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2 OS LIMITES IMPOSTOS PELO HABITUS AO PROJETO

2.4 RESÍDUOS

2.4.1 Reflexividade e Sociologia

2.4.1.3 Resistência, reflexividade e sociologia

Além do que já foi argumentado, a reflexividade também seria a chave analítica que permitiria pensar a possibilidade de resistência e ruptura sociais às formas simbólicas de dominação, haja vista que sua existência possibilitaria enxergar nos agentes a capacidade de posicionarem-se de modo crítico tanto em relação a si próprios – enquanto história objetiva tornada subjetiva – como em relação ao mundo – história objetiva construída a partir das práticas sociais, a história subjetiva (BOURDIEU, 2002). O alvo da crítica é a reificação, fundamental ao poder simbólico, que torna improvável o reconhecimento da dimensão política em meio ao mundo autoevidente da vida cotidiana. Criticar é romper com o inconsciente: colocar o não-discutido como objeto de discussão; o impensado como objeto privilegiado de pensamento; o improvável e o insuspeito sob vigilância.

A reflexividade tem, assim, uma função política. A princípio, Bourdieu (2004a; 1992) formula a reflexividade no campo epistemológico, concebendo-a como ferramenta de autoobjetivação que tornaria possível enxergar os determinantes inconscientes que dão forma e conteúdo – e por isso limites – ao conhecimento produzido cientificamente. Posteriormente, Bourdieu realiza um deslocamento da reflexividade do âmbito epistemológico para o âmbito da vida prática, saindo de uma autobjetivação do cientista em direção a uma ferramenta de autoanálise dos agentes (PETERS, 2013).

O princípio básico é o mesmo: uma ferramenta intelectual capaz de lançar luzes sobre o inconsciente que atua em determinados contextos práticos. Do ponto de vista epistemológico, diz respeito a tudo aquilo que estabelece as condições e limites do ofício científico; do ponto de vista da vida ordinária, refere-se aos determinantes ocultos atuantes nos agentes sob a forma

de disposições, propensões, bem como o que é dotado de sentido e o que é concebido como ridículo e absurdo. Para Peters (2013, p.57), Bourdieu transitaria de uma perspectiva kantiana “de escavação sistemática de pressupostos do pensamento e da ação a um sentido mais afeito ao marxismo, associado ao esforço de desvendamento de modalidades ideologicamente mascaradas de dominação e exploração”, afinal, “as categorias de percepção e orientação da conduta que garantem a inteligibilidade do mundo social para os agentes são [...] as mesmas que os levam a naturalizar e essencializar as assimetrias duráveis de poder que perpassam esse mesmo mundo”. O próprio Bourdieu (2013b, p.165) afirma que:

a teoria do conhecimento é uma dimensão da teoria política porque o poder especificamente simbólico de impor os princípios da construção da realidade - em particular, a realidade social - é uma dimensão importante do poder político [haja vista que] os instrumentos de conhecimento do mundo social são, neste caso, [...] instrumentos políticos que contribuem para a reprodução do mundo social ao produzir adesão imediata ao mundo, visto como auto- evidente e indiscutível

Por isso, a crítica é o esforço de reverter o processo de reificação, desnaturalizar as duas históricas (objetiva e subjetiva) de modo a romper a harmonia ontológica entre mundo objetivo e subjetivo.

A sociologia de Bourdieu, então, conserva o potencial de instituir uma crítica sociológica, isto é, do social, que tem a subjetividade como locus privilegiado de análise. O subjetivo é social (BOURDIEU & WACQUANT, 1992). A possibilidade de transferir a reflexividade sociológica para a vida prática sob a forma de instrumento de autoanálise permitiria aos agentes uma ferramenta útil no processo de emancipação – no sentido de conquista de maior autonomia em relação aos determinantes objetivos sedimentados em sua subjetividade. A teoria do habitus, do ponto de vista da produção de subjetividades, permite compreender a forma pela qual a própria “interioridade” é feita de acordo com as estruturas sociais, produto de uma relação de poder e dominação, e que, então, é um mecanismo de dominação instalado nos próprios agentes, ao menos sob determinados contextos. A noção de emancipação de Bourdieu (1996) é concebida por um progresso constante de suspeita e vigilância – à semelhança da autonomização do campo científico – no qual os agentes tornam- se mais livres à medida em que tomam conhecimento dos determinantes; o conhecimento da necessidade é o que gera liberdade.

A crítica incide, em última instância, na própria questão do sentido da vida (BOURDIEU, 2001; MICELLI, 2007). O poder de impor uma visão de mundo é o poder de dar

sentido, no duplo sentido do termo, “significação” e “direção”. A dominação é uma condição na qual os dominados são “obrigados a esperar tudo dos outros, detentores do poder sobre o jogo e sobre a esperança objetiva e subjetiva” (BOURDIEU, 2001, p. 290). A imposição da visão de mundo, a doxa, e o interesse por esse mundo, a illusio, são formas históricas de impor como legitimas, reconhecidas e dotadas de sentido determinadas disposições para ser de determinado modo e não outro (BOURDIEU, 2002). É pela doxa e pela illusio que os agentes encontram, no mundo autoevidente da vida cotidiana, uma existência dotada de justificação. Bourdieu (2001) lembra que, diante da morte de Deus e da possibilidade de tudo, especialmente da incerteza crônica, é a sociedade que torna possível uma estabilidade e ordem na vida dos agentes. Assim, a luta política acerca da dimensão cognitiva é também uma luta pela justificação da existência, afinal, o sentido de algo tem a ver com a construção de compromissos, laços de solidariedade entre os agentes, bem como de expectativas. O sentido, sob a forma de disposição subjetiva, está ligado às paixões, inclinações e sentimentos de prazer, e mesmo reconhecimento de pertença – o “sentir-se em casa”. A cumplicidade ontológica – a aliança dóxica entre as estruturas mentais e as objetivas – proporciona aos agentes uma sensação de conforto que, por consequência, torna o caráter pré-reflexivo, inconsciente e prático resultantes de uma existência não-problemática.

A reflexividade, então, exprime a possibilidade de reconstruir o sentido do mundo e da vida, permitindo aos agentes a possibilidade de negociarem, eles próprios, o que vem a ser real e o sentido do real, ao invés de apenas serem propelidos por uma ordem dada, evidente, imposta, arbitrária. A crítica sociológica tornaria possível uma metanoia, uma revolução mental (BOURDIEU, WACQUANT, 1992). Há uma política da ressignificação intrínseca à concepção bourdieusiana de resistência, embora ele pretenda avançar inclusive em direção às disposições. Afinal, como foi dito anteriormente, a tomada de consciência e mesmo o esforço de ressignificar o mundo prático, não extingue a cumplicidade ontológica existente entre as disposições incorporadas e o mundo existente.

Para Bourdieu, esse é um importante ponto problemático, em relação à reflexividade, principalmente do ponto de vida dos agentes e sua relação com o mundo prático. A possibilidade de os agentes estarem conscientes de algo (isto é, estarem conscientes da vontade de realizar determinada prática que divirja de uma rotina, de um hábito, das disposições já incorporadas) deve, para de fato constituir-se em uma conquista de liberdade, tornar-se disposição para algo. A tomada de consciência torna-se insuficiente para uma verdadeira emancipação, dado o fato de que o habitus permanecerá atuante no sentido de gerar

predisposições, haja vista que está enraizado no próprio corpo – devendo, então, o agente (re)construir os princípios de suas próprias ações e dotá-las de uma nova inércia.

Assim, pode-se instaurar um conflito entre, por um lado, os poderes das disposições incorporadas e estabilizadas no corpo sob a forma de uma inteligência prática habitual e, por outro, a consciência e intencionalidade dos agentes, pois a realização de determinadas práticas exige mais do que uma consciência intelectual fornece: requer uma capacidade prática par algo. Fora dos contextos práticos e imediatos de ação, a reflexividade enquanto um estado de neutralização prática pode parecer dominante, mas nos momentos práticos onde impera a inteligência prática, a urgência e a protensão, a consciência pode retroceder e ceder seu lugar às disposições antigas.

Dessa forma, torna-se fácil compreender a crítica bourdieusiana à tomada de consciência como um ato de ruptura efetivo em relação à ordem existente. Ora, o habitus não é apenas o hábito e a disposição para determinada coisa: o habitus é a capacidade de tornar algo efetivo, é o ter sido produzido no sentido de ter sido feito para algo. A consciência não aparece como suficiente para as exigências práticas. Embora seja uma ferramenta de crítica e ruptura, a reflexividade não é uma garantia de mudança da ordem prática, tampouco da estrutura identitária dos agentes.

Além dos poderes e privilégios atribuídos ao campo científico e às disposições intelectuais do sociólogo, Bourdieu também reconhece a possibilidade de que a circularidade entre as disposições e as estruturas sejam rompidas, algo que extrapolaria o campo científico e poderia ser vislumbrado no mundo prático vulgar, onde os agentes habitam. A hysteresis aparece, assim, como uma possibilidade de ruptura aberta aos agentes, ultrapassando o monopólio da reflexividade sociológica.