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2 OS LIMITES IMPOSTOS PELO HABITUS AO PROJETO

2.6 HABITUS CLIVADO: VONTADES OBLÍQUAS

Há uma última noção que contradiz parte da crítica imposta à teoria do habitus: o habitus clivé. O termo aparece em Meditações Pascalianas, no momento em que Bourdieu (2001) se defende da crítica segundo a qual o habitus seria demasiadamente monolítico, homogêneo, unificado, coerente. Em suma, o habitus induziria a uma concepção da subjetividade como uma identidade fechada, marcada por uma harmonia e estabilidade que, por consequência, permitiria ao habitus ser um princípio de ação sistemático e coerente, produzindo práticas marcadas por uma lógica quase imutável (LAHIRE, 2002). Dotado de uma disposição tão monótona, os agentes produziriam práticas o mais similar possível – uma propensão àquilo que lhe parece familiar e uma profunda aversão a tudo que lhe parece estranho, isto é, impregnado de uma diferença ontológica em relação a suas próprias estruturas mentais e disposições corporais.

Todavia, Bourdieu (2001, p. 79) afirma que o grau de harmonia interna do habitus não é um postulado incondicional, lembrando que, em relação aos subproletários argelinos, reconheceu a “existência de habitus clivados, destroçados, ostentando sob a forma de tensões e contradições a marca das condições de formação contraditória de que são o produto”.

O habitus clivado não é uma reconstrução da teoria do habitus, pelo contrário, exprime de forma fiel e meticulosa a relação entre subjetividade e estruturas sociais: o habitus é a subjetividade socializada e a socialização pode se dar em diversas condições. Se o habitus refere-se ao processo pelo qual a exterioridade se torna interioridade, processo pelo qual as condições objetivas de existência são internalizadas, incorporadas e interiorizadas sob a forma de disposições constituintes da subjetividade, o habitus clivado é fruto do reconhecimento do fato de que as condições de existência nem sempre são harmoniosas, homogêneas, coerentes, homólogas.

O habitus unificado pressupõe um processo de socialização homogêneo, uma trajetória social na qual as diversas posições assumidas pelos agentes não possuem rupturas bruscas tampouco contradições dramáticas (LAHIRE, 2002). O habitus clivado reconhece o fato de que a subjetividade pode ter sido formada em um contexto plural no qual a lógica de cada espaço de socialização impõe um sistema de ação distinto – e por isso divergente, contraditório – e irredutível um ao outro (BOURDIEU, 2001). A divergência e a irredutibilidade constituem o caráter inconciliável que, ao serem convertidas em disposições subjetivas, geram uma subjetividade constituída por princípios de ação às vezes excludentes do ponto de vista prático: deve-se fazer escolha entre um e outro, impõem-se vontades contrárias umas às outras, uma ampliação da capacidade de reflexão e intensificação da necessidade subjetiva de tomar decisões e julgamentos de modo mais consciente.

A concepção bourdieusiana de habitus clivado é paralela à concepção de Lahire de habitus plurais. Todavia, Bourdieu (2005) concebe o habitus clivado sob a lógica da “contradição”, “ambivalência”, “tensão”, “cisão”, “incerteza”, enquanto que para Lahire os agentes incorporam os mais diversos princípios práticos de ação que são estocados e podem ser mobilizados nos mais diversos contextos. O ator plural de Lahire (2002) não é marcado uma condição subjetiva “trágica” na qual o “eu” estaria fragmentado e em sofrimento perene.

A formação da subjetividade em contextos plurais tem sido um tema recorrente na sociologia contemporânea. Para Dubet (1996), a visão homogênea de Bourdieu é contradita por uma visão da sociedade não tão coesa – bem como recusa a passividade postulada por Bourdieu. O enfraquecimento das instituições sociais implicaria na exigência de um papel mais ativo dos agentes, algo negligenciado por Bourdieu.

O pluralismo moderno tem induzido os analistas culturais à construção de uma ambivalência fundamental: por um lado, a pluralidade gera angústia e sofrimento subjetivo; por outro, fornece as condições históricas propícias para uma maior atividade dos agentes em termos de autonomia e reflexividade.

O pluralismo estrutural das sociedades contemporâneas tem sido acusado de impulsionar formas de sofrimentos subjetivos – à semelhança da visão bourdieusiana do habitus clivado como constituído por uma internalização das contradições estruturais.

A grande acusação contra (e a favor) do pluralismo tem sido direcionada para o fato de que contextos de múltiplos valores práticos conduzem à perda da autoevidência do mundo social, característica fundamental da vida prática cotidiana e, como já foi dito, para o funcionamento automático do habitus. Para Berger e Luckmann (2004), por exemplo, o mundo plural, ao ser constituído por diversas lógicas distintas e contraditórias, nas quais os indivíduos

devem realizar suas experiências, transforma-se em um estado no qual nenhuma visão de mundo parece determinante, exclusiva, fundamental. A pluralidade de visões e práticas não se anulam, tampouco são hierarquizadas de tal modo que se possa lançar a outra no absurdo e no ridículo. Dessa forma, todas possuiriam igual grau de arbitrariedade e legitimidade. Consequentemente, os indivíduos não conseguiriam produzir um sentido único, estável e homogêneo do mundo. Lançados em um mundo onde há tantas possibilidades e tudo parece possível e legítimo, os indivíduos deparam-se com um problema crônico de desorientação cultural – isto é, um habitus incapaz de produzir sentido pois carece de coerência, sistematicidade. A perda da autoevidência ocasionada pelo pluralismo está ligada à emergência do relativismo e cujo sintoma subjetivo são as crises de sentido sob a forma de desorientação prática.

Giddens (2002) reconhece que em tal contexto a crise de sentido se torna um perigo iminente, haja vista que a condição plural e a ausência de um princípio social que determine as ações e as interações acabam por imprimir um perigo àquilo que ele chama de segurança ontológica, isto é, a relação natural que os indivíduos possuem com o mundo, através de uma consciência prática que coloca em suspensão uma série de dúvidas e problematizações do mundo. A segurança ontológica é, assim, tanto emocional quanto cognitiva. Sem uma segurança quanto a estabilidade do mundo da vida, bem como da necessidade de os agentes produzirem a coerência que não é mais fornecida pela própria estrutura da sociedade, os agentes encontram em uma situação marcada pela inquietude e ansiedade.

Aos olhos de Sennett (2012), a subjetividade dos indivíduos em sociedades marcadas pela pluralidade de lógicas está ameaçada de pulverização, afinal, em um mundo em permanente mudança, ruptura, deslocamento, a estabilidade da identidade dos indivíduos encontra-se em risco, afinal, para ele o caráter, definidor da identidade dos indivíduos, é “o valor ético que atribuímos aos nossos próprios desejos e às nossas relações com os outros [...] expresso pela lealdade e o compromisso mútuo, pela busca de metas a longo prazo, ou pela prática de adiar a satisfação em troca de um fim futuro” (SENETT, 2012, p. 10). Mas como seria possível o indivíduo constituir sua identidade se a todo instante está submetido a condições objetivas dotadas de lógicas diversas e tão contrárias a seus compromissos e lealdades cotidianos? Em uma sociedade dotada de espaços lógicos distintos, contraditórios e inconciliáveis, os indivíduos encontram-se em condições negativas para construírem uma

personalidade estável, ainda que adaptável a certos contextos, pois tem, a todo instante, de curvar-se a princípios distintos sem conseguir produzir uma coerência entre eles.4

Por outro lado, há uma visão positiva construída a partir da tensão ontológica experimentada pelos agentes. Para Berger e Luckmann (2004), a crise de sentido impele os indivíduos a construírem de modo intersubjetivo o sentido de suas existências, o que implica em maior autonomia e liberdade por parte dos indivíduos. Giddens (2012) fornece uma resposta similar, dando ênfase no caráter contemporâneo dos projetos reflexivos de construção do “eu” através da adoção de determinados estilos de vida. Passa-se, assim, dos sistemas totalizantes da “cultura”, que produziria o sentido estável e homogêneo, para a esfera privada do estilo de vida que é constituído por práticas e hábitos coerentes gerando um padrão de existência escolhido pelo agente. Sennett, por fim, enxerga nos contextos plurais e dinâmicos a possibilidade de os indivíduos desempenharem um papel mais ativo no processo de construção reflexiva de suas identidades através da produção de uma coerência entre as distintas experiências, costurando os episódios mais distantes a partir de uma perspectiva. A identidade seria, assim, produto do esforço individual afim de encontrar uma unidade em meio à diversidade de experiências, impondo uma coerência a partir de uma visão reflexiva de sua própria biografia e trajetória futura provável.

A relação entre subjetividade e pluralidade estrutural possui, assim, uma ambivalência intrínseca: é tanto uma condição opressora quanto espaço para emergência de maior autonomia e autenticidade mediados pela necessidade de uma reflexividade construtora.

A concepção de habitus clivado em Bourdieu conserva essa dualidade. De um lado, o habitus clivado é pensado como uma condição trágica na qual há um dilaceramento social e psicológico dos agentes, como no caso dos argelinos (BOURDIEU, 2001). Por outro, aparece como um estado no qual um habitus dotado de um princípio de ação “ambivalente”, “divergente”, “contraditório” conduz a um estado de in-determinação, ou seja, de liberdade, no qual o agente desempenha maior atuação sobre si, através de uma maior consciência e reflexividade, realizada dentro dos limites da própria contradição, ambivalência e

4 Uma das características da experiência subjetiva em tais contextos é a cisão entre interioridade e exterioridade.

Sennett (2012) fala sobre o divórcio entre vontade e comportamento, para mostrar como a esfera da subjetividade se torna uma esfera de privações, uma vez que o comportamento socialmente exigido e esperado para desempenho de funções não corresponde às inclinações e tendências pessoais. A subjetividade como força de resistência às pressões históricas atesta que a interioridade é constituída por uma privação, por aquilo que não encontra formas de exteriorização e, por isso, permanece dentro do indivíduo. Elias (1993; 1994; 2011) possui um argumento similar para compreender a visão moderna da identidade como uma interioridade fechada em oposição à exterioridade. As pulsões individuais devem estar de acordo com as formas culturalmente sancionadas pela civilização, do contrário devem permanecer reprimidas. A subjetividade se torna, assim, privação e a consciência de si o produto de uma relação negativa com o mundo, capacidade de distinguir aquilo que é interior e externo, subjetivo e objetivo, individual e social.

indeterminação internas (BOURDIEU, 2005). É esse, inclusive, o princípio que, para Bourdieu, ajuda a compreender sua trajetória.

Em Esboço de Autoanálise, Bourdieu (2005) enxerga-se como exemplo histórico de um habitus clivado. Em sua obra constata-se o uso recorrente dos adjetivos que caracterizam o habitus clivado, bem como de disposições e tomadas de posição relacionadas a um habitus in- determinado.

“Compreendi faz pouco tempo que minha ambivalência por demais profunda perante o mundo escolar se enraizava talvez na descoberta de que a exaltação da face diurna e supremamente respeitável da escola apresentava como contrapartida a degradação” (BOURDIEU, 2005, p.123); “o contraste, imenso, entre o mundo do internato e o mundo, normal, por vezes até excitante” (BOURDIEU, 2005, p.121); “prensado entre os dois universos, e seus valores inconciliáveis” (BOURDIEU, 2005.p 123); “essa experiência dual só podia reforçar o efeito durável de uma defasagem bastante forte entre uma elevada consagração escolar e uma baixa extração social, ou seja, o habitus clivado, movido por tensões e contradições” (BOURDIEU, 2005, p.123). A distância das posições assumidas por Bourdieu – de sua origem simples até sua consagração acadêmica – exprime apenas uma das contradições de seu habitus. Em sua obra é possível enxergar uma visão de mundo sempre ambivalente e uma disposição intrinsecamente contraditória: “de um lado, a docilidade, ou até o empenho e a submissão do bom aluno... de outro, uma disposição reticente...revolta violenta e persistente, fundada na dívida e na decepção, que se manifesta em toda uma série de crises” (BOURDIEU, 2005, p. 124); “de um lado, a modéstia – ligada entre outras coisas à insegurança – do parvenu filho de suas obras...de outro, a altivez, a segurança do ‘miraculado’ propenso a vivenciar a si mesmo como ‘milagroso’ e tendente a desafiar os dominantes em seu próprio terreno” (BOURDIEU, 2005, p. 125).

Nesse sentido, o habitus não é um sistema fechado dotado de um princípio de ação único, coerente, sistemático orientado à reprodução inconsciente, pelo contrário, há uma espécie de homologia entre o habitus clivado e as sociedades plurais: a multiplicidade promove a ambivalência, a contradição, a irredutibilidade, o suporte psíquico do inconciliável, a incerteza, a necessidade de um engajamento consciente, reflexivo, e mesmo autodeterminação do agente em relação às práticas. O problema é que Bourdieu, apesar ter sido um teórico contemporâneo, ignorou o papel desempenhado pelo pluralismo moderno, bem como associou a subjetividade formada sob condições plurais a formas de sofrimento subjetivo – excetuando-

se o seu caso5. Contrariamente, Kaufmann (2001) enxerga uma simultaneidade dialética entre unicidade (a identidade do indivíduo) e a pluralidade (existência de distintos hábitos), sem recair na visão negativa de Bourdieu, considerando que os indivíduos são capazes de construírem, de modo ativo e constante, a própria identidade a partir da própria diversidade interna. Assim, unidade e pluralidade não se oporiam, mas seriam partes intrínsecas ao mesmo processo de construção da subjetividade.

Pelo analisado, percebe-se que o habitus clivado padece de limitações e contradições, o que exigiria a busca por novas vias para se pensar a possibilidade da liberdade e da reflexividade no interior de sua teoria das práticas, de modo a contradizer o reprodutivismo e o determinismo. Desse modo, segue a hipótese de que a dimensão estética – sobre a qual não se pronunciou até o momento – possa fornecer um largo espaço prático, onde talvez se possa rastrear tais resíduos. Assim como o senso comum, a filosofia e a sociologia fornecem inúmeros casos de teóricos que concebem a experiência estética como dotada de uma lógica distinta, onde se pode vislumbrar tanto a liberdade quanto a crítica. Resta, então, fundamentar as razões pelas quais a dimensão estética poderia servir como horizonte teórico para problematizar os limites do habitus e fornecer leituras alternativas.

2.7 INDÍCIOS DE LIBERDADE NA DIMENSÃO ESTÉTICA: O PRIVILÉGIO DA