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3.2 Aspectos jurídicos

3.2.1 Quanto às consequências jurídicas da atribuição ou não de valor intrínseco às

O primeiro aspecto de natureza jurídica sobre o qual se pode levantar contrapontos acerca da proposição de Bosselmann diz respeito às consequências jurídicas do reconhecimento do valor intrínseco das outras formas de vida: atribuir ou não atribuir posição jurídica subjetiva aos entes não humanos?

Decidiu-se expor, a título exemplificativo, algumas perspectivas confrontantes à ideia da representatividade da natureza a partir de orientações bem distintas.

219 UNIVERSIDAD AUTÓNOMA DEL MEXICO. Convocan a crear una carta mundial de obligaciones.

Gaceta digital UNAM. 25 jun. 2015. Disponível em: <

http://www.gaceta.unam.mx/20150625/convocan-a-crear-una-carta-mundial-de-obligaciones/ >. Acesso em: 26 jun. 2015.

Primeiramente, tem-se a tradição jurídica, conservadora, a qual, se apoiando no fato de o direito ser um fenômeno humano, historicamente tem construído a posição da natureza enquanto objeto de direito221. Não é à toa que os recursos naturais como a água e o ar tenham sido classificados como res commune, e os animais, como res nullius.

Mas, mais do que isso, chega-se a prelecionar a primazia absoluta dos valores humanos sobre os valores ecológicos e até mesmo a subordinação jurídica destes a aqueles. É o posicionamento de Miguel Reale:

É preciso, antes de mais nada, repetir que não se protege a natureza apenas em si mesma e por si mesma, mas sobretudo enquanto ela constitui o valor condicionante por excelência da vida humana, o que quer dizer que a ecologia se subordina à antropologia, ou seja, às exigências vitais do ser humano222.

Percebe-se que a defesa desta posição insere-se no âmbito de uma visão antropocêntrica do Direito, que restringe grandemente as possibilidades normativas que venham a contrariar o exercício praticamente irrestrito das atividades econômicas.

A posição de Reale é anacrônica e irrealista, fundada numa visão do Direito enquanto fenômeno isolado das novas descobertas científicas das ciências naturais sobre a interdependência da vida humana relativamente à diversidade biológica da Terra.

Nesse sentido são as críticas de Édis Milaré:

É questionável, à luz das ciências do ambiente, afirmar que a Ecologia subordina-se à Antropologia. [...] Questionável sim, parece submeter a Ecologia aos exclusivos interesses humanos, porquanto a Ecologia – seja no sentido estrito de ciência, seja no senso lato de meio ambiente – refere- se aos conhecimentos e às interações dos seres que compõem organizadamente um ecossistema (no caso, o conjunto de seres da biosfera que formam o ecossistema planetário). O Homem não é a medida de todas as coisas, como queria Protágoras (490-420 a.C.), nem mesmo a referência maior para a Natureza. Ao contrário, a Natureza e suas leis são referência obrigatória para o Homem. A razão é simples: não somos extraterrestres

221

“A índole conservadora da ciência jurídica, voltada para o ordenamento formal das ações humanas na vida em sociedade, explica por si só uma tendência conatural para o antropocentrismo. A distinção quase básica entre pessoas e coisas (este é um exemplo simplificador) estabelece grande diferença entre dois mundos completamentares e recíprocos, todavia separados por um fosso intransponível que, ao seu modo, a legislação cada vez mais especializada alarga e mantém aberto”. MILARÉ, Édis. Antropocentrismo X Ecocentrismo na Ciência Jurídica. Revista de Direito Ambiental. v. 36, p. 9-41, out./dez/2004, p. 16

222 REALE, Miguel. A Ecologia na Legislação Brasileira. Reale Advogados, 2004, p. 8. Disponível em: < http://www.realeadvogados.com.br/opinioes/prof.pdf>. Acesso em: 09 set. 2015.

nem robôs artificiais, somos seres contextualizados no ordenamento e na vida do Planeta223.

O autor arremata suas críticas a Reale, reafirmando a necessidade de que o Direito Ambiental não legitime a existência de normas que venham a ser consideradas adequadas do ponto de vista do crescimento econômico, porém completamente alienadas das demandas de conservação, regeneração e recuperação dos ecossistemas:

o meio ambiente encontra-se na confluência de juízos de valor (Direito e Ética) e de verdades sobre o mundo natural (Ciência). Por isso, o diálogo deve ser constante [...]. Cabe ao Direito Ambiental construir uma realidade jurídica que corresponda às exigências científicas224

No cenário proposto por Reale, abre-se espaço para a criação de uma realidade jurídica artificial e insustentável, que contraria as leis naturais de organização da própria vida.

Ali, não haveria que se falar em abrigar mecanismos de solução de conflitos de interesses entre humanos e não humanos, avalie-se em reformular a estrutura organizacional do Estado com vistas à regulação da proteção integrada de todas as formas de vida, tal como é a proposta do Estado Ecológico.

Este viés prima pela manutenção do modelo atual, que vem dando sinais de esgotamento, e cujas medidas tem sido insuficientes para lidar com os desafios de manutenção do equilíbrio ecológico, que vem se complexizando com o passar do tempo.

Os demais posicionamentos que podem ser contrapostos à ideia de representatividade da natureza de Bosselmann partem da necessidade de reconhecimento, em maior ou menor medida, da existência de valor intrínseco a seres não humanos, gerando como consequência necessária disso a atribuição de direitos subjetivos a eles.

223 MILARÉ, Édis. op.cit., 2004, p. 17-18. 224 Ibid., p. 22.

O trabalho pioneiro nesse sentido se deve ao pesquisador Christopher D. Stone, que na despretensiosa obra “Should Trees Have Standing?”225 lançou as bases para a defesa de direitos à natureza, a qual alcançou uma repercussão jamais imaginada por seu próprio autor226.

Basicamente, Stone levanta três elementos para a admissão da personalidade jurídica da natureza: que a demanda seja proposta em nome do ente afetado, em seu próprio interesse de agir; que o cálculo dos danos inclua a contabilização dos interesses ou do valor intrínseco do ser afetado, que não se resume ao valor econômico; que o julgamento possa ser aplicado de modo a beneficiar o ente227.

Há também inúmeros autores, com significativa expressividade entre os não- antropocêntricos, que defendem que somente os animais sejam considerados sujeitos de direitos.

Dentre os principais expoentes desta linha está o filósofo utilitarista Peter Singer, que propugna que os animais senscientes, isto é, capazes de sentir dor, sofrimento e alegria, sejam eles humanos228 ou não, devem ser tratados como sujeitos de dignidade e de direitos.

A partir disso, defende que não somente as relações entre os seres humanos deve se pautar pelo princípio da igualdade, mas também que este é uma “base moral sólida” da relação entre humanos e não-humanos.

Para ele, a dominação ou o favorecimento humano sobre os demais configuraria prática discriminatória e opressiva, analogamente ao que se tem quanto a negros escravizados e mulheres, a que denomina especismo.

225 O autor ministrava uma aula introdutória sobre Direito de Propriedade (Property Law) quando afirmou que as sociedades passavam por diferentes níveis de evolução, crescimento e sensibilidade; que muitas coisas já foram objeto de propriedade e hoje já não são – como os próprios seres humanos – e que também há uma dimensão interna, moral, na relação com a propriedade, exemplificada pela possibilidade de controle sobre os bens após a própria morte (direito sucessório); a partir disso, questionou como uma sociedade direcionada juridicamente de maneira radicalmente diferente seria? Por exemplo, uma em que rios, árvores e animais tivessem direitos. A partir disso, começaram as suas reflexões sobre o tema. In: STONE, Christopher. Should Trees Have Standing? Law, Morality and the Environment. 3. ed. New York: Oxford University Press, 2010.

226 STONE, Christopher. op.cit. 227 Ibid.

228 Em nome da coerência e da universalidade atribuída a este critério, Singer defende delicados posicionamentos, como a legalização do aborto e da eutanásia entre os humanos. Cf. SINGER, Peter. Ética prática. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

As principais consequências práticas imediatas atreladas às premissas do autor seriam a adoção do vegetarianismo como forma de alimentação prioritária229, a restrição significativa do uso de animais em experimentos científicos, sobretudo em testes nas indústrias de cosméticos.

Embora tenha algumas ideias convergentes com a destes pensadores, Bosselmann não é um entusiasta da atribuição de direitos subjetivos aos animais, ou mesmo a entes naturais em geral.

Todavia, a restrição de Bosselmann ao tema não se daria por uma eventual impossibilidade jurídica: para ele, plantas, animais e os demais seres até poderiam ter direitos, da mesma maneira que os tem os Estados, as empresas e demais pessoas jurídicas. Não há, portanto, nenhuma razão de caráter estritamente jurídica que limite o direito de ter direitos aos humanos.

Em verdade, o principal aspecto que leva o referido teórico a não acatar a posição dos animais enquanto sujeitos de direitos e sustentar, ao invés, a defesa da representatividade, é o risco de que, no atual contexto histórico e cultural, esta abordagem tire o foco de atenção da proteção da integridade ecológica, a partir do olhar fragmentado sobre os bens singularmente considerados.

229 “No que diz respeito à alimentação, a grande extravagância não é o caviar ou as trufas, mas a carne de vaca, a carne de porco e o frango. Cerca de 38 % da produção mundial de cereais serve, actualmente para alimentar animais, assim como grande quantidade de soja. Há três vezes mais animais domésticos neste planeta que seres humanos. O peso total dos efectivos mundiais de gado bovino (1280 milhões) excede, só por si o da população humana. Enquanto olhamos com tristeza para o número de crianças que nascem nas regiões mais pobres do mundo, ignoramos o excesso de população dos animais de criação, para o qual contribuímos. O prodigioso desperdício de cereais que servem para a alimentação intensiva de animais já foi mencionado nos capítulos 3 e 8. Isso, contudo, é apenas uma parte do prejuízo causado pelos animais que criamos deliberadamente. Os métodos de energia intensiva da agropecuária industrial dos países desenvolvidos são responsáveis pelo consumo de quantidades enormes de combustíveis fósseis. Os fertilizantes químicos usados para a produção de rações para o gado e os porcos e galinhas criados em recintos fechados produzem óxido nitroso, outro gás que causa o efeito de estufa. Depois há a perda das florestas. Por todo o lado, os habitantes das florestas, tanto humanos como não humanos estão a ser escorraçados. Desde 1960, 25 % das florestas da América Central foram abatidas para se criar gado. Depois de arroteados, os solos pobres suportam pastagens durante alguns anos, após o que se torna necessário procurar novas pastagens. Os arbustos invadem as terras de pastagem abandonadas, mas a floresta não regressa. Quando as florestas são abatidas para se criarem pastagens para o gado, biliões de toneladas de dióxido de carbono são libertadas na atmosfera. Por fim, pensa-se que o gado mundial produz cerca de 20 % do metano libertado na atmosfera e o metano capta vinte e cinco vezes mais calor do Sol que o dióxido de carbono. O estrume das explorações agropecuárias também produz metano, porque, ao contrário do estrume depositado naturalmente nos campos, não se decompõe na presença do oxigénio. Tudo isto corresponde a uma razão imperiosa, a somar à que se desenvolveu no capítulo 3, em favor de uma alimentação baseada sobretudo em vegetais”. SINGER, Peter. Ética Prática. Lisboa: Tipografia Lugo. [s.d.] Edição eletrônica. Disponível em <www.4shared.com>. Acesso em: 15 set. 2015.

Segundo Bosselmann,

Depois de mais de 30 anos de debate pode-se concluir que os direitos da natureza são compatíveis com a teoria liberal, mas nem tanto com a ecologia. A razão é que os direitos liberais perpetuam um núcleo de liberdade individual que é hostil a responsabilidades ecológicas. [...] Em outras palavras, o discurso dos direitos da natureza não faz sentido a não ser quando reflexo do contexto ideológico de seus participantes. Stone sempre pensou sobre sua defesa dos direitos da natureza como uma chamada para a mudança ética e social profunda, não para atualizar o antropocentrismo230.

Portanto, se este formato fosse aplicado num contexto político e jurídico de maior amadurecimento sobre a necessidade de proteção da diversidade biológica e dos processos ecológicos essenciais, talvez não chegasse a ser um problema.

Mas, no atual contexto de avanço do liberalismo econômico, não se descarta que viesse apenas a reforçar o individualismo, a partir da inclusão no rol de sujeitos os animais e/ou plantas singularmente considerados, e até mesmo do próprio antropocentrismo.

Para ilustrar, tem-se alguns exemplos que permitem visualizar a coerência das restrições de Bosselmann a esta visão.

Inicialmente, cita-se a exposição de motivos de Cass Sustein em emblemático artigo em que justifica a importância de reconhecimento de posição subjetiva aos animais:

Existem aproximadamente sessenta milhões de cães domésticos nos Estados Unidos, pertencentes a mais de trinta e seus milhões de famílias. Mais da metade dessas famílias dão presentes de natal para seus cachorros. Milhões delas celebram os aniversários de seus cachorros. [...] O que puder ser dito a respeito dos donos de cachorros, pode também ser dito a respeito dos donos de gatos [...] A lei deveria promover o bem-estar dos animais?231

Como se vê, o autor concentra seus esforços em analisar a situação dos animais domésticos, que recebem um tratamento humanizado por parte dos seus donos. Será que é o fato de eles estarem sendo tratados semelhantemente aos humanos que faz com que eles mereçam a proteção do direito? Com isso, não se estaria enfraquecendo a própria ideia de um valor inerente a estes seres? Não que

230 BOSSELMANN, Klaus. op.cit., 2015, p. 122-123.

231 SUSTEIN, Cass. Os direitos dos animais. Revista Brasileira de Direito Animal. v.9, n. 16, p. 47- 70, mai/abr. 2014, p. 48.

estes não mereçam proteção jurídica, mas por que não se mencionou, ainda que de passagem, as demandas de preservação de animais silvestres e de seus respectivos habitats? Esta proposta é compatível com natureza difusa e transfronteiriça do meio ambiente?

Contudo, com isso não se quer afirmar que proposições utilitaristas como a de Sustein não possam influenciar em uma melhoria do tratamento dos animais em vários aspectos relevantes:

Mas a minha posição tem implicações radicais próprias. Ela sugere fortemente, por exemplo, que deve haver uma extensa regulação da utilização de animais em entretenimento, experiências científicas e na agricultura. Ela também sugere que há um forte argumento, em princípio, para a proibição de muitos usos atuais dos animais. Na minha opinião, esses usos podem muito bem ser vistos daqui a cem anos, como uma forma de barbárie inconcebível. A este respeito, penso que Bentham e John Stuart Mill não estavam errados ao fazer uma analogia entre os atuais usos dos animais com a escravidão humana232.

Apenas insiste-se que esta visão é insuficiente quando consideramos uma visão integrada da natureza.

Por fim, tem-se ainda a perspectiva de Richard Epstein, que defende, diante dos novos desafios oriundos da diversificação tecnológica em variados setores, a existência de valores intrínsecos aos animais e a necessidade de reconhecimento de suas posições subjetivas.

Para ele, o fundamento da proteção jurídica de entes não humanos deve continuar orientado por valores utilitaristas, de maneira que se deve fortalecer a luta contra o sofrimento desnecessário e a proteção dos interesses não conflitantes com o dos seres humanos.

Segundo Epstein, o grande desafio é quando há superposição entre os interesses dos humanos e não humanos, pois não deve haver impedimentos para o avanço de experimentação animal em medicamentos nem em cosméticos, de produção de animais em larga escala para a alimentação humana e de outras atividades econômicas233.

232 Ibid., p. 50. 233

“Neste ponto, a questão se coloca, qual deveria ser o correto regime legal com respeito aos animais? Aqui seria simplesmente insano insistir que os animais devem ser tratados como objetos inanimados. O nível de preocupação humana com os animais, em abstrato, torna esta posição moralmente repugnante para a maioria das pessoas [...] É claro que é bastante simples editar e fazer

A partir disso, fica ainda mais evidente que o fato em si de atribuir ou não direitos subjetivos à natureza não significa uma ruptura com o antropocentrismo, e, como se viu em Epstein, aparentemente nem com o antropocentrismo economicocêntrico, por mais esdrúxulo que isso possa parecer em um primeiro momento.

Por fim, registre-se que, independentemente da atribuição de direitos subjetivos ou da representatividade, é preciso haver mecanismos processuais hábeis à garantia da proteção jurídica do meio ambiente ecologicamente equilibrado234.