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A Sociologia tem uma economia própria. Há ao menos dois importantes princípios subjacentes à atividade científica: (1) a possibilidade de produzir instrumentos – técnicas, conceitos, teorias e mesmo conhecimentos – passíveis de serem reaplicados a outros contextos; (2) a necessidade de gerar instrumentos e saberes novos, alguns não plenamente ajustáveis aos sistemas teóricos vigentes. A concepção de uma racionalidade científica segue ambas as direções: (1) a transcendência do conhecimento produzido em relação ao mero caso investigado; (2) a necessidade de avançar em direção ao ainda-não-conhecido. Uma investigação – como é o caso das pesquisas acadêmicas – propicia o constante confronto com o ofício de sociólogo: como contribuir para a existência e desenvolvimento do campo de saber ao qual se está vinculado? Apesar da dificuldade em se responder à questão, de certo, há algo a esse respeito que não se pode negar jamais: tanto a possibilidade de ampliação do campo de jurisdição de determinados sistemas teóricos quanto a necessidade de se produzir novos conhecimentos são empreendimentos coletivos. À semelhança da criação artística, que para Adorno se daria por uma lógica de transição mínima do velho em direção ao novo, na Sociologia, a conquista do novo (a descoberta do que ainda não era conhecido) exige tempo e investimento de vários agentes. A esse respeito, Bourdieu (2015, p. 22) disse algo fundamental:

ora, o cálculo infinitesimal não conheceu seus fundamentos a não ser progressivamente; a noção do número só atingiu sua clareza ao fim de dois milênios e meio. Os procedimentos que instauram o rigor surgem como respostas que não sabemos formular a priori, que somente o desenvolvimento da ciência faz emergir. A ingenuidade perde-se lentamente. Isso, verdadeiro na matemática, o é a fortiori nas ciências da observação nas quais cada teoria refutada sugere novas exigências de rigor. Portanto, é inútil apresentar a priori as condições de um pensamento autenticamente científico

O empreendimento aqui efetivado busca, então, não o acesso a um conhecimento eterno e irrecusável, dotado do poderoso título de uma verdade científica, mas, mais exatamente, contribuir para a transição mínima do já-conhecido para o novo. Contribuir no sentido de gerar novas possibilidades, de afetar novas investigações, de realizar um esforço capaz de gerar movimento através de uma permanente (auto)crítica.

A presente investigação não teria sido possível sem a existência de um conjunto de interlocutores que, apesar das divergências, constituem um problema sociológico específico: dada a crítica à teoria bourdieusiana, especialmente as que incidem sobre o habitus, deve-se abandonar sua teoria ou repensá-la à luz de novas possibilidades?

O empenho em busca de evidências contrárias ao determinismo e ao reprodutivismo gerou ao menos três importantes vias dentro da própria teoria de Bourdieu: (1) a reflexividade sociológica; (2) o conceito de hysteresis; (3) a existência de habitus clivados. A reflexividade sociológica é, certamente, a via mais bem fundamentada, exprimindo o processo através do qual o sociólogo poderia acessar os determinantes não-conscientes de sua própria atividade sociológica. A hysteresis permitiria contradizer a condenação bourdieusiana ao atestar a possibilidade histórica de que a cumplicidade ontológica entre as estruturas mentais e as estruturas sociais seja rompida. A hysteresis exprime a possibilidade da fissura, da perda de aderência, do desencontro. Por fim, a existência de habitus clivados afirma a possibilidade de que, ao invés de os agentes serem dotados de um princípio homogêneo impelido a gerar ações semelhantes e de acordo com as demandas da ordem existente, sejam dotados de distintos princípios de ação, alguns contraditórios, gerando um grau de incerteza em relação a seu comportamento.

Os três resíduos, deve-se salientar, possuem algo em comum: uma leitura política subjacente. Em todos, trata-se da possibilidade de uma, por assim dizer, desintegração social como princípio necessário para qualquer possibilidade de mudança através da quebra da cumplicidade ontológica, instituída através da integração social (levada a cabo pela socialização e subjetivação de novos agentes).

Apesar de tais resíduos neutralizarem o caráter peremptório da crítica, mostraram-se não inteiramente suficientes para fundamentar uma relação consistente do habitus com a liberdade e a reflexividade: (1) a reflexividade torna-se um monopólio sociológico, passando a ser inacessível aos agentes comuns em suas práticas vulgares; (2) a hysteresis aparece como um mero acidente histórico no qual as estruturas mentais e as estruturas objetivas se desalinham, temporária e acidentalmente, tendendo para um novo ajustamento; (3) o habitus clivado mostra- se insuficiente por ser, tendencialmente, compreendido como uma forma de sofrimento subjetivo.

Dada a insuficiência desses resíduos, propus olhar para a dimensão estética, a experiência da arte e do gosto como práticas nas quais se pudesse colocar o habitus em tensão, rompendo seu engessamento. Seguindo o princípio de progresso através de uma transição mínima, busquei extrair elementos que pudessem apontar evidências contrárias a uma teorização determinista e reprodutivista do habitus, isto é, incapaz de abrir margem para a existência de graus de liberdade e emergência de alguma forma de reflexividade. Propus, então, problematizar o habitus a partir da estética – e especificamente através da categoria estética do gosto.

O problema se tornou passível de formulação teórica a partir de três elementos: (1) o reconhecimento da centralidade da categoria do gosto nas investigações bourdieusianas dedicadas à arte; (2) a (re)construção teórica da ambivalência política em torno da categoria estética do gosto, pensado como dotado de uma lógica ora afim à dominação social, ora afim à liberdade; (3) o reconhecimento da relação entre gosto e habitus na teoria de Bourdieu, implicou no fato de que a existência de uma ambivalência política do gosto permitia uma visão mais flexível do próprio habitus.

Como resultado, pode-se avaliar as conclusões partir de 3 pontos fundamentais: (1) em relação à liberdade; (2) em relação à reflexividade; (3) em relação ao reconhecimento da existência dos limites internos à própria interpretação bourdieusiana do que vem a ser a experiência estética e de como o habitus é posto em ação.

Em relação à liberdade, chegou-se à conclusão de que, para Bourdieu, existe uma liberdade estética, através de um habitus aestheticus presente em artistas e um público homólogo, ambos dotados de disposições estéticas puras. A liberdade estética seria possível a partir de quatro elementos: (1) o reconhecimento bourdieusiano da existência de um campo de produção artístico autônomo, atestando o poder de os agentes conquistarem e instituírem práticas livres; (2) o poder do artista de instituir um estilo de vida próprio, ou seja, de legislar sobre sua própria identidade e práticas, contradizendo a visão do agente como um mero autômato, cuja identidade teria sido construída e determinada pelas condições de existência e pelo arbitrário cultural internalizado; (3) o espírito ambivalente e leviano, fundamento subjetivo para uma relação heterodoxa com o mundo, isto é, algo capaz de romper a adesão perfeita e imediata entre as estruturas mentais e as estruturas objetivas; (4) o poder simbólico da arte, atestado no reconhecimento bourdieusiano do artista como um intelectual capaz de, através da formalização artística, produzir uma objetivação das estruturas sociais e psicológicas, ultrapassando o senso comum e divergindo da metodologia científica.

Todavia, apesar de reconhecer a existência de uma liberdade estética a partir de uma espécie de habitus aestheticus, Bourdieu não a percebeu como universal – mas passível de universalização. Restringiu-a à disposição estética pura, ao estrato social dos agentes dotados de um gosto puro, negando-a àqueles que seriam dotados de um gosto médio ou popular. Pelo contrário, esses últimos foram alinhados na direção da dominação e do assujeitamento. Embora isso apareça, à primeira vista, como pura e exclusivamente uma limitação de sua teoria, é válido lembrar que a ambivalência política interna à categoria estética do gosto – construída do ponto de vista filosófico – persiste do ponto de vista sociológico. Consequentemente, à luz do gosto,

o habitus pode ser pensado tanto à luz da liberdade (gosto puro) quanto da dominação (gosto médio e gosto popular).

Se, em relação à liberdade estética, a teoria bourdieusiana traz de modo explícito seus fundamentos, em relação à reflexividade mediada pela experiência estética há o oposto, isto é, ela é implícita e aparece em estado latente. Em um primeiro momento, Bourdieu reconhece a possibilidade de a experiência da arte ser uma via de acesso às estruturas profundas da realidade social e psicológica – tornando-a, em um segundo momento, interditada à experiência dos agentes. Com isso, Bourdieu se contradisse, afinal, o gosto puro – explicitamente reconhecido como instrumento de liberdade conquistado e produzido historicamente por artistas e pelo público – é para ele tanto um “gosto de reflexão” (enquanto que os gostos impuros são “gostos dos sentidos”), quanto um “gosto de liberdade” (enquanto que os demais são “gostos de necessidade”). O vínculo entre gosto puro, liberdade e reflexão segue uma tradição específica: a kantiana. Neste sentido, foi o modo como Bourdieu se apropriou da formulação kantiana que gestou tais contradições e limites.

Se, do ponto de vista de Bourdieu, a possibilidade de uma reflexividade estética está presente, mas bloqueada, foram encontradas evidências teóricas que contradizem sua visão, mostrando que não seria necessário recorrer a um método científico para fazer desabrochar o potencial da experiência da arte como via de acesso ao conhecimento, à crítica, à reflexividade. Para isso, investigou-se a razão pela qual Bourdieu tornou-se incapaz de enxergar no próprio âmbito da experiência estética uma forma de ascensão à reflexividade. A conclusão a que se chegou reside na existência de um Bourdieu leitor de Kant, isto é, à relação que ele construiu com a teoria kantiana.

A expressão – Bourdieu leitor de Kant – tem o objetivo de tornar o mais claro possível que: (1) em contradição com a autoimagem construída por Bourdieu como um transgressor do discurso filosófico e dos valores estéticos atrelados a ele, em especial à figura de Kant e à sua teoria, o sociólogo francês manteve com ele um íntima cumplicidade; (2) consequentemente, dada a presença e o papel desempenhado por Kant, contradiz-se o poder da reflexividade sociológica levada a cabo por Bourdieu, trazendo à claridade um importante determinante teórico interno a seu sistema, que passou desapercebido ao francês e lhe trouxe uma série de problemas; (3) a existência de um Bourdieu leitor de Kant evidencia que há um modo específico de leitura e de apropriação do sistema filosófico de Kant, movido por interesse e conveniência, os quais negam a purificação exigida pela racionalidade científica.

O papel desempenhado por Kant foi central nas investigações bourdieusianas sobre o mundo da arte. Bourdieu concedeu à análise fenomenológica da experiência estética, efetuada

por Kant, um privilégio: considerou-a verdadeira e um ideal histórico a ser alcançado – mas ainda não universalizado – e passou a ocupar-se primordialmente em reconstruir as condições históricas de sua possibilidade. Neste sentido, o Bourdieu leitor de Kant ocupou-se mais com a crítica do gosto do que com o próprio gosto.

A perspectiva bourdieusiana assemelha-se a uma crítica que coloca em síntese duas perspectivas: (1) o modelo de crítica kantiana – preocupada com as condições a priori do julgamento estético puro, bem como de sua possibilidade de instituir consensos; e (2) o modelo instituído por Adorno – preocupado com as relações entre estética e o poder. A crítica do gosto de Bourdieu possui a vantagem de lidar tanto com os fundamentos sociais do gosto quanto com seus vínculos com o poder – conquista de mais liberdade ou produção de mais opressão.

O problema é que o modo como Bourdieu realizou sua leitura de Kant teve como consequência a autoimposição de limites graves. A conclusão a que se chegou é que sua leitura buscou extrair do gosto e da experiência estética aquilo que era mais próximo e conveniente para sua teoria social: (1) a categoria estética do gosto, por ser logicamente concebida de modo semelhante ao habitus, tornava-se uma categoria privilegiada para Bourdieu; (2) a concepção da experiência estética como uma feliz, acidental e milagrosa coincidência entre as estruturas mentais e as estruturas objetivas, possuía uma ligação íntima com a própria teoria da dominação simbólica proposta por Bourdieu. Desse modo, o gosto – esse saber prático infraconsciente – foi mobilizado no sentido de fundamentar a homologia estrutural entre a subjetividade e a objetividade. A consequência foi que: Bourdieu tornou-se incapaz de permitir o acesso dos agentes à reflexividade – tanto no gosto puro, quanto no gosto médio e popular.

A razão é que, como a crítica filosófica contribuiu para esclarecer, o discurso bourdieusiano repetia um erro histórico: imprimia uma redução da arte à estética. Bourdieu construiu uma visão da experiência da arte na qual: (1) estavam marginalizados/excluídos valores estéticos não-hegemônicos (distintos da beleza, da harmonia, do prazer estético e da centralidade do gosto); (2) exigia-se a cisão entre o mundo da arte e o mundo prático, entre estética e ética, entre aparência estética e realidade; (3) pressupunha o poder de ascese e sublimação, uma capacidade de autocontrole e de autoimposição de um distanciamento do agente em relação à obra. Como consequência, a centralidade do gosto teria direcionado a arte para a dimensão meramente sensível, perdendo de vista sua relação com o conhecimento e a interpretação: ou seja, interditava-se a possibilidade de uma reflexividade.

Dada a constatação desse elemento limitador no modo como Bourdieu construiu sua própria visão da experiência da arte – à luz da estética e da centralidade da categoria do gosto – chegou-se à conclusão de que haveria ao menos duas vias fundamentais para se pensar o lugar