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Capítulo 2. Inventando a religião: o catolicismo em Vígolo

2.2. Assistência de padres diocesanos

Contam nossas cronistas Matilde e Dorotéia, cujas informações foram ampliadas pela “escrevente” da biografia oficial de madre Paulina – sua biógrafa, irmã Célia B. Cadorin –, que colonos de Vígolo e de Nova Trento foram assistidos inicialmente pelo padre diocesano,

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As Escolas Americanas de confissão protestante marcaram presença e influenciaram os quadros do ensino paulista nas últimas décadas do século XIX: Escola Americana de São Paulo, criada pelos presbiterianos do norte estado-unidense, em 1870; Colégio Internacional de Campinas, também criado pelos presbiterianos, mas estado-unidenses do sul, em 1873; Colégio Piracicabano, criado pelos metodistas em 1881. A relevância desses três centros pode ser explicada pelas representações de modernidade da época: a presença de igrejas protestantes e escolas, enfim, da cultura protestante americana, se somaria com as vanguardas liberais e democráticas da província para realizar a modernidade almejada: capitalismo, baseado no trabalho livre, na cultura escrita, na liberdade religiosa etc. Nessa ótica, era preciso superar a tradição cultural portuguesa e o catolicismo ultramontano e romanizado. Cf. HILSDORF BARBANTI, Maria Lúcia Spedo. Escolas Americanas de confissão protestante na Província de São Paulo: um estudo de suas origens. Dissertação (Mestrado em Educação). São Paulo: Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 1977.

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Cf. BERTONHA, Os italianos, p.107.

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Para citar apenas um exemplo de outra região: as colônias de Alfredo Chaves (Espírito Santo) foram atendidas pelos padres escalabrinianos ao longo de dois quinquênios (1888-1893; 1903-1908). Graças à pressão popular das famílias católicas, lideradas pela leiga Maria Zanolo, iniciaram-se uma série de contatos entre o cônsul italiano Rizzo Rizzetto e os colonos em prol da vinda dos escalabrinianos àquela região. O cônsul verificou in loco a situação caótica dos italianos e, além de apoiar o pedido de padres escalabrinianos, articulou o financiamento de escolas e dispensários farmacêuticos que foram administrados por aqueles missionários. Cf. AZZI, A Igreja e os migrantes, p.102-106.

Alberto Gattone e depois pelo padre Arcangelo Ganarini, também diocesano. Talvez isso tenha acontecido a partir de meados do segundo semestre de 1876 quando os colonos já estavam estabelecidos nos lotes, isto é, com casa pronta, cultivo da terra em andamento etc. Quando eles chegaram à Colônia Brusque e alojaram-se nos barracões até a demarcação dos lotes, penetração nas matas e construção de sua casa, não há notícias de que algum padre estivesse por lá. É provável que o padre capelão da Colônia Brusque na época, Alberto Gattone, estivesse envolvido com missões em outros povoados, levando em consideração o grande número de fieis para atender – em 1876 havia 6646 católicos nesta colônia,14 distribuídos entre 28 linhas coloniais, sendo algumas de 40 a 50 quilômetros de extensão.15 Ademais, esses povoados ficavam distantes uns dos outros e em locais de difícil acesso; as estradas eram precárias, quando existiam; a locomoção era feita geralmente a cavalo ou, muitas vezes, a pé. Tudo isso certamente fazia com que o padre demorasse tanto para chegar até seus fieis, como para retornar à sua residência, que ficava nas proximidades da sede da colônia, em Brusque. Logo, provavelmente, Gattone não deu conta de atender os Visintainer e outras famílias durante o tempo de permanência no alojamento e de construção das casas.

Dizem também nossas cronistas e estudos de Piazza e Grosselli que os padres foram enviados por suas dioceses europeias para trabalhar com imigrantes, certamente seguindo a estratégia da Igreja já salientada acima. Primeiro Gattone e depois Ganarini, atenderam a toda a Colônia Brusque na função de capelães remunerados pela diretoria da colônia. A iniciativa da igreja europeia estava de comum acordo com o governo imperial, Pedro II, e com a Diocese do Rio de Janeiro, a qual regia canonicamente as igrejas e capelas localizadas na Província de Santa Catarina no período.16

O trabalho dos padres era basicamente administrar sacramentos, se bem que Ganarini excedeu a regra, conforme se verá. Batizavam, casavam e davam exéquias, mas a principal atividade era rezar missa e confessar. Isto porque a confissão e a missa eram atos de devoção

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Cf. PIAZZA, A colonização de Santa Catarina. Obra premiada pelo Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul no concurso regional de história. Florianópolis, 1982, p.134.

15 Cf. GROSSELLI, Renzo Maria. Vencer ou morrer: camponeses trentinos (vênetos e lombardos) nas florestas

brasileiras. Santa Catarina (1875-1900), v.1. Tradução de Ciro Mioranza e Solange Ugo Luques. Florianópolis: UFSC, 1987, p.334.

16 Em 1893, o papa Leão XIII criou a Diocese de Curitiba que abrangia o bispado do Paraná, desmembrado de

São Paulo, e o bispado de Santa Catarina, desmembrado do Rio de Janeiro. Em 1908, Pio X criou a Diocese de Florianópolis, com jurisdição sobre todo o território de Santa Catarina. Em 1927, Pio XI elevou-a a Arquidiocese e criou simultaneamente as dioceses de Joinville e Lages. Atualmente, a paróquia de Nova Trento pertence à Arquidiocese de Florianópolis. Cf. PIAZZA, Walter F. Igreja em Santa Catarina: notas para sua história. Edição do Governo do Estado de Santa Catarina. Florianópolis, 1977.

dos católicos desde o período medieval e os padres precisavam fazer a desobriga,17 ou seja: fazer com que os fieis cumprissem sua obrigação, pois os sacramentos eram obrigatórios e representavam o caminho para a salvação individual. Como a Colônia Brusque era muito grande, eles deram uma assistência esporádica aos imigrantes nos anos de 1876-1879, o que provavelmente contribuiu com a formação de uma liderança leiga para coordenar as atividades religiosas dos povoados.

Alberto Gattone era conhecido na Diocese italiana de Trento, pois fora mencionado pelo anuário eclesiástico de 1876, conforme detectou a biógrafa da madre Paulina. Na verdade, seus pais eram de Trento, mas emigraram para a Alemanha e lá tiveram Gattone. Portanto, suas raízes culturais são de uma família emigrante, algo comum no Norte da Itália. Enviado para o Brasil, dedicou-se inicialmente à assistência dos imigrantes alemães de Santa Catarina. Quando os Visintainer e outros imigrantes trentinos estabeleceram-se nos lotes, Gattone começou a visitá-los, especialmente aqueles que se fixaram ao longo da estrada entre Brusque e Nova Trento, lugar de melhor acesso. Mas rezou a primeira missa para todos os trentinos na linha colonial de Nova Aliança, pois lá havia uma casa construída para ser usada como escola e podia acomodar o povo (fica a 12 km de Nova Trento). Com o tempo, visitou Vígolo e outras linhas coloniais formadas ao redor de Nova Trento. Ele não falava o dialeto trentino, mas esforçou-se para aprendê-lo por ocasião do contato com os trentinos, contam nossas cronistas.

Já Arcangelo Ganarini era italiano, natural de Torcegno (Tirol), região de Trento. Portanto, era um padre tirolês e de família camponesa. Pertencente à Diocese de Trento, foi ordenado sacerdote em 1869 e enviado para a Colônia Brusque em 1877, conforme irmã Célia B. Cadorin pesquisou junto a Don Livio Dallabrida, da Cúria Arquiepiscopal de Trento e estudioso da história do povo trentino. A nosso ver, Ganarini seria um daqueles padres que Grosselli chama de intelectuais a serviço da classe camponesa, utilizando o sentido conceitual de Gramsci,18 diferindo dos padres oriundos da extração nobre da sociedade que ocupavam

17 As práticas de piedade pessoal e de penitência, confissão por excelência, somadas às devoções comunitárias,

missa por excelência, cujo comparecimento era obrigatório e fiscalizado pelos padres, caracterizou a participação dos católicos em geral na Igreja Católica, sobretudo a partir do Concílio de Trento (século XVI), no contexto de combate à Reforma Protestante que apresentava novas mediações para se chegar a Deus e conquistar a salvação. Cf. LEBRUN, François. As reformas: devoções comunitárias e piedade pessoal. In: ARIÈS, Philippe & DUBY, Georges (orgs.). História da vida privada: da Renascença ao Século das Luzes, v.3. Tradução de Hildegard Feist. 10ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p.71-111. No caso brasileiro, ver: HOORNAERT, A cristandade durante a primeira época colonial, p.296-312.

18 Em sentido amplo todos os homens e mulheres são considerados intelectuais orgânicos, pois podem fazer o

vínculo entre os setores econômico e político para uma determinada classe social. Dentro dessa perspectiva, há intelectuais que defendem as classes dominantes e há intelectuais que defendem os interesses dos trabalhadores e querem a transformação da sociedade isto é: querem mudar a história, as classes sociais e a distribuição do poder

altos graus da hierarquia da Igreja.19 É dentro dessa perspectiva que compreendemos a trajetória de Ganarini na Colônia Brusque. Além de colocar-se a serviço dos trentinos e do povo em geral, ele inseriu-se nas linhas indo morar com seu primo em Aliança, não muito longe de Vígolo, segundo nossa cronista Dorotéia. A escolha do local de residência deve-se a dois fatores. O primeiro é de ordem financeira e é salientado por Grosselli: Ganarini chegou à colônia dia 1º de abril de 1877 e desde essa data deveria receber uma verba da diretoria colonial para custear suas despesas. Mas, como a verba demorou em ser liberada, acabou resolvendo a questão por conta própria.

O segundo ponto a destacar no processo de instalação de Ganarini na Colônia Brusque é de ordem cultural, indicando o grau de comunicação e de vínculo entre ele e seu primo (quem cita esse primo é nossa cronista Dorotéia, mas ela não revela seu nome), o que remete a uma proposição de Bertonha, a de que o sistema emigratório dos italianos funcionava também segundo estratégias,20 baseadas, por exemplo, no relacionamento familiar, laços de amizade e de vizinhança de pessoas da mesma aldeia ou região que deviam se comunicar por meio de cartas e mensagens, comprovadas pelo pesquisador E. Franzina como fonte de informações entre os imigrantes. Essa dinâmica envolvia também os jesuítas, pois certamente circulavam informações entre eles e seus parentes, amigos e conhecidos. Se não fosse assim, como explicar a visita do padre Cybeo ao navio onde estavam os trentinos? Quem teria lhe falado ou escrito sobre a chegada deles?

na sociedade e nas instituições. Dentre esses intelectuais, há aqueles que passam doutrinas e teorias e formam opinião pública, tais como os padres. Em sentido restrito, há intelectuais que exercem a profissão de intelectual: cientistas, pesquisadores etc. Cf. GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p.3-23.

19 GROSSELLI, Vencer ou morrer, p.451. 20 BERTONHA, Os italianos, p.95.

Figura 5: Padre A. Ganarini (1844-1920)

(Fonte: M. DOROTÉIA, História da Congregação, v.1, p. 8)

Nesse contexto de relacionamento amistoso com os trentinos, os padres Gattone e Ganarini incentivaram as famílias a construir capelas próximas de suas residências a fim de assegurar visita mais frequente deles e celebração da missa, narram nossas cronistas. Para casar e batizar os colonos iam à paróquia de Brusque porque lá se encontravam os livros de registro de batismo e casamento, e a igreja era maior, explica melhor a biógrafa de Paulina.

Não durou muito tempo a presença de Gattone naquela região, pois em 1878 ele mudou-se para Niterói-RJ. Ganarini deu continuidade às atividades, investindo – sobretudo – nas visitas domiciliares, já que falava a mesma língua dos trentinos, mas passados alguns meses também foi embora. É provável que Ganarini tenha ficado na região de Brusque, pois seu nome está no Livro de Crismados nas colônias Itajahy e Príncipe Dom Pedro/Brusque de 1881, onde ele assinou na função de cura (vigário). Parece que Ganarini viveu sempre no Estado de Santa Catarina, falecendo em 1920 na cidade de Florianópolis.

Durante sua estadia nas terras catarinenses, ele se preocupou com os imigrantes trentinos espalhados pelas colônias, que não recebiam assistência de nenhum sacerdote. Mais do que isso, sendo ele da mesma região dos imigrantes e conhecedor de sua cultura, desejava que padres tiroleses viessem atender o povo do Tirol, ou seja: sacerdotes filhos de camponeses, conterrâneos desse povo. Assim, ele teria escrito na coluna do jornal “Você”, da colônia de Blumenau, datada de 30 de agosto de 1885:

„Entre os males e as murmurações que continuamente passam de boca em boca está a que todos dizem que a desgraça maior é a de não ter um Sacerdote Tirolês, diocesano nosso, e se isso pudéssemos ter a esperança de consegui-lo, nos consideraríamos todos bem-aventurados e afortunados... Se V.S.a. quisesse, quando empacotar os objetos acima citados, solicitamos de colocar no pacote também um pequeno Padre porque temos enorme necessidade dele‟.21

Na realidade, Ganarini defendia os interesses dos colonos trentinos e publicizava isso, inclusive, em 1901, publicou Impressioni di viaggio22 (Impressões de viagem), obra que relata o trabalho dos imigrantes em Nova Trento e sua luta para reinventar a vida na colônia em meio a uma série de dificuldades e de necessidades já assinaladas. Nesse sentido, não é de se admirar que Ganarini viesse a contribuir com o desenvolvimento de uma congregação religiosa que seria criada em 1890 por jovens tirolesas: Amabile Visintainer e suas companheiras, nosso objeto de pesquisa. Conforme nossas cronistas, Ganarini enviaria 50 mil réis anualmente para as futuras irmãs, auxiliá-las-ia a criar uma fábrica de seda, manteria correspondência e algumas vezes as visitaria. Antes de falecer teria deixado um donativo de quatro contos de réis para elas. Por estes motivos, ele é considerado “benfeitor” da congregação23 e certamente ficou na memória dos vigolanos e de toda a região de Nova Trento. Após sua saída dos povoados de Nova Trento, lá pelo ano 1879, conforme as crônicas de Matilde e Dorotéia, os vigolanos e todo o povo trentino ficaram desolados, pensando em deixar a colônia. Contudo, desistiram da ideia, pois reanimaram-se com a notícia da vinda de jesuítas.