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4 O mundo é o assunto, o mundo está na “pele efêmera” do livro: a emergência da indexação como teoria da epistemologia biblioteconômica e como resposta

à especialização científica

Das transformações identificadas, destacam-se três questões demarcadas na Modernidade que atestam a eclosão de uma teorização mais profunda sobre a representação temática no oitocentos anglófono. A primeira, já anunciada, diz respeito ao posicionamento epistemológico: uma teoria do conhecimento que se pauta na realidade física coloca o “mundo”, a natureza, como objeto de análise privilegiado. Esta demarcação está clarificada nas Meditações de Renné Descartes. As outras duas questões estão vinculadas ao novo conceito de “tempo”. De um lado, a relação entre “tempo e registro do conhecimento”, já transformada drasticamente com a invenção da prensa, ganha no oitocentos um vulto ainda mais profundo. Por sua vez, a relação entre “tempo e atualidade” se aproxima das mutações recentes, vivenciadas nos fins do século XX. O conhecimento não é mais apenas o saber em si, mas se estabelece a partir de duas frentes claras: o conhecimento como aquilo que está documentado; o conhecimento como aquilo que está atualizado.

Alfredo Serrai (1975) procura resumir a cadeia ontológica de aparecimento das práticas da “organização do conhecimento” a partir das passagens da escrita para o documento, do documento para sua reunião, desta para sua organização. No âmbito da última etapa, desdobra-se um exercício epistemológico no tempo, aberto em duas direções operacionais-reflexivas: construir vias que permitam o encontro dos documentos; indicar em quais documentos se encontram as referências e os dados procurados.

Tais direções estão dispostas, em diferentes margens, profundidades e sob o uso de diferentes técnicas e suportes da Antiguidade aos dias atuais. No âmbito da construção de uma teoria voltada para a representação temática, sabe-se que os primeiros modelos de prática de identificação de recursos pelo assunto estão presentes no Pinakes de Calímaco, na Biblioteca de Alexandria, por volta do século II a.C. Sabe-se, ainda, que não se pode identificar apenas, ali, a prática da “catalogação de matérias” ou de “assuntos” como limite para uma história da indexação, mas a prática exegética de tessitura de cópias e comentários já produziria um conjunto de elementos de representação temática que marca a história da indexação, cobrindo também a Idade Média.

Após a invenção da imprensa, a mudança nas práticas pré-científicas de “organização do conhecimento” ocorre tanto nos aspectos teórico quanto prático. Não só abordagens distintas se desenvolvem, mas também o próprio mobiliário é transformado para suportar as demandas físicas e os novos modos de se pensar a prática.

As bibliotecas crescem agora rapidamente: os sistemas medievais de conservação dos livros em armários, arcas, estantes de tampo inclinado, não são mais compatíveis com o número de livros impressos. Adotam-se prateleiras encostadas ou embutidas nas paredes, e, com o passar do

tempo, a uma parte inferior acrescenta-se outra (galeria) à qual se atinge por meio de rampas ou escadas fixas (Serrai, 1975, p. 149).

Substitui-se aqui, na passagem do Medievo para a Modernidade, a ordem topográfica para a ordem sistemática. A “chegada” de Aristóteles ao ocidente definitivamente transforma as maneiras de classificar e de pensar a ordem das estruturas extrassensíveis e sensíveis da realidade. O sistema filosófico-bibliográfico de Konrad von Gesner se insere diretamente neste contexto, como também o posicionamento de Leibniz diante do conceito moderno de biblioteca.

4.1 O mundo é o assunto: Gesner, Leibniz e a “racionalidade bibliográfica”

Gesner contribui decisivamente, na visão de Serrai (1975), para o desenvolvimento da indexação, a partir de sua Bibliotheca Universalis (elaborada entre 1545 e 1555). Ali as obras aparecem sob o autor ou o assunto. Apresenta-se um índice por nome e outro por sobrenome e remissivas variantes dos nomes. Divididos em 21 classes, os assuntos se subdividem em seções e subseções, formando uma rede de termos ampla.

Outra presença vinculada ao contexto filosófico está em Gottfried Wilhelm Leibniz, atuando como bibliotecário em Hanover em 1676. A visão de publicização do saber conduz o filósofo a uma procura pela organização do conhecimento pautada no acesso aos documentos, o que o faz diretamente envolvido com a prática da indexação.

O conhecimento para Leibniz pode progredir somente quando cada indivíduo tem a possibilidade de informar-me sobre o que já foi escrito sobre um certo assunto, daí a função essencial e insubstituível das bibliotecas no progresso das ciências e na pesquisa em geral (Serrai, 1975, p. 152).

A necessidade de um “catálogo por assunto” é vista como estrutural para uma biblioteca moderna no pensamento leibniziano. Suas ideias estão relacionadas a um projeto de enciclopédia universal, baseada na fusão dos catálogos de assunto das principais bibliotecas. É este o foco de suas cartas a Luiz XV, da França, solicitando o patrocínio de todas as publicações científicas e eruditas. Essas se tornam cada vez mais fragmentadas, especializadas e provisórias, trazendo à cena da organização e da representação do conhecimento a questão da efemeridade.

4.2 Efêmeros: os documentos “passageiros” e a indexação como “velocidade”

Outra questão que nos remete ao aparecimento da indexação como disciplina distinta no século XIX é o caráter efêmero dos “novos livros”, ou documentos de distinta natureza, que se apresentam em multiplicidade, principalmente após a segunda metade do oitocentos. Um novo conceito de livro pressupõe “fragmentos”, como páginas, reconhecidas como panfletos; como microtextos, reconhecidos como folhetos.

Esta discussão está presente em diferentes discursos, principalmente aqueles que tomam a Documentação como território profícuo de desenvolvimento de uma episteme para a representação temática. Trata-se de questionar como se pode organizar o conhecimento que se acha portado em documentos com uma condição limitada em termos de preservação, durabilidade, seja tendo em vista seu conteúdo, seja tendo em vista seu suporte.

No entanto, como anteriormente destacado, a própria construção histórica de tais práticas indica que a indexação se desenvolve sob fatores sócio-epistemológicos coincidentes na História. Eles estão, em geral, vinculados aos desafios que são causa e consequência das mutações tecnológicas e políticas. Como exemplo, temos a invenção da prensa como resposta aos processos de cópia e de resumo nas primeiras universidades (causa) e a própria presença de Gesner, pós invenção da prensa, procurando organizar tematicamente o conhecimento disposto em documentos impressos em escala geométrica (consequência).

O “novo conceito” de livro do oitocentos convoca a construção de uma teorização capaz de pensar classificação, catalogação e indexação de qualquer tipo de artefato bibliográfico, principalmente aqueles que são parte da “desintegração” do conceito de unidade presente no livro antigo e medieval. Seja pela matéria que o leva, seja pelo conteúdo que leva, a natureza do livro, assim como é natureza objetificada pela epistemologia do século XIX, é passível de corrupção e desaparecimento. Uma teoria da “organização do conhecimento”, a partir dali, é conduzida a pensar que a efemeridade é uma característica do próprio saber; logo, dos suportes e dos registros do saber.

A teorização sobre a representação temática oitocentista está, deste modo, diretamente envolvida com a necessidade de uma resposta rápida ao conhecimento que se estabelece sob outro ritmo. Dinâmica, a indexação se constrói como espaço epistemológico da Library Science anglófona do século XIX diretamente vinculada às mudanças nos modos de sentir e de fazer o “tempo” de produção intelectual.

4.3 A indexação e os dias: uma episteme para um outro conceito de “tempo”

Por fim, encontramos a mutação do livro relacionada ao oitocentos e a necessidade de uma resposta teórico-técnica para tal transformação conceitual e ferramental dada pela teoria da representação temática. A literatura periódica e a literatura de miscelâneas (que compila variedades temporariamente) estabelecem um outro ritmo de construção e de percepção do conhecimento.

Seria necessário rever o conceito de tempo e as formas de se conviver com a passagem das horas no século XIX para compreender os limites de uma teorização para a indexação neste século. Está aqui um dos pontos nucleares para estabelecer uma distinção com as práticas de identificação e de análise de assunto anteriores e posteriores ao oitocentos.

Podemos, de qualquer modo, pontuar que as máquinas miméticas trazidas pela revolução industrial e a urbanização mudam radicalmente as formas de medir e de distribuir a vida entre as frações de horas. A tarefa do indivíduo de perceber como ele se desenvolve biológica e socialmente é distinta após o século XVIII. O mundo da cidade e suas indústrias estabelecem uma nova forma de intensão e de extensão da vida.

Essas mudanças de percepção, no âmbito da construção da ciência, funcionam de maneira radical, do mesmo modo. Reconhecendo o ideal de uma linguagem oral para a transmissão da palavra filosófica, desde Platão ao correr do neoplatonismo do Medievo, e o rápido processo de apropriação da “palavra morta” (segundo a visão do filósofo da Academia), pós invenção das universidades, como elemento crucial para transmissão filosófica, percebe-se a profundidade de tais mudanças. O conhecimento se traveste na palavra escrita e a Bibliologia se desenvolve de maneira dinâmica a partir do século XIII.

A demanda por uma revolução tecnológica conduz à adaptação da prensa da ourivesaria, o que pode ser compreendido, no mundo bibliológico, como o verdadeiro início da revolução industrial, ponto de inflexão que pode ser encontrado em alguns historiadores. É preciso pontuar que a indexação, responde, deste modo, por um novo ritmo, uma nova velocidade, ou, até mesmo, por uma nova medida, no âmbito do oitocentos.

Os múltiplos e singulares saberes se espalham e os novos modos de conceituar o biblión, como a literatura periódica, estabelecem a demanda por uma teoria que acompanhe este movimento. A

noção de “tempo do conhecimento” imposta na ciência do oitocentos convoca uma teoria da “organização do conhecimento” voltada para este ritmo. A indexação, neste sentido, está ligada à resposta a um saber se pauta na atualização constante e nas novas descobertas técnico-científicas, que tomam o conhecimento como documentado.

5 A indexação no oitocentos: o conhecimento e as “cascas de nozes” lançadas no