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2 OS LIMITES IMPOSTOS PELO HABITUS AO PROJETO

2.3 HABITUS: LIMITES E CRÍTICAS

2.3.2 Concepção de identidade

A segunda crítica que se pode direcionar à teoria do habitus pode ser formulada a partir da visão segundo a qual o habitus é um sistema, o que pressupõe duas coisas importantes: (1) a visão do habitus como dotado de uma autonomia relativa em relação aos próprios agentes; (2) as mais diversas manifestações práticas da subjetividade são redutíveis a um sistema, a um princípio prático, o habitus.

Bourdieu (2013b, p.18) afirma que os agentes são mais possuídos pelo habitus do que o contrário, afinal, aquilo que constitui e determina a subjetividade é um conjunto de produtos práticos gerados pelo habitus: formas de pensamento, modos de ação, matrizes de apreciações, julgamentos e sentimentos. Nesse sentido, o habitus não apenas exprime um hábito – isto é, uma disposição ou tendência mais ou menos automática para determinada ação com base em um modelo anterior (CAMIC, 1986) – mas também pressupõe uma íntima conexão entre estar habituado a algo a partir do momento em que se habita um determinado espaço, exprimindo, desse modo, o fato de que a própria estrutura social objetiva passa a habitar o espaço subjetivo através de processos de incorporação, interiorização e internalização (SAYER, 2005; 2010).

A autonomia relativa do habitus é postulada e reconhecida por Bourdieu (2015) através do princípio da não-consciência dos agentes, afinal, esses seriam incapazes de compreender o sentido exato de suas próprias ações exatamente pelo fato de que o habitus, princípio gerador de suas práticas, não ser algo inteiramente acessível, consciente ou controlável.

Para King (2000), esse é o ponto de inflexão da teoria do habitus e a razão pela qual Bourdieu fracassa em consumar seu projeto de transcender o subjetivismo e o objetivismo. King afirma que a teoria do habitus está em contradição com a teoria das práticas, na qual os agentes seriam possuidores de um saber prático, virtuosos que dominariam uma série de conhecimentos irredutíveis ao conhecimento teórico. A força da teoria das práticas bourdieusiana pressuporia e exigiria a existência de agentes hábeis, capazes e autônomos, com manifesto domínio de suas capacidades, enquanto que, do ponto de vista do habitus, a teoria afirma e pressupõe a ignorância do princípio gerador das práticas (o habitus) por parte dos agentes, consumando, assim, um grau de heteronomia subjetiva. O próprio Bourdieu (2013b) afirma que a autonomia estaria ligada a uma forma de domínio simbólico sobre o próprio habitus e que, por essa razão, a exclusão ou restrição da autonomia do agente em relação ao próprio habitus estaria ligada à

supressão de práticas inteligentes, inovadoras e improvisadas, reduzindo a agência à reprodução.

O segundo elemento diz respeito ao fato de que, do ponto de vista da teoria do habitus, seria possível compreender os mais diversos atos práticos dos agentes como oriundos de um único princípio. Cada agente teria um habitus, logo, uma identidade homogênea, coerente, unificada (LAHIRE, 2002). Além do reducionismo da subjetividade a um único princípio, Bourdieu opera uma nova redução, ao enxergar tal princípio como mera conversão das condições de existência em uma forma de adaptação social, que reproduziria a ordem existente. Haja vista que a subjetividade para Bourdieu é o próprio habitus, exprimindo assim o caráter histórico dos agentes e pressupondo o processo de socialização na constituição da identidade, a consideração do agente bourdieusiano é homóloga a sua visão das próprias estruturas sociais: o eu fechado em si mesmo, dotado de uma unidade e um padrão de ação, seria homólogo às estruturas objetivas de uma sociedade integrada. Como foi dito, a subjetividade seria a forma subjetivada das estruturas sociais (ALEXANDER, 1995). A interioridade seria a exterioridade internalizada e a homogeneidade da interioridade nada mais seria do que a assimilação das condições de existência de uma sociedade coerente, fechada. Essa visão decorreria do fato de que a teoria do habitus de Bourdieu tem suas condições teóricas de emergência a sociedade Cabila, lugar no qual as estruturas demonstrariam princípios homólogos às características do habitus: estabilidade das estruturas, coerência, caráter harmonioso (LAHIRE, 2002; KAUFMANN, 2001). Diferente dessas seriam as sociedades ocidentais contemporâneas, nas quais haveria um pluralismo estrutural (BERGER & LUCKMAN, 2004; GIDDENS, 2002, 2012). Se o habitus é o processo pelo qual as estruturas socais objetivas são convertidas em disposições individuais e configuram a identidade dos agentes, o habitus constituído em condições de existência plural, típico das sociedades pós- tradicionais, não poderia, do ponto de vista lógico, estar de acordo com a visão homogeneizante de Bourdieu (SWEETMAN, 2003; SAYER, 2010; ADAMS, 2006; MCNAY, 1999). Em condições plurais de existência, os agentes possuiriam maior tendência a serem constituídos por habitus diversos, incorporando, internalizando e interiorizando distintos princípios estruturais sob a forma de distintos princípios de ação (LAHIRE, 2002; KAUFMANN, 2001). Por essa razão, Lahire (2002) substitui a visão bourdieusiana do habitus como um sistema, concebendo- o não como um princípio gerador de todas as práticas, capaz de reduzir a diversidade possível de ações a um único princípio (único, homogêneo, coerente), mas postulando-o como uma série de estoques de conhecimento que, de acordo com o contexto de ação, seriam mobilizados. Para Lahire, a existência de habitus homogêneos ou plurais não deve ser resolvida como um

postulado teórico a priori, mas sim concluído a partir de investigações empíricas. Assim, sua teoria transcenderia o reprodutivismo bourdieusiano, afinal, se não há um único princípio de ação, rompe-se a inércia e destrói-se a homogeneidade.

O problema reside, em suma, no fato de que, ao conceber o habitus como um sistema, um princípio gerador de todas as práticas, autônomo em relação aos agentes, Bourdieu acentua seu caráter reprodutivista, reduzindo o papel do ator em sua teoria, corroborando a visão segundo a qual sua teoria é uma nova forma de objetivismo, na qual o habitus, escapando ao controle dos agentes, ao mesmo tempo controla todas as práticas, ações, pensamentos, sentimentos, propensões, disposições e interesses.

Se o agente bourdieusiano não possui algo que seja irredutível à identidade com a ordem existente, uma alternativa seria a possibilidade de que eles pudessem tomar consciência da cumplicidade existente entre suas práticas e a ordem existente, de modo a problematizarem o impacto político de seu próprio modo de existência. Através da consciência e de algum grau de reflexividade, os agentes poderiam perceber formas de dominação efetivadas exatamente através de suas próprias ações. O problema, todavia, é como pensar a consciência no interior da sociologia bourdieusiana, afinal, seu empreendimento tinha como intenção escapar à filosofia da consciência e direcionar sua teoria das práticas para o campo do corpo e das disposições. Onde está localizada e que papel desempenha a consciência em sua teoria?