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Capítulo 3. Usando os “azares do tempo”: freiras-leigas

3.2. As freiras-leigas de Vígolo

A ação pastoral de Amabile e Virginia, além de ser uma expressão da feminização do catolicismo pode ser compreendida como uma suplência da carência de religiosas no lugar. Por esta razão, as chamamos de freiras-leigas, pois exerceram um verdadeiro ministério feminino na comunidade de Vígolo. Com outras palavras, elas certamente fizeram aquilo que fariam as freiras se estivessem lá, ancoradas no mandato dos jesuítas, isto é, com permissão do clero.

A menção às lideranças femininas de comunidades católicas de imigrantes italianos é quase rara na literatura. Azzi chega a falar de uma religiosa singular, Maria Zanolo, conhecida entre os imigrantes da Colônia Virgínia Velha (ES) como a irmã ou a sapateira (porque seus pais eram sapateiros). Aos 35 anos, separada do marido, culta e instruída no catolicismo, a irmã Maria percorria as colônias a cavalo prestando assistência social, pois lá não havia médico, nem farmácia, nem parteira. Nos anos 1902-1903, ela articulou a comunidade para reivindicar a volta de padres escalabrinianos italianos e, por esta atitude, se indispôs com os frades agostinianos espanhóis que atendiam os imigrantes italianos e com o próprio bispo do Espírito Santo, d. Fernando Monteiro. Ao final do processo, inclusive com apoio do cônsul italiano, os escalabriniamos italianos retornaram ao Espírito Santo, mas o bispo impôs uma condição: a “irmã” Maria Zanolo deveria deixar a colônia. Sua vida e atuação na colônia carecem de estudo, reconhece Azzi.18

Grosselli dedica apenas algumas linhas ao tema. Em suas pesquisas na região de Nova Trento verificou que

O capelão era quase sempre um homem, mas pelo menos num caso ouvimos falar de um capelão mulher. Em Besenello atuou com estas funções a „vécia Conci‟ (velha Conci), ao passo que outra fonte fala de uma „betta Slossera‟ (é possível que se trate da mesma pessoa) (grifo nosso).19

M. Luísa A. Leme,20 ao pesquisar o tema linguístico da comunidade tirolo-trentina da cidade de Piracicaba – SP em busca de relações ente o dialeto trentino e o dialeto caipira, detectou a importância da religião na vida da comunidade, por meio de várias entrevistas realizadas. Inferiu que um dos fatores que contribuiu para isso foi a forte atuação de duas lideranças femininas: Maria Stenico e sua irmã Elizabete Correr. Elas lideraram as

18

AZZI, Riolando. A Igreja e os migrantes: a imigração italiana e os primórdios da obra escalabriniana no Brasil (1884-1904), v.1. São Paulo: Paulinas, 1987, p. 89-92.

19 GROSSELLI, Renzo Maria. Vencer ou morrer: camponeses trentinos (vênetos e lombardos) nas florestas

brasileiras. Santa Catarina (1875-1900), v.1. Tradução de Ciro Mioranza e Solange Ugo Luques. Florianópolis: UFSC, 1987, p.452. As mulheres entrevistadas foram: Izaura Maffezzolli Cucco e Agata Zandonai.

20 LEME, Maria Luísa de Almeida. Dio, che brut estudá...: um estudo linguístico da comunidade tirolo-trentina

comunidades de Sant‟Anna e Santa Olímpia – originalmente fazendas que foram compradas pelas famílias tirolesas que juntaram dinheiro e dividiram os custos – aproximadamente do final do XIX até a primeira metade do XX e são lembradas por seus descendentes, especialmente, por sua religiosidade, força de trabalho e liderança.

Também as crônicas de Matilde e Dorotéia mostram um trabalho consistente e duradouro das jovens Amabile e Virginia, construído no dia a dia da Capela de São Jorge entre os anos 1880-1890. Conforme assinalamos, os jesuítas convidaram as jovens para dar catecismo, cuidar da Capela de São Jorge em termos de limpeza, arrumação do altar etc., e ainda visitar os doentes. Notório é que as cronistas nomeiam as jovens de “catequistas, sacristãs e enfermeiras” no exercício dessa função. De fato, elas ensinavam o catecismo para as crianças e, portanto, eram catequistas; e tomavam conta da capela como sacristãs. É verdade que elas visitavam os doentes que não dispunham de nenhuma assistência médica e às vezes até cuidavam de sua higiene, alimentação e casa; no entanto, o título de “enfermeiras” parece ser uma antecipação da tarefa que elas fariam mais tarde, ao criar uma congregação religiosa. Deste modo, o título freira-leiga parece mais adequado para explicar a função supletiva que elas exerceram na comunidade, tendo em vista que eram percebidas pelos padres como potenciais candidatas à vida religiosa. E como não havia freiras e nem a possibilidade de obtê-las, por que não investir nas duas jovens leigas? 21

A expressão freira-leiga que usamos foi inspirada no conceito de padre-leigo ou padre de capela – na religião protestante fala-se pastor-leigo ou pastor-colono – como é conhecido o leigo que exercia o ofício religioso nas colônias de imigrantes no contexto da falta de padres ou pastores ordenados para atender essas comunidades. Com outras palavras, esse homem fazia pastoral sem ser ordenado e sem ter reconhecimento oficial, mas era aceito e respeitado pelo povo.22

21 Leiga ou leigo é um termo utilizado especialmente pela Igreja Católica para designar fieis que não pertencem à

hierarquia eclesiástica e nem são ministros ordenados, padres ou diáconos, mas participam das atividades religiosas e pastorais na condição de auxiliares, colaboradores e voluntários. Cf. LIBANIO, João Batista. O que é pastoral. São Paulo: Brasiliense, 1986.

22 Sobre a atuação dos padres-leigos nas colônias de imigração italiana, ver: ZAGONEL, Carlos Albino. Igreja e

imigração italiana. Porto Alegre: EST, Sulina, 1975; APREMONT, B.; GILLONAY, B. Comunidades indígenas, brasileiras, polonesas e italianas no Rio Grande do Sul. Porto Alegre/Caxias do Sul: USC/EST, 1976; AZZI, Riolando. O catolicismo de imigração. In: DREHER, Martin. N. (org.). Imigrações e história da Igreja no Brasil. Aparecida: Santuário, 1993. E ainda, as obras já citadas: DE BONI, Luís; COSTA, Rovílio. Os italianos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre/Caxias do Sul: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes/Universidade de Caxias do Sul, 1979; MERLOTTI, Vania B.P. O mito do padre entre descendentes italianos. 2ª ed. Porto Alegre/Caxias do Sul: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes/Universidade de Caxias do Sul, 1979; BEOZZO, José Oscar. As igrejas e a imigração. In: DREHER, Martin N. (org.). Imigrações e história da igreja no Brasil. Aparecida: Santuário, 1993; GROSSELLI, Vencer ou morrer; AZZI, A Igreja e os migrantes. Sobre o pastor-leigo, ver: DAVATZ, Thomas. Memórias de um colono no Brasil: 1850. Tradução, prefácio e notas Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1980.

Beozzo considera a emergência das lideranças leigas, masculinas e não oficializadas – padres-leigos, pastores-leigos ou monges budistas –, um fenômeno ocorrido em todas as áreas de colonização de pequenos proprietários – polonesa, alemã, italiana e japonesa. Mas é conhecida a existência desse agente também nas colônias de fazendas, apesar de suas capelas estarem sob a vigilância do fazendeiro e de seu administrador – em Ibicaba (SP), por exemplo, havia o pastor-leigo, conforme o relato do colono Davatz. Ademais, as capelas católicas espalhadas por todo o Brasil desde o tempo colonial, especialmente das áreas rurais e periféricas, conheceram homens que exerceram a função de padres-leigos.23

É evidente que a missão de um padre-leigo ou pastor-leigo variou de acordo com o período histórico de sua atuação, localização social e geográfica de sua comunidade, etnia e religião dos fieis. No caso dos imigrantes trentinos há algumas particularidades interessantes. Grosselli identifica a presença de um padre-leigo desde o navio que transportava os emigrantes italianos ao Brasil.

Os trentinos, catolicíssimos, procuravam garantir um funeral cristão aos desafortunados, mesmo faltando o padre. Surgiu nos próprios navios a figura do padre-leigo que se tornou indispensável nas florestas brasileiras (...). „Já na viagem, através do Oceano Atlântico, em consequência de doenças várias, alguns morriam. Seus cadáveres eram então lançados ao mar, mas como se fosse uma verdadeira sepultura. Organizava-se o velório e se acompanhava o morto com orações e cânticos dirigidos por um leigo capaz de fazê-lo, até que a água tragasse o corpo‟.24

Chegando ao destino, o padre da floresta surgiu quase espontaneamente nas colônias:

Chamado „padre da capela‟ ou „padre leigo‟ no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina foi chamado „capelão‟ ou „sacristão‟ ou „ministro‟ ou „preboste‟ (prepósito). Fruto de seleção natural entre os colonos, era uma pessoa que sabia ler, entre as mais cultas da comunidade. Comumente um verdadeiro líder natural, outras vezes somente um colono que possuía um missal.25

Às vezes, o padre-leigo era alguém que tinha experiência de sacristão ou de corista desde sua terra natal; portanto, conhecia os objetos e o ritual do culto, sabia entoar cânticos

(Coleção Reconquista do Brasil, 11); DREHER, Martin N. Protestantismo de Imigração no Brasil. In: Imigrações e história da igreja no Brasil. Aparecida: Santuário, 1993.

23

Alguns exemplos relevantes de lideranças masculinas do catolicismo luso-brasileiro que assumiam atividades de padre no período: um deles é do Quilombo de Palmares – AL, no século XVII. Segundo Edison Carneiro, havia lá sacerdotes negros para fazer batismos, casamentos e orações de guerra. R. Bastide (As religiões africanas no Brasil) também verificou casos de sacerdotes de fora que foram raptados para celebrar missa dentro dos quilombos. Essas ocorrências quilombolas se deram em função de alguns quilombos terem praticado um catolicismo herdado dos engenhos, apesar de sincretizado com ritos indígenas e africanos. Nesse sentido, sentiam a falta de um sacerdote católico para assisti-los e na sua ausência o substituíam em algumas tarefas, com exceção da missa (Cf. HOORNAERT, Eduardo. A cristandade durante a primeira época colonial. In: VV.AA. História da Igreja no Brasil. Primeira época. Petrópolis: Vozes, 1977, p.132-136). Para além dos quilombos, em algumas comunidades católicas atuais, geralmente localizadas no meio rural ou nas periferias urbanas, há leigos e há leigas que fazem quase tudo: ministram catequese, batizam, visitam as casas, rezam nos funerais, fazem missa seca sem consagração de pão e vinho e, portanto, sem comunhão, coordenam construção e manutenção da capela.

24 GROSSELLI, Vencer ou morrer, p.232-233. 25 Ibid., p. 452.

para animar celebrações e rezas. Outras vezes, era alguém que recebia essa incumbência do próprio vigário quando emigrava a exemplo de Barba, padre-leigo da comunidade Rio dos Cedros, no Médio Vale do Itajaí - SC. Antes de partir, recebeu alguns livros e a seguinte recomendação do vigário:

„com estes livros você pode ser o Pároco de seu vale (...)‟. O Barba chegou felizmente com sua família e se estabeleceu em Cedro e embora estivesse a uma hora e meia distante da Capela Paroquial, todavia com sua família para lá se dirigia todos os domingos e festas, e porque então não havia ninguém que dirigisse as funções, começou ele a fazer como aqui o dizem, as vezes de padre, isto é, diretor das funções‟. 26

Diferente das freiras-leigas de Vígolo que evoluíram para a criação de uma congregação religiosa com o respaldo de alguns jesuítas, os padres-leigos das áreas de imigração italiana recuaram em suas funções, isto é, com o tempo foram substituídos pelos padres ordenados. Na verdade, não houve nenhuma tentativa da Igreja para regulamentar a função do padre-leigo, ficando seu ofício delimitado pelas necessidades da comunidade e pela imaginação do escolhido, ressaltam De Boni e Costa.27

A extinção do padre-leigo diz respeito aos conflitos entre estes e o clero – missionários, vigários e bispos – no contexto da reforma do catolicismo brasileiro e de clericalização da Igreja.28 Pode-se dizer que a base desses conflitos era a disputa de poder entre eles, pois as práticas de um padre-leigo não pareciam muito ortodoxas aos olhos de um padre-ordenado, talvez até soasse como uma conspiração quando a comunidade resistia a uma visão de igreja estreitamente clerical, analisa Beozzo. Em muitos casos, a comunidade continuava solicitando os serviços do padre-leigo, que fazia um contrabando de pastoral, na expressão de Grosselli.

De fato, iam desaparecendo pela oposição do missionário, do vigário, do bispo, mas não sem resistência e sem que os colonos dessem, por vezes, preferência ao padre-leigo que conheciam e estimavam. O padre ordenado vinha de fora e, às vezes, era intolerante e orgulhoso diante da fé simples dos colonos.

O mesmo fenômeno de repressão a essa auto-organização das comunidades aconteceu no mundo luterano, onde os pastores leigos foram sendo desqualificados por parte dos pastores ordenados que chegavam da Alemanha e sendo apelidados de „pseudo-pfarrer‟, ou seja de pseudo-vigários ou de pseudo-pastores.29

26 GROSSELLI, op. cit., p. 454.

27 DE BONI; COSTA, Os italianos do Rio Grande do Sul, p. 133.

28 Desde o século XVIII se tem notícias de conflitos entre leigos e cleros. Uma das cláusulas das Constituições

primeiras do arcebispado da Bahia editadas em 1707, a de número 363, estipulava que o Santo Ofício tinha autoridade no Brasil no caso de alguém „dizer missa sem ser sacerdote‟, o que pode indicar que práticas desse tipo, do âmbito laico, eram vistas como uma problemática a ser combatida pela Igreja oficial e com todo o rigor da inquisição. Cf. HOORNAERT, Eduardo. Formação do catolicismo brasileiro: 1550-1800. Petrópolis: Vozes, 1991, p.19. Em seu estudo sobre a presença dos escalabrinianos no Brasil, Azzi menciona a ocorrência de vários conflitos entre missionários escabrinianos italianos e vigários do clero nacional; missionários e leigos das capelas; missionária e frades espanhóis. A base desses conflitos era a disputa pelo comando das capelas (AZZI, A Igreja e os migrantes). Outros autores também mencionam conflitos entre padres-leigos das comunidades católicas de imigrantes e clero, tais como De Boni e Costa e Grosselli.

De qualquer modo, no campo católico, o processo de clericalização em curso exigia que a Igreja sujeitasse ao seu domínio as organizações leigas mais autônomas.

Nas áreas de imigração e em suas colônias foi a luta contra a organização mais autônoma das capelas e contra os seus responsáveis, os „padres de capela‟. Em outras áreas do catolicismo luso-brasileiro, o processo se traduziu numa luta sem quartel contra as „Irmandades e Ordens Terceiras‟ que haviam construído e, de certa forma, controlavam boa parte das Igrejas e Capelas do país.30

No entanto, diferente foi a trajetória das freiras-leigas de Vígolo: elas não entraram em conflito e nem disputaram poder com os jesuítas. Explicando com as ideias de Certeau: elas traçaram suas próprias práticas apesar de atuarem sob o comando dos padres. Deste modo, operaram de forma desviante:

Embora sejam relativas às possibilidades oferecidas pelas circunstâncias, essas táticas desviacionistas não obedecem à lei do lugar. Não se definem por este. Sob esse ponto de vista, são tão localizáveis como as estratégias tecnocráticas (e escriturísticas) que visam criar lugares segundo modelos abstratos. O que distingue estas daquelas são os tipos de operações nesses espaços que as estratégias são capazes de produzir, mapear e impor, ao passo que as táticas só podem utilizá-los, manipular e alterar.

É preciso, portanto, especificar esquemas de operações. Como na literatura se podem diferenciar „estilos‟ ou maneiras de escrever, também se podem distinguir „maneiras de fazer‟ – de caminhar, ler, produzir, falar etc. Esses estilos de ação intervêm num campo que os regula num primeiro nível (...), mas introduzem aí uma maneira de tirar partido dele, que obedece a outras regras e constitui como que um segundo nível imbricado no primeiro (...).31

Assim fizeram nossas freiras-leigas: sem sair do lugar no qual foram colocadas para exercer a função de “catequistas, sacristãs e enfermeiras”, instauraram aí sua criatividade: transformaram seu ofício cotidiano, instituído pela estratégia do jesuíta que tinha um cálculo ou um projeto sobre elas e a capela, em ocasião de amadurecer a ideia de dedicar a vida à religião. Dito de outra forma: malgrado desempenhassem sua função dentro do sistema estabelecido pelo jesuíta romanizado, o trabalho de freiras-leigas acabou constituindo-se em fonte de abastecimento de um ideal e espaço de articulação de jovens mulheres que passaram a empregar a ocasião para acumular experiências e construir aquilo que nossa cronista Matilde chama “sonho dourado”: a perspectiva de ser uma irmã de caridade.

É bem verdade que por sua cultura familiar e católica, de raiz italiana, Amabile e Virginia eram impelidas a cumprir a missão feminina da época: ser condutoras do bem e auxiliares de padres, mantendo-se com discrição no espaço do lar e da capela, deixando a esfera pública e a palavra para os homens ordenados. Entretanto, elas levaram adiante suas aspirações apesar desses contextos socioculturais, iniciando seu ministério feminino na gestão do padre Augusto Servanzi, que vai dos anos 1880-81 até março de 1888, quando o jesuíta

30 Ibid., p.61.

deixa Nova Trento. Então, foram confirmadas nesse ministério pelo padre Angelo Sabbatini, que passou a ser o superior da residência dos jesuítas no lugar de Servanzi. Como Sabbatini tinha idade avançada e não gozava de boa saúde, delegou a capela de Vígolo a Marcello Rocchi que atuou de 1888 a 1895: Rocchi seria o padre que promoveria a construção de uma gruta para a Virgem de Lourdes e depois construiria uma nova capela no lugar da antiga Capela de São Jorge. Em síntese, Amabile e Virginia desempenharam a função de freiras- leigas durante quase 10 anos (1880-1890), antes de deixar suas famílias, fundar uma congregação, professar votos a Deus e receber o hábito religioso.

Dia a dia do ofício

No ofício de “catequistas”, dizem as crônicas de Dorotéia, as jovens convidaram as crianças e logo a matrícula chegou ao número de 100. “Para afervorar as crianças, contavam- lhes alguns exemplos e ensinavam-lhes alguns cânticos; também sempre tinham santinhos para distribuir áquelles que se applicassem e que fossem bem comportados", explica nossa cronista. Da catequese elas passaram a animar rezas e procissões. Lembra a cronista Matilde que “as familias mais proximas à Capella de São Jorge, antes de sua demolição, reuniam-se todas as tardes para ahí rezarem o santo rosário, e estas reuniões eram uma belleza.” Ela narra também como faziam as procissões de Vígolo para Nova Trento: sem dúvida, populares e piedosas ao gosto do povo; romanizadas e tridentinas ao sabor dos padres.

Saiamos em romaria com o povo todas as primeiras sextas feiras do mez percorrendo a pé os cinco kilometros que nos separavam de Nova Trento. Durante as romarias não se falava, mas rezávamos o terço com a ladainha de nossa Senhora, e depois cantávamos hynnos ao Coração de Jesus. Um dos fins destas romarias era de fazer a Comunhão reparadora.32

No ofício de “sacristãs”, segundo Matilde, “procuramos de esmerar-nos o mais possível. Trabalhávamos as duas juntas para limpar tudo, fazendo flores, toalhas e ornamentos para as festas pedindo tudo de esmola das pobres famílias que nos cercavam”. As crônicas de Dorotéia acrescentam:

Deram-se com muita diligencia ao officio de sacristãs: traziam a capellinha em ordem e bem asseada; punham maior cuidado em preparar a roupa que devia servir para o Santo Sacrifício da Missa e em enfeitar o altar; para isto deviam trabalhar e precisavam de tempo; não o tendo de dia, ficavam na casa de Amabile ou na sacristia, algumas horas da noite, fazendo alguns bordadinhos, para toalhas, roquetes e alvas.33

Também desejavam fazer flores artificiais para colocar no altar, mas não sabiam confeccioná-las. Então, foram solicitar a uma senhora para ensiná-las, mas esta se recusou a compartilhar seu conhecimento. As jovens refletiram e encontraram uma saída: “veio-lhes a

32 M. MATILDE, História da Congregação, p.30-31. 33 M. DOROTÉIA, História da Congregação, p.48.

inspiração de desmanchar uma flor, feita pela mesma senhora, e, servindo-a de molde, reproduziram as primeiras flores”, conta Dorotéia.

A atitude de aprender a fazer as flores sozinhas, na mesma linha de estudar e preparar o catecismo durante a semana para ensiná-lo às crianças no domingo, certamente as estimulava a serem autodidatas em seu processo de construção de conhecimentos. Mais tarde, dentro da congregação, elas continuariam arrumando os lugares de oração e os objetos do culto, e ensinariam esta tarefa para outras meninas e moças de sua casa. Praticando esse ofício por toda a sua vida, Amabile e Virginia cumpririam uma prerrogativa das mulheres, não importa se leigas ou religiosas do século XIX, que eram incumbidas de preparar ornamentos, toalhas e flores para capelas e igrejas. Portanto, Amabile e Virginia cumpririam no seio da Igreja tarefas domésticas tradicionais.34