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Há algumas críticas direcionadas à adoção de uma ética ecocêntrica para orientar o Estado211. A primeira delas seria em virtude de uma impossibilidade

210“A atual civilização capitalista – da qual faz parte integrante e necessária o chamado “socialismo

realmente existente” – costuma se apresentar como a resultante suprema de toda a história humana, fazendo da história um processo bastante curto e linear, centrada no advento do capitalismo na Europa e no seu espraiamento universal. As experiências históricas distintas, que não conservam uma linha de evolução direta – de acordo com a historiografia oficial – são desprezadas como primitivas ou atrasadas, inclusive falidas ou “ilegítimas” cultural e historicamente. Assim como, de acordo com uma visão bastante distorcida da evolução das espécies, o “homem” é apresentado como apogeu da Criação, esquecendo-se que o Homo sapiens é resultado de uma evolução tão complexa quanto a que levou à existência hoje dos tatus e das borboletas, o “homem civilizado” é apresentado como produto de uma história que o teria por coroamento... Afinal, constata-se, com certa decepção, que toda a História humana não teria outro objetivo senão a de produzir um indivíduo que domina a intimidade da matéria, mas não sabe o que fazer com o lixo atômico; que se acumula em cidades com milhões de habitantes, dirigindo um outro tanto acúmulo de veículos, sem saber o que fazer da sua solidão individual...”. VIEIRA, Liszt. Constituição e meio ambiente: As raízes e o sonho... In: PÁDUA, José Augusto (org.). Ecologia e política no Brasil. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1987, p. 145.

epistemológica. O homem, enquanto sujeito, não poderia partir senão de uma visão antropocêntrica do mundo.

Ora, a partir do momento em que se exclui esta possibilidade do conhecer, também se faria cair por terra – para mencionar ocorrências somente na cultura ocidental – toda a viabilidade de existência da tradição do pensamento cosmológico e cosmocêntrico pré-socrático, como o desenvolvido meticulosamente por Empédocles de Agrigenta212, entre outros, bem como toda a construção das ideias teocêntricas que circundaram e circundam o imaginário cristão213.

Se nos ativermos à premissa inicial e a levarmos às últimas consequências, poderia se dizer, então, que da mesma forma seria impossível um pensamento de orientação coletivista ou comunitarista, tendo em vista que o indivíduo é a unidade essencial do ser que pensa.

Ademais, é o mesmo ser humano que pensa o ecocentrismo e pode colocar o exercício de sua racionalidade a serviço do bem estar de todos, fazendo prevalecer o altruísmo em detrimento do egoísmo.

A segunda crítica muito comum seria a acusação de inexistência, vagueza ou ambiguidade dos critérios para solucionar conflitos de interesses entre os todos os entes considerados eticamente relevantes, que gerariam pouca razoabilidade ou supervalorização da proteção do elemento não humano, paralelamente a ausência de sensibilidade às mazelas existenciais e sociais da própria humanidade em si. Em

212“Para Empédocles, da mesma forma que para Parmênides, o “nascer” e o “perecer”, entendidos como um vir do nada e um ir ao nada, são impossíveis, porque o ser existe e o não-ser não existe. Assim, não existem “nascimento” e “morte”: aquilo que os homens chamaram com esses nomes, ao contrário, são o misturar-se e o dissolver-se de algumas substâncias que permanecem eternamente iguais e indestrutíveis. Tais substâncias são a água, o ar, a terra e o fogo, que Empédocles chamou “raízes de todas as coisas”. [...] Nasce assim a noção de “elemento”, precisamente como algo de originário e de “qualitativamente imutável”, capaz apenas de unir-se e separa-se espacial e mecanicamente em relação a outra coisa. [...] Há, portanto, quatro elementos que, unindo-se, dão origem à geração das coisas e, separando-se, dão origem à sua corrupção. Mas quais são as forças que os unem e separam? Empédocles introduziu as forças cósmicas do Amor (philía) e do Ódio ou Discórdia (neîkos), respectivamente, como causa da união e da separação dos elementos. Tais forças, segundo uma alternância, predominam uma sobre a outra e vice-versa por períodos de tempo constantes, fixados pelo destino. Quando predomina o Amor ou a Amizade, os elementos se reúnme em unidade; quando predomina o ódio ou a Discórdia, ao contrário, eles se separam”. Cf. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga. São Paulo: Paulus, 2003, v. 1, p.40-41.

213“Não há lugar para o mínimo grau de auto-afirmação ou interesse próprio na presença de Deus. Aqui, o homem deve contentar-se em receber as dádivas imerecidas que Deus lhe quer outorgar e em obedecer, sem visar alguma recompensa, aos mandamentos que Deus se apraz em dar-lhe. Em outras palavras, ele deve realmente permitir que Deus seja Deus, o centro ao redor do qual toda a sua existência se move”. In: WATSON, Philip S. Deixa Deus ser Deus: uma interpretação da teologia de Martinho Lutero. Canoas: ULBRA, 2005, p. 59.

últimas consequências, críticas e interpretações equivocadas geram aos defensores das teorias éticas ambientais não antropocêntricas o estigma de serem favoráveis, por exemplo, ao ecofascismo e ao extermínio em massa de populações humanas214.

Acredita-se que este ponto tenha sido suficientemente esclarecido no item 1.3, em que se expôs as contribuições de Aldo Leopold, J. Baird Callicot, dentre outros. Ademais, todas as situações – que não são poucas – de guerras e etnocídios espalhadas pelo mundo contemporâneo – as quais equivalem ao extermínio não apenas de populações humanas, mas também de seus modos tradicionais de vida – são provocadas pela cultura do individualismo em excesso e pela incapacidade de diálogo entre os próprios seres humanos, além da supervalorização do elemento econômico em detrimento dos demais.

Ademais, essa ideia também se apresenta incongruente, a partir do momento em que Bosselmann exprime claramente a sua preocupação com a efetivação dos direitos humanos e sociais como parte importante do programa de um Estado Ecológico, sem o que não há que se falar em sustentabilidade215.

Tanto é que há autores, como Luke Strongman, que não entendem que exista uma dicotomia real entre antropocentrismo alargado e ecocentrismo, ao passo em que uma visão centrada no ser humano não seria necessariamente contrária à preocupação com espécies não-humanas e com as características do mundo inanimado216.

De fato, o pensamento do autor não é de todo equivocado. Afinal, há uma significativa esfera de coincidência de interesses na proteção do meio ambiente e da sadia qualidade de vida dos seres humanos.

Entretanto, isto não é tudo. Há também um não desprezível campo de contraditoriedade entre a defesa dos direitos dos humanos e a salvaguarda das demais formas de vida. Segundo Klaus Bosselmann:

214 Cf. GALVÃO, Pedro. O dilema da ética da terra. Análise

– Revista de Filosofia do Gabinete de

Filosofia do Conhecimento. Lisboa, Série II, 2006. Disponível em:

<http://pedrogalvao.weebly.com/artigos.html>. Acesso em: 20 mai. 2013. Alguns esclarecimentos adicionais sobre estas questões também podem ser encontrados em: ELLIOT, Robert. op.cit; CALLICOTT, J. Baird. op.cit.

215 BOSSELMANN, Klaus. Direitos Humanos, Meio Ambiente e Sustentabilidade. In: SARLET, Ingo w. (org.). Estado Socioambiental e Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. 216 STRONGMAN, Luke. op.cit., p. 14-15.

até certo ponto a preocupação com a proteção dos direitos humanos e a preocupação com a proteção do meio ambiente se reforçam reciprocamente. Tanto os direitos humanos quanto a legislação ambiental são necessários para proporcionar melhor qualidade de vida aos seres humanos. De outra parte, entretanto, a proteção dos direitos individuais tem caminhado de encontro à proteção ambiental. Os direitos de propriedade, em particular, não têm sido conducentes a alcançar a sustentabilidade ecológica217.

Dando continuidade a este raciocínio, Bosselmann explica que há três possíveis situações em que a proteção dos direitos humanos favorece à do meio ambiente: no combate indireto à degradação ambiental (diante de ameaça a direitos humanos existentes); quando impliquem em processos mais eficazes de tomada de decisões ambientais (direitos humanos procedimentais); e a proteção ambiental direta, baseada no direito humano a um meio ambiente saudável218.

Contudo, as dimensões acima expostas não se afiguram suficientes à consecução do equilíbrio ecológico, sendo também necessário enfatizar a responsabilidade humana perante a natureza, a partir de uma cuidadosa reflexão sobre a instituição de deveres não apenas morais, mas também jurídicos de proteção ambiental, bem como sobre seu respectivo conteúdo, a tal ponto de estes elementos virem a propriamente integrar o discurso sobre os direitos humanos. Isso perpassa pela transcendência do aparente conflito entre o natural e o humano. É preciso compreender que a existência do homem não deve competir com a vida na Terra, mas sim, integrar-se a ela.

Aliás, embora sobre a ideia de deveres humanos tenha pairado certo ostracismo desde há muito tempo, o tema parece estar tomando novo vigor. Foi o indicativo do recente fórum Prospectiva del Mundo México 2015, realizado nos dias 24 e 25 de junho de 2015, na Universidade Autônoma do México – UNAM, que contou com a presença de intelectuais de diversas partes do mundo, cujo objetivo foi dialogar sobre a elaboração de uma Carta dos Deveres Humanos, que deve ser entregue às Nações Unidas. A demanda surgiu a partir de uma provocação do escritor português José Saramago, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, sempre afeito a questões de natureza política, que se apercebeu da importância de haver

217 BOSSELMANN, Klaus. op.cit, 2010, p. 75. 218 Ibid.

um espelho da Declaração Universal dos Direitos do Homem, na época em que escrevia a obra “Ensaio sobre a Lucidez”219.

Diante, portanto, desta percepção de que o direito e a política regulam os comportamentos sociais é que Bosselmann idealiza seu paradigma ético e jurídico, em que “todos os direitos humanos” possam ser exercidos “de uma maneira que demonstre que a humanidade é parte integrante da biosfera”220.

Isso implica em reconhecer que o legislador deverá empreender um salto que para o qual se faz imprescindível a ruptura com a tábua de valores antropocêntricos, pelo reconhecimento do valor intrínseco da natureza, que pode culminar ou não em atribuição de posição jurídica subjetiva, de modo a garantir a sua existência saudável.