• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 2. Inventando a religião: o catolicismo em Vígolo

2.1. Tutela da Igreja

É sabido que a Igreja Católica desde seus tempos mais antigos até os dias de hoje investe no acompanhamento de seus fieis a fim de manter sua adesão ao catolicismo, evitando que suas crenças migrem para outras religiões, instituições sociais ou políticas. Os fieis podem se deslocar dos muros e fronteiras católicas dos lugares onde nasceram como ocorreu por ocasião das imigrações em massa do XIX e XX, mas jamais abandonar a adesão à Igreja. Para isso é necessário fomentar suas convicções, pois constituem sua adesão,2 por meio de uma assistência sistemática e cotidiana que, historicamente, se intensificou na Idade Moderna quando a Igreja procurou evitar que europeus católicos emigrassem para áreas dominadas pelos protestantes. A preocupação aumentou na era da grande emigração do século XIX,

pois, ao mesmo tempo em que a dispersão dos povos católicos (italianos, espanhóis, portugueses, irlandeses, entre outros) pelo mundo abria imensas possibilidades de evangelização para a Igreja, também gerava o risco de perda de almas para os protestantes e para os movimentos anticlericais. Razão, pois, para a Igreja acompanhar com atenção esses fluxos e procurar criar mecanismos para diminuir o risco de perda de fé dos imigrantes.3

Por esta razão, houve uma série de ações voltadas para o acompanhamento dos emigrantes, em especial pelas ordens religiosas. Sendo assim, entre o final do século XIX e início do XX surgiram grupos de missionários italianos direcionados para os emigrantes italianos: Congregação dos Padres Escabrinianos ou Carlistas, como são mais conhecidos, Congregação das Irmãs Carlistas, Opera Bonomelli, Italica Gens. Essas e outras organizações atuaram em missões, paróquias, escolas, associações e hospitais, sobretudo no continente americano.4

Cumpre salientar que o investimento na assistência aos imigrantes pode ser entendido como uma ação estratégica5 que emana de um lugar de poder que, na época, articulava o

2 Este conceito nos é dado por Certeau em outros de seus textos, As revoluções do ‘crível’. Diz ele: “As

instituições produzem hoje mais emigrados do que meios-soldos; os que partem são mais numerosos do que os nostálgicos.” Por que emigram? Podemos perguntar. Ao que indica Certeau, parece ocorrer uma recusa da não significação, ou seja, as instituições e as representações teriam tornado-se ‘não críveis’. Assim, a adesão emigra. Nascem outras credibilidades que produzem deslocamentos na adesão (CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. 6ª ed. Campinas: Papirus, 2010, p.23-40).

3 BERTONHA, João Fábio. Os italianos. 2ªed. São Paulo: Contexto, 2005, p.108. 4

Segundo Bertonha, o trabalho dessas organizações religiosas foi mais intenso no período pré-Primeira Guerra Mundial, mas foram retomados pós 1945 por causa da nova onda de emigração italiana. No período entre as guerras mundiais, enfraqueceram suas atividades devido a uma série de fatores: assimilação dos italianos em seu novo país, diminuição dos fluxos de italianos para fora da Itália e problemas internos das próprias organizações. Sobre a congregação dos Carlistas, ver: AZZI, Riolando. A Igreja e os migrantes: a imigração italiana e os primórdios da obra escalabriniana no Brasil (1884-1904), v.1. São Paulo: Paulinas, 1987.

5 Certeau chama de estratégia “o cálculo das relações de forças que se torna possível a partir do momento em

que um sujeito de querer e poder é isolável de um „ambiente‟. Ela postula um lugar capaz de ser circunscrito como um próprio e portanto capaz de servir de base a uma gestão de suas relações com uma exterioridade distinta.” (CERTEAU, A invenção do cotidiano, v.1, p.45). Aplicando esse conceito, podemos dizer que a Igreja (sujeito de querer e poder), de seu ‘lugar’ próprio (centro de poder: Vaticano) planeja (calcula) as estratégias de

movimento de restauração católica ou reforma interna da Igreja.6 A estratégia consistia em implantar um catolicismo centralizado em Roma – romanizado – e subordinado ao papa e aos seus representantes – ultramontano –, em todos os espaços onde a Igreja estivesse presente ou viesse a ser organizada, como o caso da colônia de imigrantes.

Uma figura saliente desse período é Pio IX, cujo papado (1846-1878) se esmerou para implantar esse catolicismo romanizado e ultramontano,7 fundamentado nos principais preceitos do antigo Concílio de Trento (1545-1563): a ênfase aos sacramentos como mediação para a salvação eterna dos fieis e a crença de que a palavra da Igreja/autoridade é a verdade, perspectiva contrária à da Reforma Protestante, a qual foi combatida por aquele concílio.

A reforma vinha ao encontro da necessidade de a Igreja combater uma série de princípios, ideias e políticas da modernidade. Para tanto, Pio IX deliberou reunir numa síntese os erros mais difundidos e perigosos, os chamados erros modernos, que foram publicados no Silabo, anexo da encíclica Quanta cura, publicada em 1864. Em síntese, os principais erros da modernidade seriam: o liberalismo, o positivismo, o socialismo, o protestantismo e a maçonaria. Os documentos condenam também a liberdade de culto, de pensamento e de imprensa. Outros acentos do Silabo os quais suscitaram mais reação da opinião pública: a Igreja era plenamente independente, por sua própria natureza; logo, o Estado deveria se subordinar à sua lei moral e reconhecer seus direitos naturais, anteriores a ele e dele

restauração do catolicismo (leis, dogmas, diretrizes etc.) que devem atingir todos aqueles que estão num não lugar e, portanto, não participam desse poder e desse querer, mas devem acolher suas determinações (no caso, nossos imigrantes).

6

A reforma interna da Igreja Católica ou reforma da Igreja é uma terminologia utilizada pelos bispos do século XIX, inspirados na reforma tridentina (século XVI). A expressão era utilizada na sua acepção comum, significando basicamente a substituição de elementos considerados deficientes – clero liberal e catolicismo devocional – por novas formas que permitissem à fé católica apresentar-se com nova face. Cf. AZZI, Riolando. O altar unido ao trono: um projeto conservador. São Paulo: Paulinas, 1992, p.29-30. (Coleção História do Pensamento Católico no Brasil, 3).

7 Em termos gerais, a romanização de Pio IX constituiu-se em uma tentativa de uniformização de ritos e crenças

católicas, unificação de formação e linha de ação do clero. Pretendia-se que todas as igrejas católicas com seus bispos, padres e laicato seguissem os mesmos parâmetros e dogmas utilizados em Roma. Desejava-se a menor variação possível, apesar das características díspares de cada país e região, analisa Azzi (ibid.). O

ultramontanismo, por sua vez, estabelecia a centralização do poder religioso, isto é, a subordinação de todos os

segmentos da Igreja àquele que residia além dos montes, o papa. Com outras palavras, os padres deveriam estar sob o comando direto dos bispos e do papa e não das autoridades civis conforme se fazia no sistema do padroado; os leigos e, em especial, as irmandades e ordens terceiras também deveriam ser subordinados aos seus padres e bispos, acatando as diretrizes centrais de Roma. A linha ultramontana foi corroborada pelo Concílio Vaticano I, em 1870, que decretou o Dogma da Infabilidade Papal, vigente até hoje: o Papa, assistido pelo Espírito Santo que o preserva de todo o erro, está sempre correto quando delibera e define algo em matéria de fé, doutrina ou moral – está acima das decisões dos bispos e de quaisquer outras autoridades, segundo O NÔVO catecismo. Obra redigida pelo Instituto Catequético Superior de Nijmegen (Holanda). Traduzida da edição original do catecismo holandês. São Paulo: Herder, 1969, p.423-427. Cf. Cf. OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. Religião e dominação de classe. Petrópolis: Vozes, 1985; WERNET, Augustin. A Igreja Paulista no século XIX: a reforma de D. Antônio Joaquim de Melo (1851-1861). São Paulo: Ática, 1987; NUNES, Maria José Rosado. Freiras no Brasil. In: DEL PRIORE, Mary. História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997.

independentes. Portanto, a religião católica deveria ser considerada religião de Estado.8 De fato, a intenção era limitar o controle do Estado sobre a Igreja, isto é, romper com o regalismo e, ao mesmo tempo, manter a cristandade – Estado subordinado à Igreja – contrariando o princípio liberal em curso de uma Igreja livre num Estado livre.

Para cumprir o programa da reforma de Pio IX no Brasil, era preciso reformar o clero e catolicismo, reconheceram os bispos que seguiram a risca as estratégias pontifícias (chamados bispos reformadores).9 Evidentemente que a tarefa seria mais fácil de ser executada em novas áreas de evangelização, tais como as colônias de imigração italiana que eram integradas por colonos supostamente, e não necessariamente conforme veremos, praticantes de um catolicismo tridentino. Mas para os lugares onde o catolicismo tradicional já funcionava há muito tempo, a reforma não era fácil e exigia combatê-lo nas suas duas vertentes: erudita e popular.10 Exigia mais: investir na vinda de congregações religiosas para o Brasil, masculinas e femininas, especialmente para atuar na instrução da juventude, pois os bispos estavam preocupados com a educação laica e com o avanço do protestantismo desde a segunda metade do XIX, conforme mostrou M. Lucia S. Hilsdorf em sua pesquisa sobre as

8 Cf. MARTINA, Giacomo. História da Igreja: de Lutero a nossos dias. A era do liberalismo, v.3. Tradução de

Orlando Soares Moreira. São Paulo: Loyola, 1996.

9 D. Antônio Ferreira Viçoso (bispo de Mariana) e d. Antônio Joaquim de Melo (bispo de São Paulo) foram os

principais líderes do grupo dos bispos reformadores nas décadas de 40 a 60 do século XIX. Deixaram discípulos: d. Macedo Costa (bispo do Pará) e d. Vital de Oliveira (bispo de Pernambuco) prosseguiram a obra reformadora nos anos 70. Cf. AZZI, O altar unido ao trono.

10 A vertente popular do catolicismo, malgrado a ação dos bispos reformadores, permaneceria na mentalidade e

nas práticas religiosas do povo, “ao menos fragmentariamente, nas regiões onde a presença clerical foi ou ainda é reduzida, e onde os próprios leigos são os agentes promotores de suas festas e práticas religiosas.” (OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro. Catolicismo popular e romanização do catolicismo brasileiro. Revista Eclesiástica Brasileira, Rio de Janeiro, v.36, n.141, mar. 1976, p.141). A vertente erudita ou ilustrada do catolicismo brasileiro, fundamentada em princípios iluministas, aglutinava leigos e padres-políticos e/ou intelectuais (padres ilustrados) que criticavam o caráter reacionário e conservador do catolicismo oficial tridentino, a infabilidade papal e a lista de erros da sociedade moderna contida no Silabo. Cf. HOORNAERT, Eduardo. Formação do catolicismo brasileiro: 1550-1800. Petrópolis: Vozes, 1991. Estes padres estavam inseridos na sociedade civil, conviviam com maçons e liberais, participavam da política e da vida pública, defendiam um projeto de igreja nacional, anticlerical e com celibato opcional – Antonio Diogo Feijó, o padre-político por excelência, é expoente desse grupo. Quanto aos leigos ilustrados – geralmente homens brancos, de elite e (alguns) maçons – atuavam nas irmandades católicas e ordens terceiras que tinham seu próprio estatuto e vida institucional independente do clero que era acionado apenas para celebrar missa. Cf. HOORNAERT, Eduardo. A cristandade durante a primeira época colonial. In: VV.AA. História da Igreja no Brasil. Primeira época. Petrópolis: Vozes, 1977, p.234-242. Então, os bispos reformadores planejaram uma nova formação teológica para os futuros padres, na linha moralizante e essencialmente espiritual, centralizada e ministrada por sacerdotes de preferência europeus ou brasileiros da linha reformadora. Doravante os padres deveriam focar sua ação pastoral na administração dos sacramentos, catequese e homilias, ficando longe de cargos públicos e políticos. Leigos ilustrados, por sua vez, deveriam ajustar-se à nova organização das irmandades, agora atreladas ao bispo e sob seu comando Cf. FRAGOSO, Hugo. A igreja na formação do Estado Liberal. In: VV.AA. História da Igreja no Brasil. Segunda época. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1992.

Escolas Americanas de confissão protestante em seus contextos de surgimento na província paulista.11

Em suma, foram essas as estratégias eclesiais que influenciaram a linha de ação junto aos imigrantes desde o final do Império (XIX): haveria de ser implantado um catolicismo para preservá-los do contato com os principais adversários do momento: liberais, maçons, protestantes e anticlericais. No caso dos fieis que emigrassem para o Brasil, era necessário preservá-los também do contato com o catolicismo popular luso-brasileiro, concebido como uma deturpação da religião oficial. E ainda garantir-lhes assistência de padres de linha romanizada e ultramontana, o que era bem difícil nesse momento, pois a grande maioria do clero brasileiro, infiel ao celibato ou dedicando-se à bancada política, não era considerada apta para promover este tipo de catolicismo.

Para além de críticas e controvérsias em torno desse projeto eclesial, Bertonha reconhece que a Igreja Católica foi uma das organizações que preencheu o espaço deixado pelo Estado italiano na tutela de seus compatriotas nos países de imigração, atuando para preservar sua cultura e manter sua fé.12 Esse pensamento aplica-se a Vígolo, Nova Trento e região, e talvez a muitas outras realidades brasileiras.13 Mas vejamos com mais pormenores o caso de Vígolo.