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No desenrolar da construção teórica do Estado Ecológico na Alemanha, Bosselmann encontrou em Michael Kloepfer, idealizador do conceito de Estado de Direito Ambiental, conforme visto anteriormente, um de seus mais ferrenhos críticos. Kloepfer anuncia que a proposição de Bosselmann243 se assemelha ao que ele denomina de “ecoestado” (Ökostaat, eco-state) ou de “ecoditadura” (Ökodiktatur). Isto porque o direito de liberdade seria completamente ou em larga medida cerceado em nome de medidas estatais excessivas no campo da política ambiental244.

Este modelo se basearia no monopólio estatal para a tomada de decisões ambientais, por este motivo denominado por alguns de ecofascimo (eco-fascism). Kloepfer, no entanto, sinaliza que a explicitação de um tal cenário seria bastante improvável, ao contrário de formas mais ocultas de uma ecoditadura ou de passos em direção a ela. Segundo ele, poder-se-ia esperar um lento e insidioso crescimento de formas autoritárias e burocráticas, em que a estrutura constitucional seria, em princípio, mantida245.

Kloepfer admite que a proteção do ambiente é impossível sem alguma restrição de liberdade, mas o objetivo é que estas ocorram somente em casos essenciais, quando forem inevitáveis.

243 Embora a crítica não seja desferida nominalmente nenhuma passagem do artigo de Kloepfer, Klaus Bosselmann confirmou ser o destinatário delas em contato pessoal com esta pesquisadora via correio eletrônico, ocasião em que encaminhou uma vasta obra coletiva que trata de resposta a este tema. BOSSELMANN, Klaus. Re: Contact – Brazilian PhD Student [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por <emaildastela@gmail.com> em 01 de junho de 2013.

244 KLOEPFER, Michael. An Authoritarian Ecological State?

– Is There the Threat from an Authoritarian Ecological State? European Environmental Law Review, p. 112-115, april 1994, p. 113

Por fim, o autor apregoa a necessidade de renovação da comunidade liberal para internalizar a proteção ambiental enquanto objetivo estatal e anuncia dois dos fatores que ameaçam a emergência do autoritarismo ecológico são a intensidade da crise ecológica e o quão rapidamente ela será gerenciada, tanto em nível local quanto global. Afirma, ainda, que se deve combater a crise de credibilidade do Estado, ocasionada por medidas de proteção ambiental ineficazes. Uma proteção ambiental eficiente pressupõe, contudo, uma política ambiental preventiva, que também inclua as responsabilidades de longo prazo.

Bosselmann, em resposta às críticas, esclarece que a ideia de um governo autoritário “benevolente” em relação à questão ecológica até poderia ser mais eficaz no sentido de impelir a realização de determinadas condutas sustentáveis, mas, por outro lado, não abriria o espaço necessário para fazer aflorar o protagonismo popular essencial à sua consolidação246.

Por conta disso, ter-se-ia uma proposta de ecologização estatal vulnerável, sobretudo aos próprios interesses unívocos do poder político centralizado.

Além disso, para melhor contextualizar a resposta de Bosselmann a Kloepfer, é importante tecer algumas considerações gerais: a primeira, no sentido de reafirmar a distinção entre o liberalismo político e o liberalismo econômico, esclarecendo-se que apenas o primeiro, resultante das doutrinas de defesa dos direitos políticos dos indivíduos em face do Estado, é requisito essencial para a democracia.

Isto significa dizer que a organização econômica segundo o sistema capitalista de livre mercado, regido pela intervenção mínima, não é essencial à democracia.

Esta posição é admitida por teóricos como Hans Kelsen247 248 e Norberto Bobbio, por onde se tem a possibilidade de existência, por exemplo, de uma democracia socialista249.

246 BOSSELMANN, Klaus. Earth democracy: institutionalizing sustainability and ecological integrity. In: ENGEL, J. Ronald; WESTRA, Laura; BOSSELMANN, Klaus (ed.). Democracy, Ecological Integrity

and International Law. Cambridge: Cambridge Scholars Publishing, 2010, v. 1, p. 96.

247 MOTTA Luiz Eduardo. Direito, Estado e Poder: Poulantzas e seu conflito com Kelsen. Revista de

Sociologia e Política, v. 19, n. 38, p. 7-25, fev. 2011.

248 Embora Kelsen seja um grande crítico do Marxismo. Sobre o assunto, Cf. MOTTA Luiz Eduardo. Direito, Estado e Poder: Poulantzas e seu conflito com Kelsen. Revista de Sociologia e Política, v. 19, n. 38, p. 7-25, fev. 2011; KELSEN, Hans. Teoria comunista del Derecho y del Estado. Buenos

Assim, partindo dessa mesma premissa, Bosselmann não apenas acolhe a possibilidade de coexistência do Estado Ecológico e do regime democrático, como também vai além, no sentido de afirmar que a democracia é crucial para o desenvolvimento sustentável justo e humano250.

Tal visão se afigura coerente com o que J. Ronald Engel251 identifica como a interpretação ampla do ideal democrático, em detrimento da visão estreita, caracterizada por expressões como “democracia procedimental”, “democracia liberal”, “democracia representativa”, ou simplesmente “processo democrático”. Muito além disso:

A democracia em uma interpretação ampla uma multiplicidade de bens, incluindo as virtudes do que é muitas vezes chamado de "modo de vida democrático" - respeito pelos outros e respeito por si mesmo, não-violência e persuasão mútua, razão crítica e pesquisa empírica, confiança e hospitalidade para o estrangeiro, e compaixão para com o sofrimento dos outros; bem como os bens políticos distintos associados com o Estado de Direito com base na igualdade justiça, razão e consentimento; política universal, direitos civis, econômicos, sociais e culturais concebidos como pré-requisitos essenciais do cultivo de nossas capacidades humanas comuns para o desenvolvimento físico, intelectual e moral, e fundamentada no direito à vida e à segurança da propriedade e da comunidade; uma rica herança de analogias entre os princípios democráticos que empregamos a viver juntos e com os princípios que empregamos em nosso tratamento do restante da natureza, incluindo um longo debate sobre os direitos da natureza; e, em geral, uma celebração de uma cidadania ativa que serve o bem comum.252

Aires: Emecé, 1957; KELSEN, Hans. Escritos sobre la democracia y el socialismo. Madrid: Debate, 1988.

249 Veja-se o seguinte trecho, ilustrativo do que ora se afirma: “No momento mesmo em que a

democracia, como forma de governo, se conjuga tanto com o liberalismo como com o socialismo, também a relação entre democracia e socialismo pode ser representada de igual modo como relação de possibilidade ou de possível coexistência, de impossibilidade (por parte dos democratas liberais ou, no extreme oposto, dos defensores da ditadura do proletariado), ou de necessidade, como nas doutrinas e nos movimentos social-democratas, Segundo os quais apenas através da democracia se realiza o socialismo e apenas no socialismo o processo de realização da democracia chega ao seu pleno cumprimento”. Cf. BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. 6.ed.4. reimp. São Paulo: Brasiliense, p. 54.

250 BOSSELMANN, Klaus. Earth democracy: institutionalizing sustainability and ecological integrity. In: ENGEL, J. Ronald; WESTRA, Laura; BOSSELMANN, Klaus (ed.). Democracy, Ecological Integrity

and International Law. Cambridge: Cambridge Scholars Publishing, 2010, v. 1, p. 98.

251 ENGEL, J. Ronald. Contesting Democracy. In: ENGEL, J. Ronald; WESTRA, Laura; BOSSELMANN, Klaus (ed.). Democracy, Ecological Integrity and International Law. Cambridge: Cambridge Scholars Publishing, 2010, v. 1, p. 28.

252

Tradução livre (“democracy in it thick interpretation bears a multiplicity of goods, including the virtues of what is often called the "democratic way of life" - respect for others and respect for self, non-violence and mutual persuasion, critical reason and empirical inquiry, trust and hospitality for the stranger, and compassion for the suffering of others; as well as the distinctive political goods associated with the rule of law based on equal justice, reason and consent; universal political, civil, economic social and cultural rights, conceived as essential preconditions of our cultivation of our

Ademais, Bosselmann ressalta que os desafios ecológicos não podem ser enfrentados sem os fundamentos democráticos: o Estado de Direito, a sociedade aberta, a mídia independente, experimentação e baixos níveis de corrupção.

Contudo, reconhece também os desafios e paradoxos a que as democracias representativas reais se sujeitam, desde a dificuldade dos parlamentares em contrariar interesses imediatos de consumidores e produtores, que contam ainda com o lobby e apoio da grande mídia, em nome de interesses ecológicos maiores aos milhares e milhões de cidadãos desesperançosos e desempoderados, que não participam efetivamente dos processos decisórios. 253.

Nesse sentido, o autor propõe que cidadãos, políticos e até empresas que tenham uma maior consciência acerca da necessidade de mudanças, que se unam em busca da efetivação de uma “Democracia da Terra” (Earth Democracy), partindo das seguintes questões-chave: associar o exercício da cidadania à sustentabilidade; reformulação da ideia de responsabilidades associada à de cidadania, considerando as futuras gerações e a natureza como um todo; promover a interação entre responsabilidade ética e ativismo político no contexto da cidadania.

Esta proposta não se trata exatamente de um modelo fechado de governança, mas chama a atenção para o fato de que pensar uma proposta de organização política democrática sustentável implica em concebê-la de forma multidimensional, seja em relação aos níveis, ou aos métodos: global e local; econômico e ecológico, incluindo preocupação especial também com as necessidades básicas de saúde das pessoas, comunidades e ecossistemas; multicultural, incluindo aspectos de gênero; política, envolvendo a democracia no sentido pactual, político, deliberativo, representativo e participativo; racional; e espiritual.

common human capacities for physical, intellectual and moral development, and grounded in the right to life and security of one´s person property and community; a rich heritage of analogies between the democratic principles we employ to live together and the principles we employ in our treatment of the rest of nature, including a long debate over the rights of nature; and overall, a celebration of active citizenship that serves the common good”.). Cf. ENGEL, J. Ronald. Contesting Democracy. In: ENGEL, J. Ronald; WESTRA, Laura; BOSSELMANN, Klaus (ed.). Democracy, Ecological Integrity

and International Law. Cambridge: Cambridge Scholars Publishing, 2010, v. 1, p. 29.

Justamente por isso, o modo de consecução destas transformações paradigmáticas não seria de forma revolucionária, muito menos de maneira autoritária; mas sim, segundo Bosselmann, por meio um processo contínuo, aberto e pacifista. Tanto se pode pensar em objetivos mais precisos e imediatos, como também estimular a persecução de objetivos de longo prazo254.

Difícil não lembrar, nesse sentido, da contribuição de Michel Serres a este tema. Este autor constata, diante da crise ecológica e do modelo de exploração parasitária do homem sobre os recursos naturais, que não apenas se faz necessário repensar o contrato social, mas também que este seja aliado a um contrato natural, fundado na simbiose255 e na reciprocidade, por meio do qual seja possível equilibrar as relações entre as partes envolvidas no bom funcionamento da biosfera. O autor remonta, ainda, ao fato de que historicamente a própria noção de justiça, desde a antiguidade, vem sendo associada à noção de equilíbrio, a qual agora necessita dar um salto qualitativo256.

Por fim, importa mencionar que há documentos internacionais que servem como referência e elencam princípios e diretrizes a serem seguidas nesse sentido, entre os quais se destacam: a Carla Mundial da Natureza das Nações Unidas, de 1982; a Agenda 21, fruto da Conferência do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992; a Convenção da Biodiversidade (1992); a Carta da Terra, de 2000.