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O conhecimento científico, em sua acepção moderna, surge a partir da negação e das críticas à ciência clássica, de base aristotélica-ptolomaica. Começa a erigir os seus alicerces a partir do fenômeno da Revolução Científica, do século XVI, a partir de Copérnico, Kepler, Newton, Descartes, Bacon e Galileu.

Ergueu-se, sobretudo, a partir de uma tendência objetivista, em que o processo de conhecimento se dá a partir da submissão de objetos isolados a leis de funcionamento pretensamente universais. Com isso,

a descrição de todo o objecto fenoménico composto ou heterogéneo, inclusive nas suas qualidades e propriedades, deve decompor este objecto em elementos simples. Explicar é descobrir os elementos simples e as regras simples a partir dos quais se operam as combinações variadas e as construções complexas81.

Este projeto de ciência, que partia, por um lado, da desconfiança metódica de tudo que se acreditava conhecer, propugnando, por outro, a observação e a descrição da natureza de maneira considerada rigorosa, alcançou significativos resultados, didaticamente descritos por Edgar Morin82 diante do que se propunha no âmbito da física e se expandiu às outras ciências da natureza, como as diversas áreas da química e da biologia, gerando, paradoxalmente, uma grande confiança epistemológica em torno dele próprio, a ponto de prejudicar a própria proposta de combate ao dogmatismo e ao autoritarismo.

Esta proposta metodológica, fundada ainda nas operações de análise, separação de fenômenos e fatos para se elaborar síntese posterior, leva ao

81 MORIN, Edgar. O método: a natureza da natureza. Lisboa: Publicações Europa-América, 1991, v. 1, p. 94

82

“No decurso do século XIX, a investigação <<reducionista>> triunfou em todas as frentes da physis. Isolou e recenseou os elementos químicos constitutivos de todos os objectos, descobriu as mais pequenas unidades da matéria, primeiro concebidas como moléculas, e depois como átomos, reconheceu e quantificou os caracteres fundamentais de toda a matéria, massa e energia. Assim, o átomo resplandeceu como o objecto dos objectos puro, pleno, insecável, irredutível, componente universal dos gases, líquidos e sólidos. Todo o movimento, estado ou propriedade podia ser concebido como quantidade mensurável em referência à unidade primeira que era própria dele. Assim, a ciência física dispunha, nos finais do século XIX, duma bateria de grandezas que lhe permitiam caracterizar, descrever e definir um objecto fosse ele qual fosse. Trazia, ao mesmo tempo, o conhecimento racional das coisas e o seu reconhecimento. O método da decomposição e de medida permitiu experimentar, manipular e transformar o mundo dos objectos: o mundo objetivo!...” MORIN, Edgar. op.cit., 1991, p. 94.

simplismo e ao reducionismo, tendo em vista que é incapaz de captar toda a realidade de interconexões entre os objetos isoladamente estudados, deslegitimando, também, os modos de conhecimento que não poderiam ser acessados por meio de comprovações, de experimentações que viessem a atestar a sua certeza. Cria-se, assim, uma distorção cognitiva, que presta um desserviço à consideração da cientificidade em torno das questões humanas83.

Naquele âmbito, portanto, conforme explica Boaventura de Sousa Santos, a natureza e o ser humano eram vistos de maneira dissociada. Enquanto a natureza é “tão-só extensão e movimento; passiva, eterna e reversível, [...] cujos elementos se podem desmontar e depois relacionar sob a forma de leis; não tem qualquer outra qualidade ou dignidade que nos impeça de desvendar os seus mistérios”84, o ser humano é aquele que está destinado ao seu domínio.

Com o passar do tempo, estas limitações de percepção começaram a ficar cada vez mais evidentes, de modo que um dos frutos que este modelo epistemológico viu surgir como resultado de suas investigações foram os questionamentos sobre a validade universal do tal conhecimento objetivo, a ponto de se reconhecer uma verdadeira crise não apenas no paradigma científico da modernidade, mas também do próprio projeto civilizatório individualista e competitivo que se ergueu em torno dele.

Segundo Boaventura, trata-se de um movimento convergente85, não apenas nas ciências da natureza, mas com repercussões também nas ciências sociais, que traz outra concepção de conhecimento, assim resultando:

Em vez da eternidade, a história; em vez do determinismo, a imprevisibilidade; em vez do mecanicismo, a interpenetração, a espontaneidade e a auto-organização; em vez da reversibilidade, a

83 Até mesmo as primeiras empreitadas de defender a cientificidade dos estudos humanísticos se deu por meio da tentativa de demonstração de que também seria possível aplicar às ditas ciências humanas os rigorosos métodos objetivistas e quantitativos das ciências naturais. Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. 15. Ed. Porto: Afrontamento, 1988.

84 SANTOS, Boaventura de Sousa. op.cit.,, 1988, p. 9-10.

85 Como descreve Boaventura de Sousa Santos, Einstein, por meio de sua Teoria da Relatividade, rompe com a ideia da existência de tempo e espaço absolutos, conforme preconizado por Newton. A partir de das investigações de Heisenberg sobre o comportamento das partículas subatômicas, tem- se a prevalência da incerteza sobre a certeza; descobre-se, ainda, que a observação do sujeito de fato pode interferir no comportamento do objeto, caindo por terra a separação rigorosa entre estas duas categorias; Com Gödel e os teoremas da incompletude, até a matemática vê seus fundamentos abalados. O físico-químico Ilya Prigogine constata, por meio da teoria das estruturas dissipativas, que os fenômenos biológicos e suas transformações não são tão previsíveis ou equilibradas como se poderia antes pensar. Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. 15. Ed. Porto: Afrontamento, 1988, p. 9-10.

irreversibilidade e a evolução; em vez da ordem, a desordem; em vez da necessidade, a criatividade e o acidente86

As consequências deste movimento devem ser analisadas sob dois aspectos relevantes, que se interrelacionam: primeiro a necessidade de ampliação da percepção sobre o processo de conhecimento, vista pelo aspecto subjetivo do conhecimento, que durante muito tempo foi relegada ao ostracismo87. Boaventura de Sousa Santos bem sintetiza estas questões, quando afirma que:

Depois da euforia cientista do século XIX e da consequente aversão à reflexão filosófica, bem simbolizada pelo positivismo, chegamos a finais do século XX possuídos pelo desejo quase desesperado de complementarmos o conhecimento das coisas com o conhecimento do conhecimento das coisas, isto é, com o conhecimento de nós próprios88

Nesse sentido, muito relevantes tem sido as contribuições de Maturana e Varela, que partem do pressuposto de que o conhecimento é um fazer que está atrelado aos seres vivos, às suas organizações biológicas, para muito além do simples exame da constituição dos sistemas nervosos89.

A partir disso, também se amplia a possibilidade de se perceber os aspectos relacionais do conhecimento. Afinal, do mesmo modo que para que possa haver o conhecimento é preciso haver um sujeito, um objeto e um contexto, é igualmente imprescindível reconhecer que as coisas no mundo não existem da maneira como eram estudadas, isoladamente, mas estão em permanentes relações e correlações, o que implica ainda em reconhecer que é preciso superar o individualismo, o pensamento dissociativo, para privilegiar a coletividade, a solidariedade, a coexistência, a cooperação e associação.

Nesse seguimento, emerge com força e legitimidade a percepção sistêmica do mundo:

Encontramos na natureza aglomerados, agregados de sistemas, fluxos inorganizados de objectos organizados. Mas o que é digno de nota é o

86 Ibid., p.10.

87

Válidas as palavras de Edgar Morin sobre esse assunto: “Nenhuma ciência quis reconhecer a categoria mais objectiva do conhecimento: a do sujeito conhecedor. Nenhuma ciência natural quis conhecer a sua origem cultural. Nenhuma ciência física quis reconhecer a sua natureza humana. O grande corte entre as ciências da natureza e as ciências do homem oculta, simultaneamente, a realidade física das segundas e a realidade social das primeiras”. MORIN, Edgar. op.cit., 1991, p. 15. 88 SANTOS, Boaventura de Sousa. op.cit., 1988, p. 11-12.

89 MATURANA, Humberto R.; VARELA, Francisco J. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, 2001.

carácter polissistémico do universo organizado. Este é uma espantosa arquitectura de sistemas que se edificam uns sobre os outros, uns entre os outros, uns contra os outros, implicando-se e imbricando-se uns nos outros, com um grande jogo de aglomerados, plasmas, fluidos de microssistemas circulando, flutuando [...]aquilo a que nós chamamos natureza [...] é precisamente esta extraordinária solidariedade de sistemas encadeados, edificando-se uns sobre os outros, pelos outros, com os outros, contra os outros [...] são os sistemas de sistemas em rosários, em cachos, em pólipos, em arbustos, em arquipélagos. Assim, a vida é um sistema de sistemas, não só porque o organismo é um sistema de órgãos, que são sistemas de moléculas, que são sistemas de átomos, mas também porque o ser vivo é um sistema individual que participa dum sistema de reprodução, porque um e outro participam dum ecossistema, o qual participa da biosfera...90

Estes sistemas naturais são autopoieticos, isto é, operacionalmente fechados, autônomos e autorreferenciais, no sentido de que sua lógica de autoprodução e reprodução se dá de modo circular e reiterativo, independentemente dos elementos que lhe são externos.

Contudo, como se percebe, eles também se relacionam inevitavelmente entre si e com o ambiente à sua volta; isto é possível em virtude da noção de acoplamento estrutural, segundo a qual as interferências externas ocasionam uma mudança estrutural no sistema, mas não tem o poder de determinar a reação do sistema vivo, a qual é imprevisível e peculiar a cada sistema, o que faz com que possa se atribuir a perspectiva de historicidade e não determinabilidade a eles91.

Diante da observação de tamanha complexidade constitutiva nas mais diversas formas de vida, onde evidentemente se inclui o ser humano, em seu aspecto biológico, alguns estudiosos começaram a investigar a viabilidade de integração de aspectos existenciais biológicos, sociais e cognitivos, estendendo os princípios da compreensão sistêmica às organizações sociais humanas.

Adverte-se, juntamente com Capra e Luisi, que a extensão destas teorias ao campo social não ocorre de maneira direta, em virtude de que o comportamento humano em sociedade é permeado de suas particularidades, oriundas do nível de desenvolvimento do pensamento, da consciência e da linguagem humanos. Segundo estes autores, o ser humano possui duas dimensões de comportamento: o físico, governado pelas leis de causa e efeito, e ainda o comportamento do domínio

90 MORIN, Edgar. op.cit., 1991, p. 97.

social, que é “governado por regras geradas pelo sistema social, que são muitas vezes codificadas em lei”92.

Assim, para validar a abordagem sistêmica tradicional – integrada pela tríade

forma (organização), matéria (estrutura) e processo (movimento) – perante os

fenômenos sociais, é necessário acrescentar um quarto elemento: o significado, que “torna evidente que o nosso mundo interior de conceitos e ideias, imagens e símbolos é uma dimensão crítica da realidade social”93.

Um dos autores que se dedicou a este desafio foi precisamente Niklas Luhmann, que identificou a comunicação como caractere definidor dos sistemas sociais. De sua autorreprodutibilidade surgem os sistemas comuns de significado: crenças, explicações e valores, a partir de que se estabelece a fronteira do sistema, e de onde se extrai um duplo efeito: os contextos de significados e as regras de comportamento (estruturas sociais)94.

A partir disso, Luhmann identifica o Direito como um subsistema social autopoiético, e portanto, fechado, autorreferencial e reflexivo, o qual, ao tempo em que se ocupa da sua própria autorreprodução e da sua adaptação ao meio, também o faz relativamente ao sistema social em geral, participando, assim, da construção daquela realidade95.

O raciocínio desenvolvido até aqui se coaduna à visão de Klaus Bosselmann na concepção de seu Estado Ecológico, tendo em vista que este autor se vale da visão sistêmica como fundamento epistemológico, o que tem repercussões imediatas para o modo de se ver o Direito. Nesse sentido, para ele96:

O Direito, visto pela perspectiva teorética sistêmica, é um subsistema social que se distingue dos outros subsistemas – por exemplo, a economia, – em virtude de certos meios de comunicação. Enquanto na economia, o meio primordial de comunicação se dá por meio do dinheiro, no Direito é por meio dos julgamentos (o que é legal/ilegal?)97.

92 CAPRA, Fritjof; LUISI, Pier Luigi. A visão sistêmica da vida: uma concepção unificada e suas implicações filosóficas, políticas, sociais e econômicas. São Paulo: Cultrix, 2014, p. 380.

93 Ibid., p. 376. 94 Ibid, p. 380-381.

95 LUHMANN, Niklas. El derecho como sistema social. In: DIEZ, Carlos Gómez-Jara (ed.). Teoría de

sistemas y derecho penal: fundamentos y possibilidades de aplicación. Granada: Comares, 2005.

96 Embora aparente compartilhar da visão apresentada, o autor não cita Edgar Morin como uma de suas referências. Já Humberto Maturana e Francisco Varela são citados diretamente em algumas passagens como autores que influenciaram o seu pensamento. Cf. BOSSELMANN, Klaus. op.cit, 1995.

Assim, é possível inferir, de todo o exposto, que, no contexto de um Estado Ecológico, além de o Direito se constituir em si mesmo como um subsistema normativo, ao qual cabe exclusivamente a determinação do que é legal e do que é ilegal, é um imperativo racional inevitável que se deva levar em consideração, para efeitos de uma necessária adaptação ao meio circundante, a sua inserção em todo este arranjo organizacional e estrutural que vai do cosmo às micropartículas atômicas, quando da delimitação e tratamento das condutas consideradas justas e adequadas e também aquilo que é inaceitável nas comunidades humanas.

Esta harmonização deve ser vislumbrada não apenas do ponto de vista externo e da relação do Direito com estes tantos níveis de sistemas, no âmbito da escolha da política legislativa, mas também da unidade interna do ordenamento, na aplicação das normas postas, para que possa de fato fazer sentido. Caso isso não ocorra, o próprio Direito porá em risco a sua capacidade de operação e de autorreprodução.