofisticado a dominação social? A Estética, aos olhos de Eagleton, proporcionou, a partir de diversos pensadores,

possibilidades políticas diversas e, no caso da estética kantiana, tem sido comum o recurso ao juízo reflexivo – o gosto – como fundamento para uma política que consiga conciliar, em um espaço intersubjetivo, a autonomia e a liberdade individuais e, ainda assim, produzir espaços de consenso, através do sentimento.

Todavia, embora a teoria kantiana seja mobilizada constantemente com a finalidade de se pensar um modelo de política para o contexto democrático (plural, individualista, pós- tradicional, hedonista), o gosto foi objeto privilegiado de crítica para Theodor Adorno (1985; 1970), exatamente pela afinidade de sua lógica estética com a ordem opressora de seu tempo. Desse modo, sua análise contribuiria para problematizar a relação entre a lógica estética do gosto e política – mas, nessa perspectiva, não como um instrumento ligado à liberdade, à autonomia, à pluralidade.

Como o filósofo alemão reconstruiu, em meio a suas análises, a conexão entre a dimensão estética e a política e, de modo mais específico, entre a lógica estética do gosto e a lógica da dominação social de seu tempo? O que o impeliu a colocar sob suspeita a esfera da estética que, em geral, é associada com o reino da liberdade e da autonomia? Como poderia o gosto, tão subjetivo, ter sido capturado e mobilizado no sentido de gerar mais opressão, ao invés de ser um reduto de liberdade e autonomia individuais, principalmente nos termos de reter a autonomia do julgamento e a liberdade do sentimento?