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A história universal: o Estado racional

O PRINCÍPE-ESTADO 1 Do príncipe soberano

E. A história universal: o Estado racional

A obra de G. W . F. Hegel situa-se na linha direta do pensamento kantiano, com a diferença decisiva de que não recusa de nenhum modo a idéia do Saber Absoluto. Desde 1806, quando da publicação da Fenomenologia do espírito, Hegel se põe como objetivo garantir a passagem da filosofia à ciência filosófica; e essa é exposta como sistema acabado na Ciência da lógica, dez anos depois. Quanto ao problema político, o filósofo de Berlim reitera a perspectiva aristotélica, já que considera que o Saber sobre a política - exposto nos Princípios da filosofia do direito (1821) - é um momento do desenvolvimento do Saber filosófico. Assim, enquanto Kant transfere para as vontades livres a tarefa nunca terminada de atualizar o Absoluto, Hegel julga que "os tempos são propícios" à conclusão e à realização da ambição metafísica, contanto que se saiba reconhecer na realidade presente marcada pelas revoluções americana e francesa e pela constituição do modelo de Estado napoleônico - o começo do fim da história. Qualquer que seja nossa opinião sobre esse julgamento e sua validade, se analisamos Hegel nesse ponto - embora suas análises sejam posteriores à Revolução Francesa - é porque ele conclui, com uma apoteose, o movimento que, iniciado com Marsílio de Pádua e os legalistas, esforçou-se por pensar o Estado soberano como modo de organização ao mesmo tempo necessário e legítimo da existência social.

Política e filosofia

A compreensão da teoria do Estado exposta no texto de 1821 apressadamente qualificada de monarquista, de absolutista, até de rea-

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cionária, por numerosos comentadores que acreditam seguir as pegadas de Marx - supõe o conhecimento da técnica de exposição elaborada por Hegel, por um lado, e, por outro, a apreensão dos traços característicos da filosofia da história que ele elaborou precisamente como realização e superação do projeto metafísico.

· No que se refere à exposição, Hegel - a quem freqüentemente se atribui a invenção do pretenso método dialético - não deixa de repetir que não existe outro método além do "movimento da própria coisa";

- Essa se impõe, inicialmente, em sua imediaticidade, como realidade fenomênica independente, em si: assim, na Filosofia do direito, o Estado - objeto da pesquisa - apresenta-se ao cidadão "ingênuo", "apoIítico", em suas manifestações empíricas, como instituição judiciária que visa à eqüidade c. pune os delitos e os crimes.

- No segundo momento, a contingência dessa realidade, seu caráter puramente fenomênico, exige um retorno até o sujeito cognoscente, que forma uma representação ou um conceito que tem a função de inteligibilidade; ou seja, na Filosofia do direito, o retorno do cidadão à sua própria subjetividade, o qual se interroga sobre o fundamento do exercício do direito abstrato e descobre que ele é a origem do mesmo.

- No terceiro momento, o conceito - reconhecendo sua abstração - exterioriza-se num ato que constitui o real, que o realiza; na Filosofia, por exemplo, o sujeito moral - experimentando sua fragilidade - se re-encontra, na mediação de sua participação na família, da atividade profissional e das exigências políticas que essas implicam, como cidadão, reconhecendo-se doravante como ser cuja existência se efetiva no e pelo Estado.

. Todavia, esse estatuto da cidadania e do Estado é o da época contemporânea. Ora, essa não nasceu do nada: é um resultado, é o produto de um passado que a fez ser o que é. A novidade profunda do hegelianismo é substituir o Ser - substância imutável - dos metafísicos clássicos pelo Devir do qual a humanidade é o sujeito. Ora, esse devir - na ótica hegeliana - é especificado: sua filosofia da história, alimentada por uma informação considerável, examina a sucessão dos Povos que encarnaram, em sua época, com os meios que lhes eram dados e com suas invenções singulares, a vontade de liberdade e de racional idade do homem. Cada um deles - asiáticos, egípcios,

gregos, romanos, hebreus, cristãos primitivos, muçulmanos, europeus - elaborou, ao mesmo tempo que costumes, universos religiosos, obras de arte, também formas políticas: o despotismo oriental, a Cidade, o Império, o Santo-Império, o Estado moderno (da Reforma à Revolução . Francesa e ao centralismo napoleônico). Cada um, tendo superado o precedente ao descobrir suas insuficiências e ao integrar às invenções dele as suas próprias invenções, marca uma etapa no advento da humanidade livre e racional. O momento presente, segundo Hegel - que é precisamente o da formação do Estado que toma como princípio de sua organização a Razão e a Liberdade -, permite finalmente conhecer esse Devir e, portanto, perceber seu acabamento. Esse é o "enigma resolvido" do Saber Absoluto: a existência do Estado como Razão em ato.

Mas existência não é realidade: os manufatureiros ingleses, os patriotas franceses, os atuais governantes da Prússia não sabem o que jazem. O objetivo da Filosofia elo direito não é certamente dizer como deve ser o Estado: a pretensão dos filósofos de propor modelos é, nessa matéria histórica, ridícula. O que o Saber filosófico pode fazer é mostrar como o Estado deve ser conhecido, a fim de facilitar a assimilação do novo e poupar assim aos homens, tanto quanto possível, as extremas violências. Como se vê, o pensamento político de Hegel é realista: quando Platão constrói a Cidade ideal não faz mais do que confessar a incapacidade em que se encontra a Cidade real para superar suas contradições, a não ser no plano ideal; quanto aos diversos teóricos do direito natural, eles testemunham, cada um em seu tempo, a inadequação dos direitos positivos em uso e a vontade histórica ainda pouco enraizada de substituí-los por novos direitos...

Sociedade civil e Estado

Como o Estado moderno deve ser conhecido? A maneira "imediata" de ser da existência coletiva é a família. Essa se manifesta como fato "biológico" - o laço de sangue - e como relações afetivas. Todavia, sua realidade está no patrimônio, quer se trate da propriedade, no sentido estrito, ou. simplesmente para os pobres, da posse dos filhos. Propriedade que assegura a subsistência e a progenitura constituem o substrato da existência social, o que assegura a sobrevivência natural. Essa: imediaticidade é abolida e ultrapassada no trabalho social. Leitor de John Locke e dos chamados economistas clássicos, Hegel ana-

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lisa as atividades profissionais ligadas à divisão do trabalho como elementos constituintes de um domínio próprio, que ele designa com a expressão Sociedade Civil - que, é preciso notar, significa também, em alemão - "sociedade burguesa".

. A sociedade civil em seu tríplice aspecto - de produção, distribuição, consumo - forma, para uma coletividade territorial dada, um sistema, no sentido de que cada um dos seus elementos remete a todos os outros. A dinâmica dessa totalidade - sua força de progresso qualitativo e quantitativo - é assegurada pelo princípio que a governa: a busca do lucro máximo e a concorrência, que engendra uma vontade constante de melhoria, beneficiando a "civilização material" da coletividade e estimulando sua energia. Todavia, Hegel não pensa que a auto-regulação do mercado (com a qual contava Adam Smith) desempenhe um papel. A manutenção das contradições é inelutável: rivalidades entre indivíduos no interior de uma mesma profissão, oposições entre as diversas profissões, antagonismos entre os ricos e os pobres. Esses antagonismos podem atingir um tal grau que ponham em perigo a unidade da coletividade. As soluções que a sociedade civil -realiza graças a seu próprio movimento - a conquista de mercados estrangeiros e a colonização - não parecem ser suficientes.

. Desse modo, deve-se reconhecer a significação e o alcance da soberania do Estado. Esse é o princípio necessário que garante a unidade da coletividade: a potência plena que emana de suas decisões e a sacralidade (laica) das leis que ele edita transformam-no no árbitro dos conflitos da Sociedade Civil e no senhor das operações diante das ameaças que provêm do exterior. Essa soberania é, por definição, depositária do interesse universal do todo social. Todavia, para que ela atue em função do que é, torna-se necessário que seja conhecida (e "praticada") em função de sua essência. Ora, não é o que ocorre, segundo Hegel. Embora a necessidade da história tenha produzido o Estado como princípio de unidade, governantes e governados não sabem o que ele é. Compreendem-no como urna força coercitiva que resulta ou da Providência Divina, ou do direito senhorial de conquista e de uma relação de tipo protetor/protegido, ou da vontade popular que designa seu representante. Desconhecem que a capacidade de arbitragem só pode pertencer à Razão em ato. Para que o Estado seja tal, é preciso que ele seja efetivamente encarnado por governos que dispõem da força da Razão.

Ao direito divino, ao absolutismo real (que reinava na Prússia) à democracia representativa e às combinações entre essas formas, Hege

opõe o Estado onde o poder executivo, onde a autoridade administrativa e legislativa são exercidas por funcionários recrutados em função apenas de sua competência, que se delineia sobre o pano de fundo do saber racional: Pouco importa que o monarca, depositário empírico da soberania, seja designado por via hereditária, já que a realidade do poder pertence ao corpo de funcionários. Esses têm como missão impor um programa de interesse universal racionalmente calculado, o qual, de resto, será por eles discutido com os representantes dos 'interesses profissionais nas câmaras consultivas a fim de fazer com que universalidade e particularidade convirjam tanto quanto possível.

Para reduzir as coisas às suas dimensões empíricas, o Estado hegeliano é uma monarquia onde o monarca está submetido às mesmas leis que todos os outros cidadãos e onde o governo de fato pertence a uma administração racional e técnica que se supõe ser competente e devotada à coletividade. A implantação de um regime, que existe apenas como projeto, deveria permitir a cada um realizar-se como cidadão livre.' Entretanto, subsiste um obstáculo importante à essa plena realização que reconciliaria, como o queria Kant, Razão e Liberdade: a particularidade em que os Estados ainda se encontram imersos. Hegel prevê uma seqüência de conflitos internacionais de extrema violência, da qual deve surgir o Estado mundial, que é o fim da História, ou seja, a superação de todas as contradições e o reino da transparência.

Hegel descreveu em sua essência o Estado moderno até nossos dias, como o supunham Alexandre Kojeve e Eric Weil? Não será, antes, o teórico genial que tentou mascarar as contradições da sociedade burguesa, como o julgava Marx? O que é certo é que ele é o pensador mais rigoroso e mais profundo dessa forma histórica que é o Estado-Nação

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CAPÍTULO III