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CAPÍTULO III O Estado-Nação

A. Benjamin Constant:

o liberalismo contra a democracia

É impossível afirmar de modo mais preciso que o indivíduo é" o princípio primeiro e que é preciso defendê-lo duplamente:

"Defendi durante quarenta anos o mesmo princípio: liberdade em tudo, na religião, na literatura, na filosofia, na indústria, na política; e, por liberdade entendo o triunfo da individualidade, tanto sobre a autoridade que pretendesse governar pelo despotismo quanto sobre as massas, que reclamam o "direito de subjugara minoria" (Mélanzes. 1829).. "

· A sociedade política não tem como fim a igualdade; essa se combina com uma concepção arcaica da liberdade, legítima para os antigos, mas inútil e perigosa para os modernos, iludidos pela "eterna metafísica do Contrato social”.

· Pois a liberdade, para um antigo, consistia em

"exercer coletivamente, mas de modo direto, várias partes da soberania inteira; em deliberar na praça pública sobre a guerra e a paz; em firmar tratados de aliança com os estrangeiros, em votar leis, em pronunciar sentenças, em examinar as contas, os atos, a gestão dos magistrados [...]. Mas, ao mesmo tempo em que era isso que os antigos chamavam de liberdade, admitiam como compatível com essa liberdade coletiva a completa sujeição do indivíduo à autoridade do conjunto, [de modo que], entre os antigos, o indivíduo - quase sempre soberano nas questões públicas - é escravo em todas as suas relações privadas [...]" (Sobre a liberdade dos antigos em comparação com a dos modernos, 1819).

· Os modernos só podem sentir aversão por essa concepção, já que para um moderno - ser livre "é, para cada um, o direito de ser submetido apenas às leis, de não poder ser nem preso, nem morto, nem maltratado de nenhum modo em decorrência da vontade arbitrária. de um ou. mais indivíduos. É o direito que tem cada um de emitir sua opinião, de escolher sua Indústria e de exercê-la; de dispor da propriedade, inclusive de abusar da mesma; de ir e vir sem para isso obter permissão e sem prestar contas de seus motivos ou movimentos. É o direito que tem cada um de se reunir a outros indivíduos, seja para discutir seus interesses, seja para professorar o culto que ele e seus associados preferirem, seja simplesmente para passar seus dias e horas do modo mais conforme a suas inclinações e fantasias. Finalmente, é o direito que cada um tem de influir na administração do governo, seja pela nomeação de todos ou de alguns funcionários, seja mediante representações, demandas, que a autoridade é mais ou menos obrigada a levar em consideração" (ibid.).

Benjamin Constant insiste nessa oposição decisiva:

· O objetivo dos antigos era a partilha do poder social entre todos os cidadãos de uma mesma pátria. Era isso que eles chamavam de liberdade.

. O objetivo dos modernos é a segurança nas fruições privadas; e eles chamam de liberdade as garantias concedidas pelas instituições a essas fruições.

Desse modo, a questão política moderna é colocada menos em termos de legitimidade do que em termos de exercício da autoridade.

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o povo é soberano? Sim, se se quer, concorda Constant, como uma cláusula de estilo. Pouco importa ao indivíduo que se afirme que a soberania é popular, monárquica ou de outro tipo. De fato, "entre os modernos, o indivíduo independente em sua vida privada, mesmo nos Estados mais livres, só é soberano aparentemente. E essa aparência lhe basta, desde que a autoridade do Estado seja limitada. Popular ou não, a única soberania legítima é uma soberania limitada: pois "nenhuma autoridade sobre a terra é ilimitada"; pois "os cidadãos possuem direitos individuais independentes de qualquer autoridade social ou política, e toda autoridade que viola esses direitos torna-se ilegítima". É Locke contra Rousseau, cujo Contrato social é o mais terrível "auxiliar de todos os gêneros de despotismo"; ele ignora que; "no ponto onde começam a independência e a existência individual, pára a jurisdição da soberania", e que "o assentimento da maioria não basta absolutamente em todos os casos para legitimar os seus atos".

O triunfo da individualidade marcha paralelamente ao enfraquecimento da autoridade estatal, exercida em todos os domínios com reserva: "Os progressos da civilização, as mudanças operadas pelos séculos, impõem à autoridade um respeito cada vez maior pelos hábitos, pelas afeições, pela independência dos indivíduos... Ela deve pôr sobre todos esses objetos uma mão mais prudente e mais leve". No domínio econômico e social, assim como nos demais, Benjamin Constant se bate pela liberdade de imprensa com ardor ("os censores estão para o pensamento como os espiões para a inocência"), e reclama a tolerância em matéria de religião ("a religião é como os grandes caminhos: gostaria que o Estado os mantivesse, contanto que deixasse a cada um o direito de preferir os atalhos").

Será preciso encontrar ainda um sistema que permita combinar essas características da liberdade com as da soberania popular? O melhor sistema, aquele em que repousa a confiança de Constant, é o sistema representativo:

"O sistema representativo não é mais do que uma organização com cuja ajuda uma nação encarrega alguns indivíduos de fazer o que ela mesma não quer fazer. Os indivíduos pobres cuidam eles próprios de seus problemas; os ricos contratam intendentes. Temos aqui a história das nações antigas e das nações modernas."

Sistema que, evidentemente, não implica nenhum mandato imperativo, mas que repousa numa procuração dada "em branco" a um certo número de homens "pela massa do povo", que deseja que seus

interesses sejam defendidos, mas que não tem o tempo de defendê-los diretamente, já que suas fruições privadas têm mais valor para ela.

Um tal sistema implica logicamente, aos olhos de Benjamin Constant, a condenação de qualquer forma de sufrágio universal: o sufrágio deve ser restrito. Prolongando as considerações de Sieyès, Benjamin Constant desenvolve uma ingênua astúcia: a condição necessária para o exercício político é o fazer, pois esse lazer é indispensável para a aquisição das luzes. Ora, é evidente que só a propriedade assegura esse lazer: "somente a propriedade torna os homens capazes do exercício dos direitos políticos". O fato de que Saber e Poder se dêem as mãos leva a que a questão política, por si mesma, apague a questão social:

"Não quero cometer nenhuma injustiça contra a classe laboriosa [...]. Mas as pessoas que a indigência conserva numa eterna dependência e que condena a trabalhos diários não são nem mais esclarecidas do que as crianças, nem mais interessadas do que os estrangeiros numa prosperidade nacional da qual eles não conhecem os elementos e da qual só indiretamente partilham as vantagens [...]". Portanto, seria absurdo conferir-lhes direitos políticos que "servirá? infalivelmente para invadir a propriedade. Elas marcharão por esse caminho irregular, em vez de seguirem a rota natural, o trabalho: seria para elas uma espécie de corrupção; e,' para o Estado, uma desordem [...]".

Resta assegurar a distribuição de poderes no vértice. Benjamin Constant segue Montesquieu, mas acrescenta uma contribuição original: o poder do rei não tem por que governar; os ministros, poder ativo, encarregam-se disso. O monarca constitucional é um "poder neutro", garantia dos limites da soberania. Com efeito, o príncipe é

"um ser à parte. superior às diversidades de opinião. que só tem como interesse a manutenção da ordem e a manutenção da liberdade, e que não pode jamais entrar ..na condição comum, inacessível. por conseguinte, a todas a paixões que essa condição faz nascer e a todas aquelas que a perspectiva de nela se encontrar alimenta incessantemente no caso dós agentes investidos de um poder momentâneo".

INDICAÇõES BIBLIOGRAFICAS

Benjamin CONsrANT (1767-1830), De l'esprít de conquête et d'usurpalíon (1814);

Príncipes de polilique (1815); Réflexions sur les constitulions el les garan/ies (J 814-1818)'; De Ia responsabilíté des ministres (1814-1818); De Ia liberté des anciens comparée à cel/e des modernes (1815).

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De la liberté chez les modernes, textos escolhidos e apresentados por Marcel Gauchet, PIuriel, Poche, 1980.