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2 OS LIMITES IMPOSTOS PELO HABITUS AO PROJETO

2.5 HYSTERESIS: ACIDENTE HISTÓRICO E EMERGÊNCIA DA

Contradizendo parte da crítica, o conceito bourdieusiano de hysteresis exprime uma possibilidade histórica na qual o suposto ajustamento perfeito entre as disposições do habitus e determinado contexto prático não ocorre. Hysteresis é a perda da aderência entre os agentes e as estruturas, ocasionada pela incongruência lógica entre o princípio prático da ação e seu contexto de aplicação.

Em Outline a Theory of Practice, Bourdieu (2013b, p. 83) afirma que “a hysteresis do habitus [...] é sem dúvida um dos fundamentos do desfasamento estrutural entre as oportunidades e as disposições”. Em Convite à Sociologia Reflexiva, Bourdieu (1992, p. 130)

afirma que “são também casos de discrepância entre habitus e campos nos quais a conduta permanece ininteligível, a menos que você introduza o habitus e sua inércia específica, sua hysteresis”, lembrando que a relação entre a dimensão subjetiva e a dimensão objetiva ocorre em uma escala variável que vai desde o perfeito ajustamento entre as expectativas subjetivas e as condições objetivas até um grau de disjunção radical, provocando uma ruptura.

A hysteresis possui um princípio básico: o desajuste entre as disposições e as demandas contextuais. Todavia, os interlocutores de Bourdieu compreendem de forma distinta as razões pelas quais o desajustamento ocorre.

Uma das perspectivas concebe o princípio básico como resultante da distinção de temporalidades e lógicas entre o habitus e o campo, o que, por essa razão, significa enxergar um grau de autonomia entre ambos os espaços, Strand e Lizardo (2016) referem-se a isso como temporalidade ontogênica e temporalidade filogênica, respectivamente. Essa distinção tem por base o fato de que o habitus é uma disposição durável dotada de uma inércia com propensão para reproduzir determinadas práticas de modo homólogo, enquanto que o campo, sendo constituído pelo jogo de forças e disputas, possui uma lógica na qual a mudança se torna mais iminente (King, 2000). A visão do habitus como um sistema resistente às mudanças e relativo a uma inteligência prática para realizar mudanças sem alterar seu princípio básico opõe-se ao campo como um espaço constituído por diversos agentes lutando por recompensas, estabelecendo alianças, realizando investimentos. Por isso, a possibilidade de mudanças estruturais em determinado campo, que ocorre independentemente da mudança das disposições dos agentes, pode vir a criar contextos práticos de ação nos quais ocorre o desajuste: as disposições dos agentes estão atrasadas em relação à evolução do campo. Nesse sentido, o fundamento da hysteresis tem a ver com a distinção das temporalidades e das lógicas, resultando por um lado em campos dinâmicos e habitus inflexíveis, gerando desajustes e, por isso, rupturas.

Outra compreensão da razão pela qual emergem atrasos das disposições em relação às demandas dos contextos práticos diz respeito não necessariamente à mudança dos contextos de ação, mas a um problema ontológico mais fundamental: a prioridade e anterioridade do social em relação ao individual. Para Karsenti (2011), a interpretação bourdieusiana do habitus como dotado de um senso que permitiria aos agentes se anteciparem às solicitações urgentes dos contextos práticos reside exatamente no seu oposto, o atraso temporal do habitus em relação às estruturas sociais, isto é, dos indivíduos perante a sociedade. O argumento é similar à visão durkheimiana segundo a qual a sociedade é anterior ao indivíduo e, por essa razão, possui uma prioridade ontológica em relação a ele. Os agentes nascem e são lançados em um mundo social

já constituído, com lógica e dinâmica próprias, com regras, jogos e finalidades. Dessa forma, desde o início, os indivíduos estão imersos em uma corrida para buscar superar o atraso ontológico e buscar antecipar-se às práticas futuras. O desajuste do habitus, sob essa perspectiva, diz respeito ao fato de que as estruturas sociais possuem um movimento próprio, autônomo em relação às vontades e disposições particulares, gerando possibilidades históricas de fissuras entre as competências dos agentes e as exigências impostas. Isso torna-se ainda mais acentuado quando se lembra que a lógica do habitus, como reprodutiva, na qual o passado possui prioridade em relação ao presente, é contrária à lógica do campo, como espaço social onde o enredamento prático de diversas forças produz luta e mudança, exigindo estratégias e constante renovação e adaptação das disposições (KING, 2000). A hysteresis, assim, teria a ver com o problema da integração social dos indivíduos à sociedade, tornando manifesto o fato de que a experiência subjetiva de estranhamento do mundo, como uma alteridade na qual não consegue sentir-se em casa, teria a ver com o sucesso ou fracasso da antecipação das disposições práticas incorporadas em relação às situações futuras3.

Em todo caso, a hysteresis exprime a possibilidade de funcionamento do habitus pelo avesso de sua predominância: o passado não determina a experiência futura, naufraga diante dela, é insuficiente; a inércia de uma racionalidade prática inconsciente é desviada para um caminho que exige um grau maior de consciência e, com maior probabilidade, a atuação de uma reflexividade do agente, pois aquilo que se costumava fazer não corresponde àquilo que se deve fazer; a perda de aderência entre habitus e campo, a quebra da cumplicidade ontológica, possibilitam espaços de transgressão simbólica e renúncia a práticas conformadas à lógica objetiva. Em suma, o conceito de hysteresis abre espaço para uma maior participação da subjetividade na produção das práticas sociais.

A hysteresis pressupõe uma dialética entre o antigo e o novo. Por essa razão, segundo Kerr e Robinson (2009), é um momento no qual se pode enxergar o funcionamento do habitus em seu aspecto mais flexível, criativo, inovador: em uma situação na qual as disposições do

3 Nesse sentido, segundo Hardy (2008) o efeito de hysteresis possuiria uma afinidade com os conceitos de alienação

e anomia, pois exprimem graus de desregulação ou ruptura na relação entre indivíduo e sociedade. O conceito de alienação, proposto por Marx, manifesta a condição histórica na qual os sujeitos tornam-se estranhos à própria sociedade em que vivem e produzem através de seu trabalho. Já o conceito de anomia, formulado por Durkheim, diz respeito aos momentos históricos nos quais a solidariedade social se torna frágil, desintegrando os vínculos entre os indivíduos bem como esvaziamento moral, estando os valores e normas sociais não mais gerando comportamentos adequados para a manutenção da ordem social. A afinidade entre anomia, alienação e hysteresis reside na desintegração social dos indivíduos. Na perspectiva de Bourdieu, a des-integração é concebida como uma quebra da cumplicidade ontológica entre os agentes e as estruturas, embora não formule um julgamento de valor, positivo ou negativo, diferentemente dos conceitos de alienação e anomia que possuem referências negativas: para Marx, alienação tem a ver com a dominação; para Durkheim, a anomia tem a ver com a desordem social. Para Bourdieu, hysteresis é pura e simplesmente desajuste.

habitus não são adequadas para determinadas práticas, a situação impõe aos agentes a necessidade de estabelecer uma conexão entre as experiências passadas e as novas. Assim, o postulado segundo o qual o habitus é capaz de engendrar novas práticas a partir da capacidade de capturar homologias entre o passado e o futuro, permite ver o habitus atuando de modo inventivo, através de transferências analógicas, metáforas através das quais o princípio antigo deve lidar com novas lógicas, adaptando-se, modificando-se. Uma prática nunca é inteiramente nova, absoluta, a partir do zero, por essa razão, as mudanças ocorrem dentro de determinados limites. Igualmente, o efeito da hysteresis sobre o habitus não é a de criação de um princípio de ação a partir do nada, mas a necessidade de atualizar o princípio antigo e inadequado e convertê- lo de modo inteligente em uma disposição apta às novas exigências. A exigência de operar uma tradução das disposições a contextos distintos não seria possível sem que o habitus fosse dotado de uma abertura à inovação.

No que diz respeito à reflexividade, a hysteresis de fato contradiz a visão do habitus como uma racionalidade prática, inconsciente, sem contato com processos conscientes. Para Strand e Lizardo (2016), a hysteresis permitiria a emergência de quatro formas de reflexividade: a radical, a tradicional, a anômica e a irônica. Como a hysteresis diz respeito ao grau com que o passado está em contradição com o presente, a reflexividade seria radical quando a crença passada dos agentes é frágil e ao mesmo tempo não conseguem se adaptar adequadamente ao contexto atual, inspirando processos de ruptura mais drásticos. Na forma tradicional de reflexividade, o peso da crença passada é forte e impele os agentes a produzirem práticas voltadas para o resgate de uma ordem anterior bem como a sua manutenção, em contextos de crise. A forma anômica exprime uma perda de aderência maior em relação ao presente, uma sensação subjetiva de que o sentido das práticas se perdeu. Na forma irônica, os agentes são ambivalentes, não são alheios ao novo contexto, embora com dificuldades de levá-lo a sério.

Todavia, apesar dessa formulação, a reflexividade emergente da hysteresis, na visão de Bourdieu, possui um aspecto mais instrumental. Haja vista que a hysteresis é concebida como um acidente histórico, Bourdieu considera que a reflexividade emergente tem a ver com a mobilização da consciência com a intenção de recuperar a aderência entre agente e estrutura social. Ela não é uma reflexividade voltada para o questionamento, a crítica: volta-se para a solução de um problema de ordem prático. Perdura somente enquanto os agentes produzem o novo ajustamento. Ela não opera um afastamento e problematização do mundo, uma verdadeira ruptura, pelo contrário, direciona-se para uma nova familiarização com o novo contexto. A reflexividade emergente da hysteresis seria como que uma consciência instrumentalmente guiada, reestruturando as práticas subjetivas de modo a obter o melhor ajuste, o mais econômico

e eficaz possível. Sua propensão a reestabelecer a integração do indivíduo à sociedade atesta o fato de que, do ponto de vista político, a hysteresis não parece ser o melhor fundamento para se pensar práticas de resistência, crítica e emancipação.

Por essa razão, a reflexividade e a criatividade do habitus tornados possíveis pela hysteresis possui sérias limitações. É um acidente histórico, algo que não está sob o controle dos agentes e tende, em geral, a ser uma situação efêmera de desajuste – ou seja, falta a Bourdieu uma teorização de como essas soluções para problemas contextuais podem adquirir a inércia que caracteriza o habitus.