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Um olhar sobre a formação do texto constitucional torna possível investigar, mais precisamente, a intenção do legislador ao contemplar ali a temática ecológica.

Que possíveis valores ou correntes de pensamento político e filosófico tiveram maior influência e, por sua vez, delinearam o perfil ecoconstitucional brasileiro?

Consequentemente, tal análise agrega na identificação de que forma os intérpretes devem dar vida às normas jusecológicas e contribuir com os possíveis diálogos da Constituição com o modelo ecocêntrico proposto por Bosselmann.

A fim de perquirir possíveis interfaces de tal paradigma com o texto da Constituição de 1988, é salutar resgatar, ainda que suscintamente, alguns fatos que contextualizam a sua promulgação295.

294 BENJAMIN, Antonio Herman. Direito constitucional ambiental brasileiro. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (org.). Direito constitucional ambiental brasileiro. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 79.

295 Para mais detalhes sobre o assunto, consultar MENDES, Ana Stela Vieira. Princípios e diretrizes

da ordem ambiental econômica no Estado de Direito Ambiental brasileiro. Dissertação

Inicialmente, não é possível olvidar que se está a tratar da primeira Constituição no Brasil a destinar à proteção ambiental capítulo próprio, em virtude da influência da Conferência de Estocolmo sobre Meio Ambiente Humano, de 1972, em que houve uma pressão internacional para o tratamento por parte dos Estados nacionais das questões ambientais.

Contudo, e graças à superveniência do regime democrático296 297, há que se observar dois aspectos interessantes, no que diz respeito à incorporação do discurso jusecológico pela Constituição de 1988: de um lado, trata-se de fenômeno mais-que-legítimo, tendo em vista que contemplou os integrantes da comunidade científica e as vozes sociais insurgentes, originárias do movimento ambientalista 298, diante de uma omissão histórica cujos reflexos danosos se faziam sentir com cada vez mais intensidade; de outro, um fenômeno – se é que se pode assim dizer299 menos-que-legítimo, ao se levar em consideração o nível insignificante de busca ou de aceitação de práticas ecologicamente adequadas por parte dos detentores do

296 É possível afirmar, juntamente com Rogério Portanova, que o desenvolvimento do ambientalismo brasileiro somente parece ter sido possível graças ao contexto democrático, tendo em vista que não se trata apenas de lutar pela preservação da natureza, de um recurso natural específico, ou contra a extinção de espécies; na realidade, trata-se propriamente de produzir e defender um discurso contra- hegemônico, de combate ao poderio econômico dominante. Cf. PORTANOVA, Rogério Silva.

Ecologie et politique au Bresil. 1994. 272 f. Thèse (Doctorat en Sociologie du Politique) Université

Paris VIII. Paris, 1994, p. 54.

297 É também este o posicionamento de Solange Silva-

Sánchez: “O surgimento do movimento ambientalista brasileiro faz parte, evidentemente, desse processo mais amplo de democratização e constituição de uma sociedade civil no Brasil. Suas lutas e práticas políticas integram um campo de reivindicações formuladas em termos de direitos coletivos, para além da defesa apenas dos direitos individuais. A construção do que estamos chamando aqui de cidadania ambiental refere-se, portanto, à construção de uma cidadania de caráter coletivo, fundada que está em uma luta marcada por valores maximalistas, que possibilita um novo exercício de cidadania, que vai além das limitações da cidadania construída no marco liberal”. Cf. SILVA-SÁNCHEZ, Solange S. Cidadania ambiental: novos direitos no Brasil. São Paulo: Humanitas, 2000, p. 61-62.

298 Nesse momento, é necessário fazer um esclarecimento, diferenciando as diferentes terminologias utilizadas pelos movimentos sociais em defesa do meio ambiente. Conforme Solange S. Silva- Sánchez: “alguns autores adotam o termo movimento ecológico ou ecologismo, outros preferem movimento ambientalista ou ambientalismo. De um modo geral, movimento ecológico está mais associado a uma visão conservacionista, embora isto não seja regra; já o ambientalismo pretende incorporar um conjunto de condições sociais que permeiam a problemática ambiental. No Brasil, os próprios militantes destes movimentos se autodefinem, predominantemente, como ambientalistas; também o Fórum de ONG’s e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e Desenvolvimento acolheu este termo. In Cidadania ambiental: novos direitos no Brasil. São Paulo: Humanitas, 2000, p.47. 299 Só é possível falar nestes termos se se levar em consideração a perspectiva rousseauniana de vontade geral como a vontade da maioria, pelo que também se faz imprescindível lembrar a contribuição habermasiana de formação argumentativa da legitimidade. Sobre o assunto, Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princípios do direito político. São Paulo: Martins Fontes, 2006; HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: Entre Facticidade e Validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, v.1.

poder econômico e político, desde os tempos mais remotos da formação do Estado nacional brasileiro.

As evidências disso encontram-se na ampla defesa e propagação oficial da ideologia do “Milagre Econômico”, vigente à época no Brasil, sustentando a promessa de um crescimento exponencial, nunca dantes visto, o qual, de fato, não pretendeu nem significou nenhuma modificação essencial na estrutura das atividades econômicas, seja na posição de dependência do Brasil nas relações internacionais, ou na distribuição interna das riquezas300.

O cenário ecológico também não era diferente. A Constituição imposta pelos militares “não fazia nenhuma referência especial ao combate à poluição e não garantia nenhum recurso para a preservação do meio ambiente”301.

Durante aquele período, enquanto os governos de muitos países já estavam despertos para a importância da inserção das preocupações ecológicas em suas agendas políticas, no Brasil tinha lugar um não desprezível ato de degradação de recursos, cujas cenas se vislumbram a partir das palavras de Vieira:

O povo [...] não tinha possibilidade de defender seu meio ambiente e intervir para evitar os crimes ecológicos que, durante anos, destruíram parcela importante do nosso meio ambiente. Sete Quedas morreu; a Amazônia sofreu uma devastação irrecuperável; a terra tornou-se cada vez mais propriedade de cada vez menos donos que a saqueavam na busca do sacrossanto lucro, expulsando o homem do campo, que vinha inchar as cidades, onde não encontrava trabalho; as cidades forma pasto de uma especulação imobiliária que criou monstrengos ingovernáveis, formigueiros mais a serviço do automóvel poluidor do que do cidadão. As tragédias ecológicas passaram a ser componentes usuais do repertório da lamentável cena do desenvolvimento de um país em “crescimento” que é grande exportador de armas e notável consumidor de agrotóxicos302

Tanto é que, no final do regime militar, havia um consenso na sociedade brasileira acerca de um colapso, que envolvia, além dos já mencionados danos

300Sobre este assunto, conferir o “Post scriptum em 1976”, de Caio Prado Jr. In: PRADO JR., Caio.

História econômica do Brasil. Versão digitalizada. Disponível em: <http://www.4shared.com>.

Acesso em: 03 dez 2008.

301 VIEIRA, Liszt. Constituição e meio ambiente: As raízes e o sonho... In: PÁDUA, José Augusto (org.). Ecologia e política no Brasil. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1987, p. 141.

ecológicos, a estagnação do crescimento econômico pautado no modelo fortemente insustentável ali praticado.

Segundo Vieira, não eram apenas os desfavorecidos que clamavam por mudanças; as classes dominantes também sentiam a necessidade de novas formas de legitimar o monopólio do poder estatal. Em boa medida, a democratização, para muitos entendida como uma transição conservadora, serviria apenas a isso303.

Era preciso, pois, disputar politicamente o próprio processo da democratização, para impedir que o autoritarismo sorrateiramente se mantivesse e, consigo, as práticas ecológicas predatórias resultantes de uma visão do meio ambiente como “mero objeto, inerte e “natural”, “matéria-prima” ou “paisagem” ”304.

Sem olvidar esse contexto é que se deve, pois, relatar e analisar os debates ocorridos em 1987.

A Assembleia Nacional Constituinte deu vida a oito Comissões e vinte e quatro Subcomissões de trabalho305. Como se vê, diante dessa organização, a quantidade e a complexidade de assuntos considerados relevantes, a serem debatidos e introduzidos na nova ordem, eram muitos, o que findou, como é amplamente sabido, em uma constituição extensa, corriqueiramente classificada como analítica.

303 Ibid., p. 147. 304 Ibid., p. 148.

305Seguem enumeradas as Comissões temáticas e as subcomissões correspondentes: 1 - Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher: a) Subcomissão da Nacionalidade, da Soberania e das Relações Internacionais; b) Subcomissão dos Direitos Políticos, dos Direitos Coletivos e das Garantias; c) Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais; 2 - Comissão da Organização do Estado: a) Subcomissão da União, Distrito Federal e Territórios; b) Subcomissão dos Estados; c) Subcomissão dos Municípios e Regiões; 3- Comissão da Organização dos Poderes e Sistema de Governo: a) Subcomissão do Poder Legislativo; b) Subcomissão do Poder Executivo; c) Subcomissão do Poder Judiciário e do Ministério Público; 4- Comissão da Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das Instituições: a) Subcomissão do Sistema Eleitoral e Partidos Políticos; b) Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança; c) Subcomissão de Garantias da Constituição, Reforma e Emendas; 5- Comissão do Sistema Tributário, Orçamento e Finanças: a)Subcomissão de Tributos, Participação e Distribuição das Receitas; b) Subcomissão de Orçamento e Fiscalização Financeira; c) Subcomissão do Sistema Financeiro; 6- Comissão da Ordem Econômica: a)Subcomissão de Princípios Gerais, Intervenção do Estado, Regime da Propriedade do Subsolo e da Atividade Econômica; b) Subcomissão da Questão Urbana e Transporte; c) Subcomissão da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária; 7- Comissão da Ordem Social: a) Subcomissão dos Direitos dos Trabalhadores e Servidores Públicos; b) Subcomissão de Saúde,

Seguridade e do Meio Ambiente; c) Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas

Deficientes e Minorias; 8-Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação: a) Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes; b) Subcomissão da Ciência e Tecnologia e da Comunicação; c) Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso.

Dentre estas muitas Comissões, estava a de Ordem Social e, subordinada a ela, a Subcomissão de estudos sobre Saúde, Seguridade e Meio Ambiente, nos dando um indício de que a proteção do meio ambiente estaria atrelada este grupo de interesses humanos.

Propiciou-se naquele espaço um aprofundamento na temática ecológica, com a realização de algumas reuniões, em que foram expostos dados e estudos de relevância para o direcionamento das políticas ambientais no Brasil. Os constituintes também se dispuseram a realizar visitas in loco a certas áreas consideradas merecedoras de especial proteção.

Por ocasião das reuniões e audiências públicas, contou-se com a participação do Deputado ambientalista Fabio Feldmann306, do então Ministério do Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente, na pessoa de Roberto Messias Franco, então responsável pela Secretaria do Meio Ambiente – SEMA – e também de representantes da sociedade civil, como a União dos Defensores da Terra, o Instituto de Estudos dos Problemas Contemporâneos da Comunidade, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC, além de integrantes do Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA, que se empenharam em apresentar aquilo que consideravam como temas ecológicos fundamentais, dignos de compor o texto constitucional, diante dos diversos problemas ambientais brasileiros –, como a expansão urbana, a poluição advinda da industrialização e da agricultura e a precariedade das unidades de conservação –, para os quais, em fins década de 1980, após quase quinhentos anos de exploração indiscriminada de recursos naturais, ainda não se tinha sequer começado a pensar soluções307308.

A expectativa de Roberto Messias Franco era de que, com o advento da nova ordem constitucional, o meio ambiente passasse a ser tido como um elemento componente da noção de desenvolvimento e de crescimento econômico, considerando-se as necessidades de preservação da diversidade biológica e dos patrimônios natural e cultural:

306 Ex-presidente da entidade ambientalista Oikos, eleito com o apoio do movimento ambientalista. 307 Cf. BRASIL. Anteprojeto Comissão da Ordem Social. Subcomissão da Saúde, Seguridade e

Meio Ambiente. VOL. 192, p. 172-173. Disponível em:

http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-192.pdf. Acesso em: 20 dez.2009.

308 A partir daqui, passa-se a uma análise do conteúdo dos anais da constituinte em matéria ambiental, destacando-se as contribuições que se entendem mais relevantes e originais dos oradores. Evitamos, portanto, reproduzir os temas que foram trazidos à tona mais de uma vez.

quando se faz uma nova Constituição, e a partir deste momento, portanto, creio que a sociedade e, em especial, o Congresso que elabora a nova Constituição, devem pensar, sobretudo, em fazer com que ela seja a tradução de uma nova perspectiva ecológica para o que queremos de desenvolvimento doravante309.

Nesse sentido, e diante da existência de um significativo passivo ambiental, identificou o controle da poluição como o desafio central a se enfrentar e enunciou quatro diretrizes fundamentais para uma mudança de paradigmas no tratamento jurídico do meio ambiente: o uso dos recursos naturais para a satisfação das necessidades das populações locais; a participação popular em decisões econômicas de repercussão ecológica; valorização de ecotécnicas; solidariedade intra e intergeracional.

O primeiro representante do Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA, Carlos Alberto Ribeiro Xavier, por sua vez, utilizou o seu espaço para expor de maneira sistematizada as propostas de algumas entidades ambientalistas. Destacou a importância do conhecimento sobre a natureza e que as intervenções econômicas fossem precedidas de estudos ambientais; defendeu a taxação do uso de recursos naturais para a proteção do patrimônio natural e genético brasileiro e evitar situações ecológicas abusivas, como a extinção de espécies; fez um apelo ao reconhecimento do papel das populações tradicionais na conservação do meio ambiente; apontou para a imprescindibilidade da disseminação de técnicas de manejo ecológico e, por fim, da necessidade de fortalecimento da educação ambiental.

A segunda integrante do CONAMA, Fernanda Colagrossi, dedicou o espaço a si concedido para demandar a inclusão da proteção jurídica dos animais, muitas vezes vítimas de maus tratos e de condições inadequadas de sobrevivência.

O membro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC –, Ângelo Barbosa Machado, defendeu a previsão constitucional de responsabilidade na esfera penal para condutas ambientais lesivas.

Por sua vez, o integrante da Associação Amigos de Petrópolis Patrimônio

Proteção aos Animais e Defesa da Ecologia – APANDE – Fernando Salino Cortes,

pontuou que os estudos no âmbito das Avaliações de Impactos Ambientais deveriam

ser capitaneados por firmas contratadas pelo órgão ambiental competente e não pelo empreendedor interessado; que os conflitos ambientais deveriam ser dirimidos em foro especializado; e que deveria haver previsão de dotação orçamentária mínima para o meio ambiente.

Tem-se assim descritas, resumidamente, as principais contribuições para o debate ali ocorrido. O que se pôde perceber, em um balanço geral das atividades da Subcomissão de Saúde, Seguridade e Meio Ambiente, apreendido através dos documentos consultados, foi que, mesmo tendo ocorrido tantas importantes discussões, debates e proposições em torno da questão ambiental, estas ainda foram evidentemente subestimadas, quando se levava em conta a atenção dispensada aos outros dois eixos temáticos ali agrupados pelos envolvidos.

Se isto aconteceu dentro da própria subcomissão, imagine-se, então, ao se considerar o tratamento conferido ao tema na própria Comissão da Ordem Econômica, em que se verificou que o maior destaque dado ao assunto consistiu em uma pequena fala do Constituinte Vladimir Palmeira, que sugeria timidamente uma atenuação dos efeitos predatórios do capitalismo sobre as riquezas naturais para atender às reivindicações das classes trabalhadoras310 e preocupações pontuais expressas por outros membros da Subcomissão concernentes às fontes energéticas não renováveis e à mineração.

O pleito dos ambientalistas poderia ter tido uma maior repercussão caso tivesse havido, inicialmente, a formação de uma comissão específica para tratar de meio ambiente, em cuja missão se encontrasse a realização de reuniões conjuntas com todas as outras subcomissões e comissões. Em segundo lugar, o anteprojeto já sistematizado deveria ter passado por uma revisão de modo que o alcance desta matéria ecológica em sede constitucional se desse de maneira realmente transversal, ampliando-se as possibilidades de coerência entre a proteção ecológica e os fundamentos e objetivos fundamentais do Estado.

310 BRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Comissão da Ordem Econômica. Subcomissão de Princípios Gerais, Intervenção do Estado, Regime da Propriedade do Subsolo e da Atividade Econômica, p. 62. <http://www.senado.gov.br/sf/publicacoes/anais/constituinte/6a%20- 20SUBCOMISSÃO%20%

20DE%20PRINCÍPIOS%20GERAIS,%20INTERVENÇÃO%20DO%20ESTADO,%20REGIME%20DA %20PROPRI.pdf>. Acesso em: 20 nov. 2014.

Embora isso não tenha ocorrido, é preciso destacar que, se comparada a Constituição brasileira de 1988 às anteriores, no que concerne à questão ecológica, tem-se um ganho genuíno, tanto de uma perspectiva formal, quanto material.

Afinal, como se divulga amplamente, foi a primeira a destinar um capítulo para a tutela do meio ambiente, tratando-o como direito e dever fundamental, a ponto que Benjamin chega a falar que, nesta temática, o novo diploma nos levou “da miserabilidade à opulência”311 ecológica.

Tanto é que se reconheceu na justificativa do Anteprojeto Afonso Arinos que “a introdução da temática ambiental na Constituição Brasileira é um marco histórico e talvez seja um dos fatos mais significativos nos trabalhos desta Constituinte”312 .

Assim, o advento do regime democrático de fato foi favorável à ampliação da proteção jurídica do meio ambiente; contudo, também fez saltar aos olhos o quão impactante foi a preocupação tardia com este assunto, que resultou em um passivo ambiental significativo nas mais diversas searas, ocasionando, inclusive, efeitos sinérgicos pela interação de toda sorte de danos ecológicos.

Nesse contexto, o desafio da Constituinte, como se viu, era fazer sair vitorioso um texto que permitisse a articulação sistêmica de mecanismos políticos e jurídicos, que tivesse o objetivo de reverter, ou ao menos, atenuar a lógica predatória regente das relações ser humano-natureza na ocupação do território brasileiro em quase quinhentos anos de história.

Como se haveria de supor, tal saga não teria como se realizar de maneira simplória; havia a necessidade de se fazer profundas alterações nas bases do próprio sistema. Seria inevitável pensar em novas escolhas econômicas para o Estado, por meio da adoção de medidas capazes de intervir na expansão desgovernada do [neo]liberalismo econômico e do industrialismo, que deveriam estar intrinsecamente relacionadas a um programa de sensibilização e educação

311 BENJAMIN, Antonio Herman. Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. In: CANOTILHO, Joaquim José Gomes; LEITE, José Rubens Morato. Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 104.

312 BRASIL. Anteprojeto Comissão da Ordem Social. Subcomissão da Saúde, Seguridade e Meio

Ambiente. VOL. 192, p. 10. Disponível em:

http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-192.pdf. Acesso: 20.12.2009.

dos cidadãos alertando sobre os perigos das diretrizes filosófico-culturais que edificaram o império do efêmero313, como o hedonismo e o utilitarismo.

Em suma, a Constituinte lançou ao tema ambiental um olhar politicamente inovador, economicamente tímido314, materialmente amplo e sistêmico, emergencial, mas também preventivo e eticamente sincrético.

Assim se originou a Constituição Ambiental que foi contextualmente possível, a qual se pode distinguir como notadamente vitoriosa, por muitos aspectos de seu texto, que serão analisados adiante, mas também, por um aspecto simbólico, de grande relevância, ao qual se pode fortemente associar à ideia de “sociologia das emergências”, cunhada por Boaventura de Sousa Santos, da qual diz palavras que entendemos perfeitamente aplicáveis ao objeto em análise:

A abordagem que aqui adopto consiste [...] numa sociologia das emergências, o que implica interpretar de maneira expansiva as iniciativas, movimentos ou organizações que se mostram resistentes à globalização neoliberal e à exclusão social e que lhe contrapõem alternativas. [...] O alargamento simbólico gerado pela sociologia das emergências visa analisar as tendências ou possibilidades inscritas numa dada prática, experiência ou forma de conhecimento. Actua ao mesmo tempo sobre as possibilidades e as capacidades. Identifica sinais, pistas, ou rastos de possibilidades futuras naquilo que existe315.

Portanto, a investigação dos anais da Constituinte pode nos levar, para além de uma interpretação histórica da Constituição de 1988 – no sentido de se tentar compreender e aplicar, na prática, o que seria a vontade do legislador naqueles tempos passados – à percepção de que mais do que uma linha de chegada, a Constituição de 1988 é, também, e principalmente, um ponto de partida.