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3 Livro da natureza, natureza do livro: os saberes e o “conhecimento” diante da “organização” na epistemologia biblioteconômica

O primeiro questionamento a se fazer na tradição central dos estudos hoje predicados como “da informação” é perceber que se faz, no campo, um uso da noção de conhecimento que se ora se estabelece distante, ora dentro da realidade continental dos artefatos tratados genericamente por documentos. Quando os sistemas bibliográficos apontam para classificação dos múltiplos saberes, tratamos de “organização do conhecimento”. Esta noção é ampla e nos coloca diante, em linhas gerais, do panorama geral dos estudos “da informação” na atualidade.

Este “conhecimento” é, portanto, não uma ideia de cunho metafísico ou uma problemática da consciência humana, mas, antes, uma relação entre as “novas ciências” da Modernidade, seus conceitos e suas formas de “materialização” e “legitimação” em documentos, onde tais conceitos são registrados e ganham o “mundo”. Para Hjorland (2008), a expressão “organização do conhecimento” tem um ponto de nascimento determinável.

The term KO originated in the library field. It seems to have been established around 1900 by people like Charles A. Cutter and Ernest Cushington Richardson and stabilized by W. C. Berwick Sayers and Henry Bliss. Bliss’ book (1929) The organization of knowledge and the system of the sciences represents one of the main intellectual contributions in the field. All of these authors argued that book classification is based on knowledge organization as it appears in science and scholarship. The best way to organize books in libraries (and document representations in bibliographies) was to make the library classification reflect a scientific classification which, in turn, was supposed to reflect the nature of reality (Hjorland, 2008, p. 97, grifo nosso).

É no século XIX que o “conhecimento” se confunde de vez com a noção de ciência empírica, ponto de vista comum entre os modernos. Deixamos de organizar “saberes”, para organizar aquilo que se produz na ciência. Os trabalhos anglófonos significados pela Library Science são sintomáticos neste sentido. É necessária uma teoria para pensar a dinâmica da ciência. O periódico científico é ali colocado como um dos elementos fundamentais para este desenvolvimento, tanto para a teoria biblioteconômica norte-americana, como para a teoria bibliológica de Peignot e a posterior teoria bibliológica e o pensamento bibliográfico de Paul Otlet.

Neste sentido, o “livro da natureza”, metáfora para a compreensão da virada da metafísica para a física na passagem Medievo-Modernidade, se confunde com o desenvolvimento de um corpo de saberes sobre a “natureza do livro”. Estes saberes se reúnem sobre o conceito de Bibliologia. E é no cenário do desenvolvimento dos saberes bibliológicos, como elaboração científica, que identificamos o rápido desenvolvimento de uma teorização sobre a representação temática. Estamos exatamente no contexto do oitocentos.

O século XIX é reconhecido palco de transformações sensíveis na sociedade ocidental. No âmbito político, o século se apropria das mutações dos setecentos, como revolução industrial, revolução científica e revolução francesa. Estas mutações terão influência direta nas recém- independentes colônias norte-americanas, que rápido absorverão os elementos técnicos, teóricos e políticos, respectivamente, das mutações citadas.

No âmbito filosófico-científico, podemos identificar uma ampla gama de acontecimentos que interferem no modo de pensar e nas práticas cotidianas dos indivíduos. As mutações político- científicas percebidas no século XIX levam à consolidação das bibliotecas públicas e ao aparecimento e desenvolvimento das bibliotecas especializadas, que expandirão a noção dos recursos trabalhados por bibliotecários, indo além dos artefatos bibliográficos. Essas bibliotecas terão vínculo com indústrias e institutos de pesquisa pura e aplicada, com foco em conteúdos atualizados para o desenvolvimento destas organizações (Serrai, 1975).

Peignot já abria o século apontando para as transformações científicas que se apresentavam e para o papel da Bibliologia neste contexto. É no século XIX que as ciências se especializam e é também ali que as especialidades da “organização do conhecimento” ganham “cores” distintas. A catalogação, a referência, a classificação, a legislação bibliológica, a administração e a indexação são práticas já emergentes como conceitos que se candidatam a saberes disciplinares.

É em 1877 que a Indexação como prática ganhará The Index Society, na Inglaterra, sob a direção de Henry Benjamin Wheatley, bibliógrafo e indexador, que escreveu o primeiro livro-texto em indexação: How to make an index, E Stock, 1902. What is an Index foi a primeira publicação da entidade, em 1878, que já contava com 170 membros pagando uma taxa de 1 guinéu ao ano. (Bell, 1997, p. 164). Percebe-se que a indexação terá papel direto na construção de uma ideia de sociedade e de uma ideia de ciência que transformará significativamente as noções vigentes. Miss Nancie Baily afirma:

The need for a good index is universally recognized, but the difficulty of getting one made in time by a person who has studied indexing as an art is often insuperable' (apud Bell, 1997. P.161).

A “natureza do livro” é aqui questionada. Desde o século anterior, como lembra Machado (1994), a Enciclopédia de Diderot e D’Alembert alterava a forma de pensar e de se “fazer” o livro. Com Mallarmé e Otlet, a desconstrução do conceito de livro, então fechado e pautado na unidade, é rápida e filosoficamente transformadora. Se para a ciência importa agora o livro da natureza, o livro, em sua natureza, não é mais o símbolo da ideia metafísica em sua forma e em seu conteúdo. Ele agora é também considerado como fruto da multiplicidade, reflexo da especialização dos saberes e da expansão dos microléxicos científicos.

4 O mundo é o assunto, o mundo está na “pele efêmera” do livro: a emergência