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Aspectos dos juízos contemporâneos sobre a Revolução na França

CAPÍTULO III O Estado-Nação

E. Aspectos dos juízos contemporâneos sobre a Revolução na França

Os dois primeiros anos da Revolução foram saudados com entusiasmo pela grande maioria da intelligentzia européia conquistada para as idéias da Idade das Luzes. Todavia, se excetuarmos Kant (cf. supra, cap. II), Fichte (cf. infra, cap. III, 2, A) e Hegel, na Alemanha, e o inglês Thomas Paine (eleito deputado à Convenção), esse entusiasmo não durou muito: as vitórias militares do exército francês e o Terror provocaram um recuo geral e, pouco tempo depois, a hostilidade: o nacionalismo pregado pela República suscita, em ação de retorno, reações nacionais, das quais a evolução de Fichte é um sugestivo testemunho.

A atitude de Edmund Burke (1729-1797) se destaca pela sua firmeza. Esse membro do Parlamento britânico, aristocrata irlandês liberal, que defendeu os direitos dos católicos da Irlanda e legitimou a insurreição dos 'colonos da América, publicou já em 1790 suas Reflexões sobre a Revolução na França, que condenam o empreendimento revolucionário sem apelação. Ele o condena por ser o fruto da Razão abstrata dos filósofos, que só pode engendrar desordem e violência. Colocando como objetivo o estabelecimento da liberdade e da igualdade universais, os patriotas franceses voltam as costas para a natureza. Decerto, a idéia de natureza sobre a qual Burke se apóia carece de clareza: dela fazem parte tanto considerações teológicas -

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depende da incompreensível Providência Divina - como referências empíricas - o conhecimento que os homens têm da natureza é função de suas experiências. Mas é precisamente forte o sentimento que temos de que há uma realidade, que não depende de nós e que só podemos apreender com referência à tradição, lentamente forjada pelos ancestrais e graças às nossas próprias vicissitudes, que leva a recusar como ineptos e perigosos os projetos que procedem por decreto e que especulam com uma meta física da humanidade.

Uma Constituição "fabricada" pela reflexão é inoperante: o contrato sobre o qual se funda uma organização social sólida e equilibrada instaurou-se progressivamente por uma lenta maturação, no curso da qual se revelaram os benefícios do bom senso c da virtude e do uso bem regrado da liberdade. Se o povo inglês é hoje um povo livre constata Burke -, isso ocorre porque ele aprendeu no curso dos séculos a implantar instituições diversificadas, que garantem as liberdades compatíveis com a ordem e a obediência, em vez de reivindicar a liberdade em geral; e porque ele se ligou a pessoas e não a princípios. Burke denuncia com vigor as pretensões centralizadoras da Constituinte, como a sua vontade de legiferar de uma vez por todas. Na opinião dele, as regras às quais devemos nos dobrar são as da moral legada pela tradição; quanto ao governo, não é coisa de que qualquer um possa se ocupar: o tempo e a experiência segregam em cada época uma aristocracia que sabe calcular a política conveniente ao bem-estar da coletividade. Pois o conservadorismo do moralista se alia sem dificuldades aparentes com o sentido do útil, lugar comum do pensamento britânico desse período.

Na mesma ótica, Jeremias Bentham (1748-1822) não tardará a elaborar uma teoria da pena e da instituição carcerária, a qual, como Michel Foucault mostrou (cf. infra, capo X), instaura em nome da segurança de todos e do respeito às liberdades privadas de cada um uma técnica de vigilância generalizada...

A despeito dessa sabedoria um tanto ou quanto limitada, a obra de Burke testemunha uma visão aguda da falha que seu caráter doutrinário representou para a Revolução Francesa. Ela explícita uma crítica bem mais pertinente do que a pesada teoria da história providencialísta administrada por Joseph de Maistre (1753-1821) em suas Considerações sobre' a França (1796), ou do que as estranhas Considerações sobre a Revoluções (1797) de Chateaubriand (1768-1848), divididas entre as fidelidades monarquistas de seu autor e a atração que sente pela idéia da liberdade!

Mas já uma outra Europa está em vias de nascer: o rumor das botas dos exércitos imperiais despertam os nacionalismos; e as dinastias burguesas estão prestes a substituir as monarquias decadentes...

2 . O nacionalismo na Europa

A ideologia nacionalista, decerto, é bem anterior ao século XIX. Mas foi durante esse período que a Nação passou a ser tomada como tema de análise e de reflexão, e que foi erigida em argumento destinado a justificar um tipo de poder. É difícil distinguir, nela, o que pertence à concepção política e o que resulta do espírito da época, expresso nas obras literárias e nos sentimentos e movimentos populares. Os textos que a tomam como objeto - pretendendo teorizá-la - são eles mesmos muito disparatados no que se refere aos tipos de provas a que aludem: Hyppolite Taine, que se quer positivo, não é tão metafísico quanto Fichte? E a história de Treitschke não é tão romântica quanto a de Michelet?

As concepções aqui evocadas visam a mostrar a diversidade e a importância do tema do nacionalismo, que alimenta tanto os partidários quanto os detratores da Revolução, tanto os arautos da liberdade quanto os nostálgicos da autoridade, tanto os contestários quanto os conformistas. INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

Edmund DURKE (1729-1797), Réjlexions sur Ia Rél'olution en France (1790), Nou\"elle Librairie nationale. 1912 [ed. brasileira: Reflexões sobre a Revolução em França, Editora Universidade de Brasília. Brasília, 1982].

Johann Gottlieb FICHTE (1762-1814), Contribuição à retijicação dos juizos do pÚblico sobre a Revolução francesa (1793).

1o:.cph de l-L\ISTRE (1753-1821), Considérations sur Ia France (1796), Vrin, 1936. François de CHATEAUBRIA:-iD (1768-1848), Essai sur les révolutions... (1797).

Textos escolhidos. in G. Dupuis, 1. Georgel, J. Moreau, Poli tique de Chall!aubriand, A. Colin, col. "U", 1966. .

F. Baldcnstergcr, Le lIIouvement des idées dans I'émigration française (1789-1815). i'Ion-Nourrit, 1924, 2 \"ols.

A. Philonenko, Théorie et Praxis dans Ia pensée morale et politique de. Kant et do! Fie/oc, Vrin. 1968.

O ESTADO-NAÇÃO - 97 A. Uma metafísica da nação; Johann Gottlieb Fichte

Discípulo de Kant em seus primeiros anos de magistério em Iena, Fichte permaneceu sempre um ardoroso defensor da Revolução Francesa, embora'- num momento subseqüente - abandonasse os ideais filantrópicos que a animavam. Ele chega mesmo a ver nos eventos de 1789 a experiência que lhe permitiu compreender o lugar decisivo que o eu livre ocupa na investigação filosófica. Seu projeto consiste em levar ao mais alto grau de desenvolvimento. a filosofia transcendental de Kant. Todavia, essa própria exigência o leva a romper com seu mestre' em dois pontos importantes, no domínio ético e político.

Desde as Contribuições destinadas a retificar o julgamento do público sobre a Revolução Francesa (1793), mas sobretudo nos Fundamentos do direito natural (1796), recusa Kant em dois pontos: por um lado, recusa a separação operada por Kant entre teoria e prática, entre a intenção moral liberada de qualquer contaminação empírica e a ação na qual ela se empenha; por outro lado, considera que o direito é de natureza diversa da moral e que exige um desenvolvimento autônomo. Fichte, com efeito, é sensível ao fato de que a decisão moral pressupõe não somente uma relação intersubjetiva com outras consciências (que não são mais concebidas como puros sujeitos abstratos), mas também que a ação só tem sentido quando situada em um mundo que lhe resiste e que deve ser organizado segundo regras específicas referentes às necessidades corporais (o direito). Portanto, ele investiga inicialmente as condições em que se pode conceber 'uma unidade intersubjetiva suficientemente ampla para que se constitua um povo; e ele reencontra a perspectiva aberta por J. J. Rousseau com a noção de "vontade geral", no seio da qual cada sujeito em ato é um sujeito para todos os outros. A solução que dá a essa questão pertence ao domínio de' um pensamento especulativo e apresenta uma grande complexidade. A orientação referente ao problema colocado pelo saber jurídico é mais acessível: a relação intersubjetiva se caracteriza, nesse domínio, como relação entre vontades livres; ela só subsiste na medida em que cada uma delas permanece limitada a si mesma. Somente a potência do Estado é capaz de obter essa limitação e de manter a unidade; e isso porque o Estado define a cidadania.

A partir desse momento, a ruptura com o espírito do século XVIII está consumada. A cidadania, destacada da idéia de propriedade, não

é mais considerada como uma decorrência do direito natural. E, cada vez com maior clareza, a referência à intersubjetividade substitui a noção de uma totalidade orgânica de onde emana um querer do qual o Estado é o executante pela noção da sociedade como conjunto de sujeitos autônomos que estabelecem relações racionais entre si. Um novo passo nessa direção é dado quando Fichte, desejoso de unificar seu país - fragmentado em múltiplos poderes - e de fazê-lo ingressar na modernidade, elabora sua teoria do Estado comercial fechado (1800), na qual atribui também a um Estado autoritário a função de organizar a economia, a fim de aumentar a força da Nação, de eliminar os conflitos entre indivíduos e de estimular a energia alemã. A etapa decisiva é franqueada nos Discursos à nação alemã (1807). A afirmação é brutal: a língua alemã - que é, por sua essência, filosófica e, portanto, capaz de absoluto –, o passado alemão - que viu nascer Lutero, ponto terminal do pensamento cristão –, a cultura alemã – a única que sabe pensar a vida em termos de razão – atestam que a Alemanha é a Nação por excelência, a Nação absoluta. Ela só foi rebaixada porque se esqueceu do seu Eu. A educação filosófica dar-lhe-á a energia para voltar a forjá-lo. Discurso circunstancial? A posteridade irá mostrar que na Alemanha - mas também em outros lugares - irão se repetir -circunstâncias semelhantes.

INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

Johann Gottlieb FICHTE, L'Elal cOllllllercial fermé (1800), LFDJ. 1940. Discursos à nação alt'lIIã (1807).

A/aclriavel el aI/Ires écri/L.. 1806-1807, apresentados por L. Ferry e A. Renaut, Payot. 1981. M. Boucher, Le sell/imelll nalional ell Al/emaglle. La Colombe, 1947..