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Rousseau: soberania e vontade geral o povo

O PRINCÍPE-ESTADO 1 Do príncipe soberano

C. Rousseau: soberania e vontade geral o povo

A obra de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) deu lugar a uma multiplicidade de interpretações ainda hoje das mais contraditórias: Filósofo das Luzes, cujos princípios combate; teórico dos direitos naturais, que não poupa sarcasmos à Escola do Direito Natural; promotor de uma revolução liberal, 'cujas taras descreve antecipadamente; individualista empenhado em construir os fundamentos do coletivismo totalitário: uma certa tradição universitária não terá terminado

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por apagar as ambigüidades, as contradições, os sofismas de Rousseau'! E uma certa tradição política não terá passado de uma rejeição horrorizada à tentativa de recuperação mais incoerente? Uma tradição institucional, finalmente, não o terá incorporado à República burguesa, mas ao preço de algumas censuras?

Da desigualdade

Desde 1754, refletindo sobre as fontes da desigualdade entre os homens e polemizando assim sobre a natureza humana, Rousseau advertiu seus contemporâneos para a grande heterogeneidade das teses que precederam a sua; e tentou denunciar esse "erro comum" aos teóricos do direito natural, que "transportaram para o estado de natureza idéias que haviam tomado da sociedade"; que falavam do homem selvagem enquanto retratavam o homem civilizado. Ele tenta assim adverti-l os para sua aversão a todo primitivismo naturalista: "É preciso destruir as sociedades, esmagar o teu e o meu e voltar a viver nas florestas com os ursos? Uma conseqüência à maneira de meus adversários, para a qual tanto gostaria de chamar a atenção como de deixar para eles a vergonha de tirá-la". Em vão e durante séculos, pois esse mito do bom selvagem resta' misteriosamente preso às premissas de seu pensamento político.

Rousseau percebe originariamente duas espécies de desigualdade:

* a primeira, natural ou física, devida à diferença de idade, de saúde, da força corporal ou das qualidades do espírito, em nada lhe interessa, já que não poderia fundar nenhuma organização social;

* A segunda, moral ou política, parece estabelecida com o consentimento dos homens, após uma espécie de convenção, e é a única que merece ter sua origem e seu processo descritos.

Já que ela não é "natural", seu segredo pode residir nessa defasagem entre o estado de natureza e a civilização. Mas o estado de natureza não é mais do que uma hipótese teórica, uma operação do espírito, um postulado da razão. "Comecemos por afastar todos os fatos", proclama Rousseau contra Grócio e contra todos os que, pretendendo sempre estabelecer o direito pelo faro, não poderiam empregar um método que fosse "mais favorável aos tiranos", já que ele leva apenas a eternizar o que é, e, por conseguinte, à desigualdade. A natureza humana, a que interessa a Rousseau, exclui inclusive o ins-

tinto de sociabilidade: "Tudo parece afastar o homem selvagem da tentação de deixar de sê-lo". A sociedade civil ou política também nada deverá à Necessidade: da nasce de uma seqüência de acidentes. Entre esses, o agrupamento das famílias, que se expande na idade de ouro das comunidades patriarcais; mas também o aparecimento da divisão do trabalho e desta propriedade que nada deve à natureza:

"O primeiro que, tendo cercado um terreno, cuidou de dizer 'isto é meu' e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditar nele foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassinatos, misérias c horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: 'Defendam-se deste impostor; vocês estarão perdidos se esquecerem que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém'."

Se se pode falar de História, ela é bem pouco linear, mistura progresso e decadência, já que "foram o ferro e o trigo que civilizaram os homens e perderam o gênero humano", De acidente em acidente, a sociedade muda de natureza:

"Desde o instante em que um homem sentiu necessidade do socorro de outro, desde que se percebeu ser útil a um só' contar com provisões para dois, desapareceu a igualdade, introduziu-se a propriedade, o trabalho tornou-se necessário e as vastas florestas transformaram-se em campos aprazíveis que se impôs regar com o suor dos homens e nos quais Jogo se viu a escravidão e a miséria germinarem e crescerem com as colheitas." O pacto iníquo

Ameaçados em sua segurança, os homens são levados a consentir numa certa "organização" política, a firmarem um certo "contrato social": "Unamo-nos para defender os fracos da opressão, conter os ambiciosos e assegurar a cada um a posse do que lhe pertence [,..], Em vez de voltar nossas forças contra nós mesmos, reunamo-nos num poder supremo que nos governe segundo sábias leis, que protejam e defendam todos os membros da associação, expulsem os inimigos comuns c nos mantenham em concórdia eterna." Assim, é fundada a sociedade política, com base num contrato tão sábio e refletido quanto iníquo, porque deu "novos entraves ao fraco e novas forças aos ricos",

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porque fixou para sempre - para garanti-la - a desigualdade entre os homens. Portanto, é inútil polemizar sobre a lei do mais forte ou sobre a autoridade paterna; é errar de argumento e, portanto, de adversário. A luta contra o despotismo exige, preliminarmente, essa compreensão do político; e, se é difícil convencer os homens a se revoltar, isso se dá porque, na origem, eles não se lançaram na escravidão por capricho; porque "todos correram para seus grilhões, acreditando assegurar sua liberdade"; porque não viram que as vantagens relativas e provisórias da segurança que esse contrato lhes proporcionava os levavam irremediavelmente à alienação de sua liberdade.

O homem pode denunciar esse pacto iníquo? Sim, certamente, porque ele provou, pelo menos, que a origem do poder é humana, convencional, artificial; e o que o homem fez, pode desfazer; nenhuma necessidade exterior e transcendente impõe ao homem uma ordem imutável. A principal obra de Rousseau, o Contrato Social, propõe aos homens firmarem finalmente um pacto legítimo que lhes permita reconquistar a liberdade, "encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual ,cada um, unindo-se a todos, só obedeça contudo a si mesmo". Rousseau não diz de modo algum que é preciso reencontrar uma natureza perdida; não propõe nenhuma "fuga para trás" e não cede a nenhuma nostalgia de paraísos perdidos: já que "a natureza não retroage", é preciso encontrar os princípios de direito político de uma comunidade verdadeira, na qual a tensão entre o individual e o coletivo resolva-se na equação entre o poder e a liberdade.

O contrato social

O problema é insolúvel? Podemos conceder a Rousseau o mérito de colocá-la sem tergiversações. Esse contrato social legítimo nada tem de um contrato de governo, já que, "antes de examinar o ato pelo qual um povo elege um rei, seria bom examinar o ato pelo qual um povo é um povo". Não Se trata de um contrato estabelecido entre indivíduos, mas do contrato de cada um consigo mesmo e que transforma cada indivíduo num "cidadão", As cláusulas desse contrato reduzem-se todas a uma só: "a saber, a alienação total de cada associado, com todos os seus direitos, à comunidade", Desse modo, o objeto do contrato se realiza:. "Imediatamente, esse ato de associa-

ção produz, em lugar da pessoa particular de cada contratante, um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quantos são os votos da assembléia, e que, por esse mesmo ato, ganha sua unidade, seu .eu comum, sua vida e sua vontade." Rousseau não estará incorrendo aqui em flagrante delito de "sofisma"? Não confundirá superstição e liberdade para se devotar às superstições majoritárias? Quanto ao primeiro ponto, pode-se objetar que a alienação total permite a liberdade total, na medida em que ela evita transpor para a sociedade política nova os estigmas da desigualdade preexistente. Assim, "cada um, dando-se a todos, não se dá a ninguém; e, não existindo um associado sobre o qual não se adquire o mesmo direito que se lhe cede sobre si mesmo, ganha-se o equivalente de tudo que se perde, e maior força para conservar o que se tem". A liberdade só é submissão porque a submissão é voluntária e igual para todos .e porque torna a liberdade moral,' liberdade moral que "é a única a tornar o homem verdadeiramente senhor de si; pois o impulso apenas do apetite é escravidão, enquanto a obediência à lei que se prescreveu para si mesmo é liberdade". A primeira questão, portanto, resolve a segunda: a igualdade supõe a unanimidade, a primeira convenção (aquela que faz de. um povo um povo) exclui qualquer princípio majoritário: "Onde estaria, a não ser que a eleição fosse unânime, a obrigação do menor número de se submeter à escolha do maior? E por que cem que desejam um senhor têm o direito de votar por dez que não o desejam? A lei da pluralidade dos sufrágios é em si mesma um estabelecimento convencional e supõe, pelo menos uma vez, a unanimidade". Desse modo, o Corpo Político - objeto do contrato social - não resulta da adição das vontades particulares: ele se confunde com a vontade geral tal como essa resulta da alienação total de cada indivíduo e, portanto, de sua liberdade, que não é mais do que a capacidade que ela possui de fazer com que sua vontade geral domine sobre sua vontade particular.

A vontade geral dá "a existência e a vida do corpo político: a soberania é seu exercício e a legislação, seu movimento"

As características da soberania

É a vontade geral que indica as características gerais da soberania: ela é inalienável, indivisível, infalível, absoluta.

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A primeira característica é fundamental e leva Rousseau a afastar o regime representativo: os Constituintes revolucionários que assimilaram a teoria rousseauniana da lei, esqueceram (?) que essa só tem sentido em relação com essa condenação prévia, enunciada em termos pouco equívocos:

"Afirmo, pois, que a soberania, não sendo senão o exercício da vontade geral, jamais pode alienar-se; e que o soberano, que é apenas um ser coletivo, só pode ser representado por si mesmo. O poder pode ser transmitido; não, porém, a vontade".

E Rousseau insiste nas conseqüências de uma tal proposição:

"Os deputados do povo, portanto, não são nem podem ser seus representantes: são apenas seus comissários; não podem resolver nada definitivamente. Toda lei que o povo não ratificou pessoalmente é nula; não é absolutamente uma lei. O povo inglês pensa ser livre mas engana-se fortemente; só o é durante a eleição dos membros do parlamento; tão logo esses são eleitos, ele é escravo. não é nada."

Quanto à segunda característica que Rousseau atribui à soberania, ela irá desencadear inúmeras controvérsias constitucionais: a soberania é indivisível porque "a vontade ou é geral ou não é; ou é a vontade do corpo do povo ou é somente a de uma parte. No primeiro caso, essa vontade declarada é um ato de soberania e faz lei; no segundo, não passa de uma vontade particular ou de um ato de magistratura; é, no máximo, um decreto". E Rousseau ironiza os partidários de uma divisão dos poderes, comparando-os a. esses "charlatães do Japão", que fingem esquartejar uma criança, jogando para o alto os seus membros para depois fazê-la cair viva e unida diante dos espectadores. A soberania é ainda infalível e absoluta; infalível, porque a "vontade geral é sempre justa e tende sempre à utilidade pública"; absoluta, porque, "assim como a natureza dá a todo homem um poder absoluto sobre todos os seus membros, o pacto social dá ao corpo político um poder absoluto sobre todos os seus". No que se refere a essas duas características, surgem novamente inúmeros contra- sensos, a partir do momento em que se confunde vontade geral com vontade majoritária; mas o próprio Rousseau tem a preocupação de precisar que as "deliberações do povo" nem sempre têm a retidão da vontade geral, que "a generalização da vontade resulta menos do número de votos do que do interesse comum que os une"; e, sobretudo, que o absolu-

tismo do poder soberano tem... limites, os mesmos que o tornam absoluto por meio do contrato social e que dizem respeito à igualdade dos indivíduos: se o poder soberano tentar romper essa igualdade, se ele der mais encargos a um súdito do que a outro, a questão se torna particular; não mais estaremos diante do exercício de uma vontade geral; tal poder, portanto, não é mais nem soberano nem absoluto. . .

A lei

O mesmo ocorre com essa "expressão da vontade geral", a lei, que dá ao corpo político o próprio movimento que o conserva. A lei, que define" a generalidade de seu objeto, é certamente obra do Povo. Mas como? - ousa insistir Rousseau, a quem sempre se criticou este ceticismo: "Como é possível que uma multidão cega, que freqüentemente não sabe o que quer, pois raramente sabe o que é bom para ela, executaria por si mesma um empreendimento tão gigantesco, tão difícil como é um sistema de legislação? (...). A vontade geral é sempre justa, mas o julgamento que a guia nem sempre é esclarecido (. . .). Os particulares vêem o bem que recusam; o público quer o bem que não vê. Todos precisam igualmente de guias". Rousseau, que funda toda soberania na Razão, sabe que o homem é capaz de irrazão: donde a necessidade de um legislador, nem soberano nem governante, simples conselheiro em matéria de razão, remédio para a ausência de deuses, pois "seriam necessários deuses para dar leis aos homens (...); mas nem todo homem é capaz de fazer com que os deuses falem, nem são acreditados quando anunciam ser seus intérpretes" .

O ceticismo de Rousseau é ainda maior quando trata do povo e de seu governo. Assim, ele multiplica os conselhos de "conveniência", pregando, por exemplo, uma boa proporção entre a extensão do território e o número da população, a fim de tornar o povo apto para a legislação. Quanto ao governo, "erradamente confundido com o soberano" (já que ele é apenas o comissário, o ministro, o funcionário desse último) pode ser democrático, aristocrático ou monárquico; mas essas denominações referem-se apenas à forma do poder executivo e jamais à fonte da soberania. As três formas de governo apresentam vantagens e inconvenientes, mas - qualquer que seja a forma adotada - é preciso ter em mente que a inclinação natural de

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todo governo é tornar-se independente do soberano: "Assim como a vontade particular age incessantemente contra a vontade geral, do mesmo modo o governo faz um contínuo esforço contra a soberania [... ]".

O Contrato Social deixa algum modelo positivo para o uso de constituintes empenhados em estabelecer uma legislação política? A lição de Rousseau é mais sutilmente irônica: quem, ensinando o direito, fala melhor sobre o fato, mas revela as razões de se revoltar, legitima apenas as revoltas da Razão.

INDICAÇÕES BIBLIOGRAFICAS

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Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens e Do contrato social. in "Os Pensadores", Abril Cultural, São Paulo, 1973, respectivamente pp. 207-326 e 7-151]. .

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Guy Lardrcau. Le singe "'or, Mcn.:ure de Françe, 1973. D. O sujeito moral: história e liberdade

Tal como Descartes, Emmanuel Kant - fundador, em final do século XVIII, do criticismo filosófico - não escreveu um Tratado de política. Todavia, sua obra interessa à reflexão sobre o Estado e sua organização de uma dupla maneira: diretamente, por um lado, na medida em que suas análises que incidem sobre a moral, os costumes, o direito e a história definem conceitos que têm implicação política; indireta c talvez mais profundamente, por outro lado, na medida em que sua concepção filosófica do conhecimento e do saber, da prática - termo que significa, para ele, a ação que institui a ordem da moralidade - e dos fins últimos do homem influir duradouramente no pensamento político moderno, tanto pelas perspectivas metodológicas que abriu como pelos resultados que permitiu adquirir.

A importância desse segundo aspecto - que pode ser visto, entre outros exemplos, na influência de Kant em trabalhos tão diversos como os de Léon Bourgeois e Max Weber - decorre do fato de que ele soube levar em conta, ao mesmo tempo, o progresso das ciências na era clássica e os efeitos culturais e morais da transformação das sociedades. Na Crítica da Razão Pura (1781), Kant desenvolve uma teoria do conhecimento que estabelece a objetividade (ou seja, a universalidade e a necessidade) das fórmulas do matemático e dos enunciados do físico; mas essa só pode ser estabelecida por meio da experimentação; desse modo, ele funda o estatuto das ciências modernas. Mas nega a essas últimas o direito de se constituírem em saber capaz de enunciar as propriedades do Ser-em-si, já que - por definição - elas são relativas à estrutura universal do Espírito humano. Na mesma ótica, Kant denuncia as pretensões da metafísica, que constrói discursos coerentes - e contraditórios entre si -, os quais, não podendo ser relacionados com a experiência possível, são inverificáveis rigorosamente.

Portanto, deve-se renunciar de uma vez por todas ao sonho do Saber absoluto. Mas isso implica admitir que o Absoluto é uma idéia vazia? Que não existe o incondicionado? Os Fundamentos da Metafísica dos Costumes (1785) e a Crítica da Razão Prática (1788) propõem uma resposta a essas questões, de rigor e originalidade surpreendentes. O Absoluto não é e não poderia ser algo dado: existe apenas pelo ato de uma vontade que o afirma e na medida em que o afirma. Ora, a única realidade que uma tal vontade pode pôr como incondicionada é o Sujeito moral. Se se quer compreender a existência humana e a irreprimível inclinação pelo Absoluto que é testemunhada pela persistência da ilusão metafísica e da vida moral cotidiana, é preciso postular que o homem é vontade livre, ao mesmo tempo em que pertence ao mundo natural e, como tal, é submetido ao determinismo mais estrito; vontade livre, ou seja, capaz de escapar da ordem natural e de se constituir' precisamente como Sujeito autônomo, como sujeito que dá leis a si mesmo 'que dependem apenas dele. Para escapar do determinismo, um tal sujeito tem de querer obedecer apenas a leis formais, leis que 'excluam qualquer referência a um conteúdo qualquer, quer se trate do prazer sensual, da utilidade social, do amor de Deus ou da consciência do "dever cumprido". A única consideração à qual um sujeito livre pode se submeter refere-se à instituição da comunidade dos sujeitos livres, constituindo uma espécie de sobre-

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natureza que afirma - no interior e acima da natureza submetida ao determinismo - a constante e preciosa exigência de liberdade.

"Atua sempre de tal modo que sejas o legislador e sujeito. num reino de fins tornado possível pela autonomia da vontade."

Esse imperativo categórico está no coração da reflexão kantiana sobre a "moral aplicada" sobre o direito e a história. Num texto que data de 1784, O que é a Ilustração?, Kant mostra como o imperativo prático impõe a cada um o dever de discutir publicamente sobre qual': quer obediência imposta pela ordem empírica do Estado, da Religião e da opinião pública, e de exigir a arbitragem da Razão. A Metafísica dos Costumes (1797) analisa as condições em que um contrato privado, que sujeita as partes contratantes a um compromisso empírico, pode corresponder à exigência moral: é preciso e basta que o compromisso seja tão exatamente recíproco e equilibrado que, de um lado e do outro, anule-se o elemento da sujeição. Nessa moralização e nessa racionalização da ordem empírica das sociedades, Kant vê o meio de introduzir a finalidade humana no tecido do determinismo.

A Idéia de uma história universal do ponto de vista cosmopolita ( 1784) concretiza essa perspectiva. Se é extremamente difícil a um indivíduo fazer triunfar a lei moral cá embaixo, o mesmo não sucede se se considera a espécie humana em seu devir. É no seio dessa história universal que Kant crê possível definir o alcance da teoria moral por ele elaborada: essa atua como uma Idéia, ou seja, como uma tarefa infinita, jamais inteiramente realizada, porém sempre existente e insistente. O que aparece é que, para além das diferenças de raças e de nações, dos conflitos naturais que opõem os grupos entre si, impõe-se progressivamente a necessidade racional de uma paz universal e oe uma sociedade de nações que permitam aos indivíduos "serem legisladores e sujeitos num reino de fins". Prosseguindo seu objetivo de construir uma "filosofia popular", Kant retoma aqui o projeto nascido no século XVIII de uma "sociedade dos espíritos", que agrupe as elites européias e se esforce por estendê-la - como "tarefa infinita" ao conjunto da humanidade.