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Capítulo 3. Usando os “azares do tempo”: freiras-leigas

3.1. Feminização do catolicismo

A nosso ver, a feminização do catolicismo durante o século XIX pode ser vista sob vários ângulos e de acordo com as realidades onde ocorre. Ela caminhou em várias direções, com ênfase para a entrada de mulheres em grande quantidade para a vida religiosa e, em proporção menor, participação feminina das atividades da Igreja e das obras de assistência.

1 Foi Claude Langlois quem denominou assim este processo em seu estudo sobre as congregações francesas com

superiora geral no século XIX, isto é, aquelas que possuem casas ou „sucursais‟ sob a dependência de uma superiora geral, cujas irmãs levam uma vida ativa, sendo professoras ou enfermeiras, embora não se desvirtuem das obrigações conventuais. No século XIX, diz Langlois, “praticamente todas as antigas comunidades de religiosas se organizaram em congregações com superiora geral. Todas as fundações novas adotaram igualmente essa organização. A congregação com superiora geral é bem o modelo de organização dominante na época.” Ele trata, portanto, da entrada maciça de mulheres para a vida religiosa naquele país. Cf. LANGLOIS, Claude. Le catholicisme au féminin. Les congrégations françaises à supérieure générale au XIX siècle. Paris: Cerf, 1984, p.16. No Brasil, Rosado Nunes abriu a discussão, entendendo que a “clericalização do catolicismo brasileiro foi, ao mesmo tempo e necessariamente, o processo de sua „feminização” (NUNES, Maria José Rosado. Freiras no Brasil. In: DEL PRIORE, Mary. História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997, p.491). No estudo de Paula Leonardi, se vê como a feminização do catolicismo permeou os processos de fundação, desenvolvimento e expansão de duas congregações femininas francesas que se estabeleceram no Brasil no início do século XX – Irmãs de Nossa Senhora do Calvário e Irmãs da Sagrada Família. As análises foram feitas a partir da investigação de memórias e imagens que as irmãs construíram de si mesmas, de suas congregações e de seus trabalhos. Cf. LEONARDI, Paula. Além dos espelhos: memórias, imagens e trabalhos de duas congregações católicas. São Paulo: Paulinas, 2010.

O fenômeno foi mais enfático na França: de 1796 a 1880 chegou-se a cerca de 400 novas fundações de congregações femininas, congregando quase 200 mil mulheres.2 Mas o fenômeno tocou também os demais países católicos com tempos e intensidades diferenciadas, de acordo com seus contextos sociais, políticos e eclesiais.

Aqui e acolá, o que percebemos é certa sincronicidade do fenômeno desencadeado em vários lugares e com variadas vertentes. Nesse sentido, o que o grande escritor e intérprete de mitologia de nossos tempos, Joseph Campbell,3 diz a respeito das imagens míticas homólogas, criadas em diferentes culturas, épocas e lugares, pode ser aplicado para analisar a feminização do catolicismo: o fenômeno pode expressar plasticidades homólogas, porém com cenários e atores próprios, de acordo com o lugar geográfico, cultural, social e político onde ocorre.

Das conjeturas apontadas por J. Campbell para explicar a ocorrência deste tipo de fenômeno sincrônico, as do prisma migratório e histórico podem elucidar alguns aspectos dos processos de feminização do catolicismo e estão alinhadas com nossa reflexão desde a imigração vigolana. Conforme demos a entender pela trajetória dos Visintainer, Nicolodi e outros trentinos, em sua inserção na Vígolo brasileira e invenção do cotidiano religioso na Capela de São Jorge, os movimentos migratórios podem provocar processos de interação entre culturas, ou seja: experiências, pensamentos, especulações, hábitos são levados de uma região para outra segundo uma das teses de Campbell. Aplicando essa linha de pensamento à feminização do catolicismo, podemos dizer que a experiência francesa, de entrada maciça de mulheres para a vida religiosa, pode ser a zona primária; a experiência de feminização do catolicismo de outros países, zonas de difusão ou áreas para as quais a experiência francesa é levada. Embora Campbell fale que, nestes fenômenos, ocorrem processos de aculturação ou assimilação e até ressignificação, preferimos pensar em apropriação na linha certeausiana: cada país ou realidade se apropria da feminização do seu jeito. Portanto, a nosso ver, a feminização do catolicismo ocorrida na França, Itália, Brasil, e outras regiões não abordadas por esta pesquisa deve ser entendida à luz de seus contextos específicos, porém, correlacionada aos contextos mais amplos e para além das fronteiras de um país.

2 Segundo Claude Langlois, o contexto social e político da Revolução Francesa (1789), cujos princípios

vigoraram por muito tempo, levou à perseguição de abadias, conventos, mosteiros e ao confisco de bens das ordens tradicionais, inclusive, impediu o recrutamento de noviças. O processo acabou favorecendo a expansão das congregações com superiora geral uma vez que esse novo modelo de vida religiosa se adaptava melhor às exigências do Estado. Eram mais úteis à sociedade, pois qualificavam as mulheres para atuar em escolas, hospitais e obras assistenciais e atendiam à exigências de fazer votos a Deus e usar hábito religioso somente dentro de suas casas, ou seja, no âmbito privado. Cf. LANGLOIS, Le catholicisme au féminin.

Vejamos, então, a feminização do catolicismo na Itália. Privilegiamos uma breve incursão neste país por ser a terra de origem das protagonistas deste capítulo. A intenção é de verificar alguns aspectos do modelo de mulher católica da Igreja italiana, supondo que foram, de alguma forma, apropriados por Anna Domenica e Angela Dallago, e transmitidos às suas filhas, Amabile Lucia Visintainer e Virginia Rosa Nicolodi.

Tal como ocorria em outros países europeus, a Igreja italiana, sobretudo as paróquias localizadas em centros urbanos e municípios maiores, era atingida pelas consequências do desenvolvimento industrial e da difusão das ideias liberais e anticlericais.4 De modo particular, enfrentava o afastamento do segmento masculino, influenciado, em especial, pela difusão do trabalho dominical. Com outras palavras, os homens começaram a trabalhar no domingo, o que os impedia de participar da missa e ainda observar os principais ritos do ano: confissão e comunhão pascal. Esse comportamento masculino era considerado vicioso, ao passo que as mulheres começaram a ser valorizadas por vários fatores: sua prática religiosa era mais intensa e regular; sua fé não se colocava como posição política, na linha anticlerical, mas na linha comportamental; enfim, representavam um público dócil e suscetível ao comando do clero que apregoava a restauração católica naquele momento; um público receptivo às novas devoções e associações, sob, sobretudo marianas, criadas pela Igreja no período.

Esses contextos socioculturais e outros de ordem política coincidiram com a feminização das práticas religiosas italianas – era um momento em que os princípios separatistas do pensamento liberal permeavam os processos de unificação italiana os quais também entraram em divergência com a Igreja por causa da redistribuição de poder e de territórios pontifícios, explica o historiador Martina.5 Em meio a esse contexto difícil de

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Neste e nos parágrafos seguintes utilizamos as ideias de Michelle Giorgio para discutir o pensamento católico do século XIX a respeito das mulheres, sua penetração na cultura do período e suas implicações na vida delas. Cf. GIORGIO, Michela. O modelo católico. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle. História das Mulheres. O século XIX. Porto: Afrontamento, 1991.

5 Na Itália, o fenômeno do separatismo (separação Igreja e Estado) foi visível a partir de 1850 no Reino da

Sardenha e mais tarde em todas as partes da península, dando ao Risorgimento ou Ressurgimento (processo de criação de um Estado independente italiano) um caráter muito distante do de uma simples unificação territorial, mas bem mais próximo do de criação de um Estado laico, ou seja, voltado para um esforço de emancipação de toda tutela da Igreja e sob vários aspectos laicista. No que diz respeito ao confisco de bens da Igreja, Martina pergunta: não teria sido provocado pelo excessivo tamanho do patrimônio imobiliário eclesiástico? Ou teria ocorrido devido à má administração dos bens? Ou para enfraquecer o poder da Igreja? Ou por todos esses motivos? Conclui que a iniciativa não trouxe benefícios às finanças estatais já que com a venda de grande quantidade de imóveis o preço caiu, houve erros técnicos e muita especulação. Quem acabou tirando proveito foram os latifundiários da nobreza e da burguesia. Por outro lado, na opinião de Martina houve certa evolução na atitude do Estado que passou a remunerar os padres, mas se houvesse conflito o subsídio poderia ser extinto. Para a Igreja as consequências desse processo foram, de um lado, miséria do baixo clero em algumas regiões, mas de outro lado, perda das vocações interesseiras e maior valoração do apostolado e da graça de Deus do que dos meios materiais, avalia Martina. Quanto às religiosas e aos religiosos, eram temidos porque fugiam ao

construção de uma nacionalidade italiana, bem explicitado no estudo de Bertonha,6 os teólogos do catolicismo construíram um modelo de mulher italiana, patriótica e católica, disseminado por todos os territórios urbanos e rurais, alcançando os países católicos em geral, afirma a autora citada anteriormente, Michela Giorgio. Assim, conforme apreendemos das considerações de Giorgio, as mulheres passaram a ser projetadas como poderosas condutoras para o bem e auxiliares valiosas de padres, mas atoras silenciosas do cenário doméstico e espiritual, pois a esfera pública e a palavra pertenciam aos homens. A elas cabia o papel de esposas, mães e beatas dedicadas. Elas até poderiam se sentir soberanas e autogratificadas com esse papel, mas seu poder se restringia à vida doméstica, à orientação dos filhos e às

práticas piedosas.

Nessa perspectiva, a Igreja pregava a submissão das mulheres aos maridos e o espírito de abnegação, pois o marido era uma dádiva de Deus e conduzia a mulher à santidade, ainda que pela via do sacrifício, salienta a autora acima. Com outras palavras, a Igreja assegurava a autoridade marital e legislava a seu favor. A encíclica Arcanum, de Leão XIII, publicada em 1880, por exemplo, respondeu aos ataques laico-liberais de muitos europeus contra o matrimônio, pregando um refrão bem conhecido: ‘O homem é a cabeça da mulher como Cristo é a cabeça da Igreja’. Portanto, restava às mulheres se submeter aos casamentos forjados por suas famílias e não de acordo com suas opções, as quais pertenciam aos horizontes míticos dos panfletos feministas da época, afirma Giorgio.

A feminização do catolicismo italiano representou também a entrada de mulheres para a vida religiosa embora o processo tenha sido tardio se comparado a outros países, dificultado pelo regionalismo político e cultural dos territórios da península, cujo processo de unificação só foi oficializado em 1860. Mesmo assim, alguns territórios foram anexados ao Estado italiano somente em 1918, caso da Província de Trento, donde provêm os Visintainer, Nicolodi e outros imigrantes que se instalaram em Vígolo e Nova Trento. Em razão desse contexto, o apogeu italiano das fundações de novas congregações religiosas se deu somente nos anos 1830/40. Assim, no século XIX, surgiram 183 novas congregações italianas contra 43 dos três séculos precedentes. Em 1861, conforme o primeiro censo da Itália unificada,

controle estatal, suas congregações e ordens tradicionais foram acusadas de inutilidade, em especial, dos jesuítas, redentoristas e damas do Sagrado Coração de Jesus. Acuados, cederam às intimações do Estado sem resistir, limitando-se a um protesto formal. Cf. MARTINA, Giacomo. História da Igreja: de Lutero a nossos dias. A era do liberalismo, v.3. Tradução de Orlando Soares Moreira. São Paulo: Loyola, 1996.

havia 42.664 religiosas e 30.632 religiosos, indicando o número superior de mulheres vivendo nas novas congregações e nos conventos tradicionais.7

Esse modelo de organização religiosa feminina – chamada congregação com superiora geral (Langlois) ou congregação de vida ativa e apostólica (Azzi, Beozzo, Martina e outros) – que tanto atraiu as mulheres europeias do século XIX, fora criado entre os séculos XVII e XVIII no contexto da Contrarreforma, mas como foi dito, atingira seu apogeu na França oitocentista. O que chamava atenção nessas congregações era seu novo formato, diverso das ordens tradicionais: havia uma casa-mãe ou casa-geral, espécie de matriz onde morava a fundadora ou a superiora geral da congregação, mas o projeto era se expandir e abrir novas casas (filiais) que deveriam estar sob a jurisdição da superiora geral. Com outras palavras, as congreganistas – outra expressão de Langlois – dependiam basicamente da sua fundadora ou superiora geral, embora também estivessem subordinadas ao bispo ou ao padre fundador da congregação. Essa estrutura, vigente até os dias de hoje, teria contribuído para o crescimento e expansão das congregações, pois a organização institucional favorecia a autonomia das congreganistas nos muitos campos onde atuavam, em especial, na educação feminina.

Ademais, as congreganistas podiam ter profissão, atuar em obras criadas por sua congregação ou assumir trabalhos externos. Portanto, as congregações com superiora geral representaram uma alternativa diante das ordens religiosas tradicionais (clarissas, carmelitas, ursulinas etc.), dos mosteiros independentes e cada um com sua própria abadessa, com um ritmo de vida marcado pelo recolhimento onde as religiosas não tinham atuação social, pastoral ou profissional fora dos muros de seu casarão. Nesse sentido, os vários campos de atuação das novas congregações devem ter atraído as mulheres em busca de uma profissionalização e de uma formação intelectual. De fato, esse modelo de inserção social além de contribuir com a saída da mulher de seu mundo doméstico se contrapunha a tão criticada ociosidade de monges e monjas. E ainda, na linha da pergunta de Michelle Giorgio: quantas nelas ingressaram para se educar ou para escapar à tirania paterna? De qualquer forma, na esteira de Certeau, pode-se dizer que as mulheres se beneficiaram com essa oportunidade, souberam cavar espaços e caminhos diferentes de viver em sociedade, ainda que eles viessem pela via da religião e ainda que estivessem sob o controle da hierarquia da Igreja. Em suma, com Certeau8 diríamos: em suas operações cotidianas de apropriação do

7 De 1900 a 1952 foram criadas mais 152 congregações femininas. Cf. MARTINA, op. cit., p.202-203. 8 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer, v.1. 16ª ed. Petrópolis: Vozes, 2009, p.46.

catolicismo, as mulheres tiraram partido daquilo que era instituído pela Igreja, fazendo isso em momentos oportunos, ou seja, aproveitando a ocasião.

No contexto brasileiro, dentro da política de reforma da Igreja do Brasil em sintonia com o movimento de restauração católica promovido em todos os países onde se praticava o catolicismo, houve muitas contendas dos bispos reformadores com o segmento masculino leigo,9 especialmente das irmandades e ordens terceiras, as quais acabaram contribuindo com a feminização do catolicismo. A primeira ação episcopal foi de se apropriar desses organismos que eram dirigidos por homens-leigos – a maioria branca e geralmente da elite –, tirando deles poder e autonomia e subordinando-os às diretrizes episcopais e pontifícias. Com essa medida pretendiam: diminuir o poder do laicato; controlar os congregados das irmandades – maçons deveriam ser excluídos; combater as ideias liberais que permeavam esses organismos e extirpar qualquer indício de anticlericalismo.

Esse contexto acabou estimulando o investimento no segmento feminino por ser considerado um público mais dócil às normas e, portanto, mais favorável às mudanças em curso. Assim, foram criadas várias organizações religiosas específicas para mulheres católicas e elas passaram a ocupar estes espaços, começaram a atuar nas pastorais e nas obras de caridade da igreja. Como diz Rosado Nunes,

Pode-se assim dizer que a „clericalização‟ do catolicismo brasileiro foi, ao mesmo tempo e necessariamente, o processo de sua „feminização‟. A incorporação das mulheres pela instituição deu-se em virtude da pretensão de diminuir ou anular o poder do laicato masculino. Dessa forma, a dinâmica através da qual se feminiza o catolicismo no Brasil, longe de significar um investimento das mulheres no exercício do poder sagrado, representa, de fato, a reafirmação de seu estatuto subordinado. Pode-se mesmo afirmar que é justamente porque a Igreja manteve, no período da reforma católica, práticas e discursos restritivos em relação às mulheres, que ela pôde incorporá-las em sua estratégia de reforma institucional.10

Em outras palavras, a clericalização do catolicismo brasileiro é feminização necessária; é contraposição às irmandades leigas e masculinas. Por este motivo, a feminização do catolicismo brasileiro aparece articulada com o poder masculino. A assertiva serve, em grande medida, ao caso da igreja italiana. Por outro lado, aplicando as teses de Certeau, podemos pensar que as mulheres tentaram aproveitar esse processo em seu favor, ou seja, inventaram o catolicismo do seu jeito, de acordo com suas artes de fazer religião. Ademais, podemos dizer que dar uma catequese, coordenar uma associação, dirigir uma ação de

9 Cf. OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro. Catolicismo popular e romanização do catolicismo brasileiro. Revista

Eclesiástica Brasileira, Rio de Janeiro, v.36, n.141, mar. 1976; OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. Religião e dominação de classe. Petrópolis: Vozes, 1985; WERNET, Augustin. A Igreja Paulista no século XIX: a reforma de D. Antônio Joaquim de Melo (1851-1861). São Paulo: Ática, 1987; FRAGOSO, Hugo. A igreja na formação do Estado Liberal. In: VV.AA. História da Igreja no Brasil. Segunda época. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1992; AZZI, Riolando. O altar unido ao trono: um projeto conservador. São Paulo: Paulinas, 1992, p.29-30. (Coleção História do Pensamento Católico no Brasil, 3); NUNES, Freiras no Brasil.

caridade e fazer (artisticamente) a ornamentação de uma igreja eram tarefas que exigiam tanta inteligência, imaginação e memória quanto as atividades tradicionalmente tidas como mais elevadas,11 como a homilia de um padre, por exemplo.

Além disso, as mulheres se beneficiaram com as escolas católicas e associações de piedade que foram criadas desde o final do XIX. Diga-se mais: tanto as religiosas que dirigiam escolas e associações como as mulheres que frequentavam essas instituições acabaram tendo algum ganho. Para as irmãs estrangeiras e recém-chegadas ao Brasil, conforme mostrou Leonardi, era salutar marcar presença nesses espaços e obter certo reconhecimento, apesar de estarem sempre à sombra do clero. Para as mulheres em geral, participar das associações femininas ou estudar nos colégios de freiras significava uma oportunidade de sair dos muros caseiros e ter acesso à formação escolar. Todavia, como o Brasil de ontem e de hoje é um país continental, torna-se cenário de variadas experiências humanas, sociais, culturais, políticas e religiosas. Vejamos, então, o caso de nosso objeto de pesquisa.

Na pequena Vígolo e mesmo em Nova Trento, ao contrário de outros lugares do Brasil, especialmente centros urbanos, não houve contendas de bispos e padres reformadores com leigos dirigentes de irmandades, até porque lá havia jesuítas desde 1879 e, conforme analisamos no capítulo anterior, eles implantaram novas devoções e associações, de linha romanizada e ultramontana, pretendendo não deixar nenhum espaço para outro tipo de organização.

Não podemos esquecer de que os jesuítas eram, na expressão de Azzi, defensores declarados da implantação do modelo eclesial tridentino no Brasil. Perseguindo essa meta, vimos que eles difundiram especialmente a devoção do Sagrado Coração de Jesus e as de cunho mariano, e priorizaram a linha sacramentalista em todas as comunidades católicas de Nova Trento. Em Vígolo, eles eram benquistos, sobretudo nas famílias Visintainer e Nicolodi, cujas esposas viviam de acordo com o modelo de mulher católica outrora incutido pela Igreja italiana, o que contribuía com a linha dos padres.

Digamos também que os jesuítas só não puderam contratar uma congregação feminina para fundar um colégio em Nova Trento, de preferência italiana conforme idealizavam,

11 Palavras de Luce Giard, coautora de A invenção do cotidiano, v.2. Ela chegou a essa consideração depois de

extensa pesquisa de campo e bibliográfica a respeito da prática cotidiana de cozinhar, uma arte que exige uma memória múltipla: memória de aprendizagem, receptividade sensorial e engenhosidade para criar artifícios, enfim, conclui Giard, “entrar na cozinha, manejar coisas comuns é pôr a inteligência a funcionar, uma inteligência sutil, cheia de nuanças, de descobertas iminentes, uma inteligência leve e viva que se revela sem se