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4. A INICIATIVA DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA PARA O FENÔMENO

4.1 A Audiência Pública de Saúde realizada pelo Supremo Tribunal Federal em 2009

No ano de 2009 o Supremo Tribunal Federal convocou uma Audiência Pública com objetivo de trazer ao poder judiciário diferentes conhecimentos, análises e perspectivas acerca da intervenção judicial nos litígios que demandavam medicamentos e serviços de saúde de alto custo, intencionando que a questão fosse debatida entre advogados, defensores públicos, promotores e procuradores de justiça, magistrados, professores, médicos, técnicos de saúde, gestores e usuários do sistema único de saúde.

A Audiência Pública que fora prevista já nas leis 9.868/99 e 9.882/99 que disciplinam o processo e julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade, declaratórias de inconstitucionalidade e arguições de descumprimento de preceito fundamental, havia sido regulamentada pela então recente Emenda Regimental nº 29/200918 e dava competência ao Presidente ou Relator para convocar e ouvir depoimento de pessoas com experiência em determinada matéria, sempre que entendesse necessário o esclarecimento de questões com interesse público relevante.

No despacho de convocação19 a necessidade e o interesse público da realização da discussão foram apresentados considerando a existência de diversos pedidos de suspensão de medidas cautelares que determinavam o fornecimento de diferentes prestações de saúde por meio do Sistema Único de Saúde. As pretensões expostas no documento variavam entre medicamentos, vagas em UTI’s, cirurgias, tratamentos no exterior; contratação de funcionários dentre outros serviços. Todas elas tinham um elemento em comum: o pedido era feito em desfavor do poder público sob o argumento do dever de garantia de um direito fundamental.

Diante da variação de pleitos que chegaram a eclodir no Supremo Tribunal Federal a audiência pública foi aberta à sociedade civil, em geral com a convocação de especialistas em matéria de Sistema Único de Saúde, “objetivando esclarecer as questões técnicas, científicas, administrativas, políticas, econômicas e jurídicas relativas às ações de prestação de saúde” (BRASIL, 2009, p.2. Despacho de Convocação).

As linhas de discussão foram assim definidas:

18 Disponível em: http://www.stf.jus.br/ARQUIVO/NORMA/EMENDAREGIMENTAL029-2009.PDF 19 http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaSaude/anexo/Despacho_Convocatorio.pdf

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a) Responsabilidade dos entes da federação em matéria de direito à saúde; b) Obrigação do Estado de fornecer prestação de saúde prescrita por médico não pertencente ao quadro do SUS ou sem que o pedido tenha sido feito previamente à Administração Pública; c) Obrigação do Estado de custear prestações de saúde não abrangidas pelas políticas públicas existentes; d) Obrigação do Estado de disponibilizar medicamentos ou tratamentos experimentais não registrados na ANVISA ou não aconselhados pelos Protocolos Clínicos do SUS; e) Obrigação do Estado de fornecer medicamento não licitado e não previsto nas listas do SUS; f) Fraudes ao Sistema Único de Saúde (BRASIL, 2009, p.2. Despacho de Convocação).

Como é possível observar, já pela fixação dos eixos temáticos para a discussão proposta, a iniciativa dedicou-se a problematizar as funções e obrigações estatais e a organização do Sistema Único de Saúde sob aspectos diversos, ficando de fora da proposta debates acerca de demandas de saúde que envolvessem organizações privadas de proteção.

Importa destacar que já para delimitar o início dos debates o Supremo Tribunal Federal fixou um ponto de limitação da discussão e ao fazê-lo assumiu uma posição no diálogo que desde a abertura da audiência pública refutou o que o Ministro Gilmar Mendes, então Presidente do Supremo Tribunal federal, definiu como ―posições radicais que neguem completamente a ação do Poder Judiciário ou que preguem a existência de um direito subjetivo a toda e qualquer prestação de saúde‖ (BRASIL, 2009, p.10, notas taquigráficas de abertura).

Diante deste ponto de partida limitador colocado para a discussão, restou claro que todo conteúdo e debate da audiência pública não estava aberto a problematizar a legitimidade da atuação judicial em si nas demandas de saúde, uma vez que, como fixado, nestes casos, o Supremo Tribunal Federal já tinha como certa a inafastabilidade da jurisdição, no sentido de que não poderia o poder judiciário se eximir de atuar quando provocado pelo pleito de um direito à saúde.

Mas, como incontestável também foi dada a posição de que nem toda e qualquer prestação de saúde levada ao judiciário figuraria como um direito subjetivo passível de tutela e sobre este ponto esperava-se a contribuição dos gestores, profissionais e especialistas sobre o Sistema Único de Saúde.

Na abertura da audiência pública o Presidente do Supremo Tribunal Federal deixa evidente as contribuições esperadas pelo debate da organização política da saúde no Brasil:

Uma questão de fundamental importância diz respeito à divisão de competências no SUS. Quais são as conseqüências práticas do reconhecimento da responsabilidade solidária dos entes federados em matéria de saúde para a estrutura do Sistema e para as finanças públicas?

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Em relação à própria gestão do SUS e ao princípio da universalidade do Sistema, questionam-se se prescrições de medicamentos, subscritas por prestadores de serviços privados de saúde podem subsidiar as ações judiciais, ou se não se deveria exigir que a prescrição fosse de autoria de médico credenciado junto ao SUS e que o processo judicial fosse antecedido por pedido administrativo.

São questionamentos que comumente se colocam.

Quanto ao princípio da integralidade do Sistema, importa analisar as conseqüências do fornecimento de medicamentos e insumos sem registro na ANVISA, ou não indicados pelos Protocolos e Diretrizes Terapêuticas do SUS. Porque razão os medicamentos prescritos ainda não se encontram registrados? Haverá um descompasso entre as inovações da medicina e a elaboração dos Protocolos e Diretrizes Terapêuticas?

Há realmente eficácia terapêutica nos medicamentos não padronizados que vêm sendo concedidos pelo Poder Judiciário? Esses medicamentos possuem equivalentes terapêuticos oferecidos pelos serviços públicos de saúde capazes de tratar adequadamente os pacientes? Há resistência terapêutica aos medicamentos padronizados?

Por que, muitas vezes, os próprios profissionais de saúde do SUS orientam os pacientes a procurar o Poder Judiciário? São casos de omissão de política pública, de inadequação da política existente ou há outros interesses envolvidos?

O estudo da legislação do SUS permitirá distinguir as demandas que envolvem o descumprimento de uma política pública de saúde, das demandas que buscam suprir uma omissão do gestor de saúde, e como isso pode interferir na atuação do Poder Judiciário (BRASIL, 2009, p.8-9, notas taquigráficas de abertura).

Há, portanto, nítidas intenções de aproximação entre as contribuições da política pública de saúde e do Direito, deixando-se evidente, a princípio, que a discussão não deveria ser direcionada a uma incidência puramente política ou puramente jurídica que pudesse fundamentar ou não a falta de legitimidade política do poder judiciário ao tratar da questão, ou mesmo a necessidade jurídica de uma atuação constante e permanente.

Isto é, não caberia na discussão aquelas posições que em dois extremos de todo debate acerca do tema retirassem do poder judiciário o poder ou a função de intervir quando demandando por uma prestação de saúde, e, nem mesmo aquelas que defendam que toda prestação de saúde levada ao litígio se configuraria como um direito, e que assim sendo deveria ser garantido judicialmente sem objeções.

Essa limitação às posições extremas do debate apenas refletem o próprio fundamento da abertura de uma audiência pública. Nesta altura de posição institucional o poder judiciário já se via não só legitimado a atuar nos casos que demandavam prestações de saúde, como se deparava com inúmeros casos já decididos ou a decidir que envolvem em sua maior parte ―situações trágicas no julgamento do pedido de cada cidadão que reclama um serviço ou um bem de saúde, muitas vezes extremamente urgentes e imprescindíveis‖ (BRASIL, 2009, p.6, notas taquigráficas de abertura).

Em alguns casos, satisfazer as necessidades das pessoas que estão à sua frente, que têm nome, que têm suas histórias, que têm uma doença grave, que necessitam de um

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tratamento específico, pode, indiretamente, sacrificar o direito de muitos outros cidadãos, anônimos, sem rosto, mas que dependem igualmente do sistema público de saúde (BRASIL, 2009, p.6, notas taquigráficas de abertura).

Os debates foram organizados em 06 (seis) dias divididos por pertinências temáticas. No primeiro dia, o tema de debate foi o ―Acesso às prestações de saúde no Brasil – Desafios ao Poder Judiciário‖ tendo sido conduzido os debates por representações jurídicas do poder executivo; representações da gestão da saúde pública e do poder judiciário.

No segundo dia o tema colocado como eixo foi a ―Responsabilidade dos entes da federação e financiamento do SUS‖ verificando-se nesta fase maior representação por gestores de saúde pública bem como integrantes de conselhos representativos em saúde.

O próximo eixo de discussão foi a ―Gestão do SUS – Legislação do SUS e universalidade do sistema‖, onde os debates tiveram representações de vário setores, mas majoritariamente de representantes de setores executivos da política de saúde como será demonstrado de forma mais detalhada a seguir.

O quarto dia com o tema de ―Registro na Anvisa e protocolos e diretrizes terapêuticas no SUS‖ contou com especialistas e profissionais da área da saúde junto com representantes do poder executivo de diferentes setores visando levantar especificamente a incorporação de novos tratamentos e tecnologias pelo SUS e a articulação do sistema com a Agência Reguladora.

O quinto dia foi dedicado a discutir a relação entre a política pública e o direito ganhando o eixo temático de ―Políticas Públicas de Saúde – Integralidade do Sistema‖ e o sexto dia dedicou-se à ―Assistência Farmacêutica do SUS‖ onde a participação de organizações não governamentais se colocaram pela defasagem da lista de medicamentos do Sistema Único de Saúde e os órgãos governamentais após explicarem o procedimento de inclusão de novos medicamentos relataram a necessidade de avanços neste ponto.

Todas as variadas e algumas vezes divergentes falas e argumentos dos diferentes atores da discussão empreendida encontram-se disponíveis na página do Supremo Tribunal Federal na internet. Vários foram os estudos que analisaram os argumentos levantados naquela ocasião e a influência que os mesmos tiveram na tomada de decisões do judiciário após 2009.

Santos (2013), por exemplo, empreendeu uma extensa análise dos argumentos contidos nos 63 discursos proferidos na Audiência Pública de Saúde por meio da identificação de teses, proposta e dilemas levantados naquela ocasião, compilados a partir da reunião de argumentos idênticos em subcategorias e microcategorias com o objetivo de confrontar cada

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um destes argumentos com as decisões exaradas pelo Supremo Tribunal Federal a partir daquela ocasião, bem como com a Resolução 31 do CNJ.

Neste estudo, os 63 discursos analisados originaram 300 fragmentos que por sua vez geraram 705 argumentos, dos quais 146 foram considerados ―fortes‖ por terem sido incorporados nas decisões judicias e os demais considerados ―não fortes‖ haja vista a não incidência nos argumentos de tomada de decisão judicial (SANTOS, 2013).

Analisando os dados obtidos a partir da ―Teoria dos Sistemas‖ de Niklas Luhman Santos (2013) identifica que a Audiência Pública trouxe reflexos ao subsistema jurídico e provocou acoplamento estrutural de algumas irritações apresentadas na medida em que ―houve, parcialmente, a absorção de fundamentos acerca do sistema público de saúde‖ (SANTOS, 2013, p.159).

O ―acoplamento estrutural‖ apontado por Santos (2013) é dado como parcial uma vez que após a quantificação dos argumentos levantados em audiência e a confrontação dos mesmos com as principais decisões posteriores sobre o tema, se verificou que 20% dos argumentos expostos foram incorporados à prática decisória do judiciário, inferindo ainda ―que muitos deles estavam nitidamente revestidos da formalidade exigida pelo código do subsistema jurídico direito/não direito‖.

Sintetizando a ênfase dada pelo Supremo Tribunal Federal aos argumentos apresentados em audiência Santos (2013, p.156) aponta que mereceu destaque nas decisões posteriores o cuidado com as provas a serem apresentadas nos processos para identificar se a medida pretendida seria adequada ao paciente, bem como a necessidade de análise dos documentos médicos que devem ser fundamentados e produzidos conforme evidências científicas, protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas adotadas pelo SUS, bem como a aferição da existência de política pública que contemple o pretendido na ação judicial.

De todo os argumentos levantados, também se verificou que em decisões posteriores o Supremo Tribunal Federal adotou o entendimento de que o argumento da ―reserva do possível‖20

ou escassez de recursos por si só não pode eliminar a obrigação do

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O argumento da ―reserva do possível‖, surge nessa terminologia no Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, significando aquilo que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade. Determina que as prestações devam ater-se aos limites do razoável, e é aqui que entram os argumentos de ordem financeira. Uma boa definição é a de Queiroz (2006): ―Mas o que deverá entender-se por ―reserva do possível‖? Concretamente, a dependência desses direitos dos ―recursos disponíveis‖, querendo com isso acentuar a dependência dos direitos fundamentais sociais dos ―recursos econômicos‖ existentes e, designadamente, relevar a necessidade da sua cobertura orçamental e financeira. No mínimo, uma qualificação que se traduz no reconhecimento de que a inexistência de recursos económicos força os poderes públicos a fazer menos do que aquilo que em princípio se encontravam obrigados a fazer‖ (QUEIROZ, 2006, p.99).

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Estado (União, Estados, DF e Municípios) quanto ao fornecimento de prestações de saúde (SANTOS, 2013, p. 156)

Valle e Camargo (2011, p.21) lembram que após a realização da audiência pública as decisões21 do Supremo Tribunal Federal firmaram o entendimento de que todos os entes políticos que compõem no plano institucional a organização federativa do Estado brasileiro devem garantir o direito à saúde conforme art. 196 da Constituição Federal de 1988 sendo que o deferimento dos pedidos de prestações de saúde devem ser analisados de forma a considerar as especificidades do caso concreto levado ao judiciário e à existência ou não de uma política estatal que abranja a prestação de saúde pleiteada pela parte de forma a preservar a separação de poderes.

Em um estudo descritivo-analítico para identificar o conteúdo dos discursos proferidos na audiência Pública de Saúde Gomes et.al (2014, p.144) classificou os palestrantes da audiência pública por setor de representação, verificando que os gestores da saúde possuíam maior representação, sendo 10 (dez) de instituições federais, 03 (três) de instituições estaduais e 2 (dois) municipais. Os considerados operadores do direito foram 14 (quatorze), a assistência privada possuía 1 (um) representante, assim como a indústria. A sociedade civil foi considerada representada por usuários dos serviços de saúde em número de 7 (sete), de 5 (cinco) representantes das associações de profissionais de saúde e 8 (oito) representantes das instituições de ensino e pesquisa.

Analisando os discursos, a partir de três dos pontos de vista: favoráveis, contrários e aqueles que levantaram pontos negativos e positivos, Gomes et.al (2014, p.145) observa uma dicotomia de posicionamento entre usuários e gestores do SUS vez que os usuários se mostraram essencialmente favoráveis a judicialização, enquanto que, dos quinze representantes da gestão, onze se mostraram essencialmente contrários (Tabela 1).

21Nesse sentido são as seguintes decisões: AI nº 553.712/RS-AgR, Primeira Turma, Relator o Ministro Ricardo

Lewandowski, DJ de 19/6/09; Suspensões de Tutela (STA) nº 175, 211 e 278; Suspensões de Segurança nº. 3724, 2944, 2361, 3345 e 3355; Suspensão de Liminar (SL) n. 47, todas julgadas em 2010 e relatas pelo Ministro Gilmar Mendes.

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Tabela 1. Posicionamento em relação à judicialização na Audiência Pública de Saúde,

em valores absolutos.

Posicionamento em relação à judicialização Representação Essencialmente a Favor Essencialmente Contra Levanta pontos negativos e positivos Total 1. Usuário 6 - 1 7 2. Indústria - - 1 1 3. Gestor federal 1 7 2 10 4. Gestor estadual - 2 1 3 5. Gestor municipal - 2 - 2 6. Academia 3 2 2 8* 7. Operador de direito 5 4 5 14 8. Associação de profissionais 1 - 4 5 9. Assistência privada - 1 - 1 Total 16 18 16 21*

Fonte: GOMES, Dalila F. et al. Judicialização da saúde e a audiência pública convocada pelo Supremo Tribunal Federal em 2009: o que mudou de lá para cá. Saúde Debate. Rio de Janeiro, v. 38, n. 100, p. 139-

156, 2014. (Com adaptações)

Nota: *Um representante da academia não trouxe argumentos, nem a favor nem contra.

Ainda utilizando-se do estudo de Gomes et.al (2014), percebe-se que muitas foram as alternativas propostas para contornar as causas e os efeitos da judicialização no Brasil. O estudo revela que foram identificados 29 pontos de propostas de enfrentamento da judicialização, os quais, em conjunto foram citados 115 vezes por diferentes atores envolvidos como demonstra o Anexo A.

Da análise dos pontos levantados para contornar a judicialização se infere que as ações levantadas demandam a atuação dos três poderes: Executivo, Judiciário e Legislativo, apesar de não ter havido participação do órgão legislativo nos debates.

Gomes et.al (2014, p.148) mostram que as duas propostas mais citadas, mencionadas por aproximadamente um terço dos palestrantes, são aquelas ―relacionadas aos papéis desempenhados pelos órgãos federais de regulação da saúde (Anvisa e MS) e pelo Judiciário‖ identificando que os dois órgãos tomaram medidas intencionadas à considerar alguns dos argumentos citados.

Como observado, os argumentos e as propostas de ação foram várias e direcionados à diferentes atores institucionais (Anexo A). Assim, diante da impossibilidade de análise da implementação de todas as medidas levantadas e considerando não apenas o protagonismo do judiciário no direcionamento do debate, mas também o papel de destaque

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desta instituição para o desenvolvimento histórico do fenômeno da judicialização (conforme apontado no capítulo 1), este trabalho passa a analisar especialmente as medidas tomadas pelo judiciário através do Conselho Nacional de Justiça envolvendo a articulação de diferentes setores.