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3. O DIREITO A SAÚDE E AS PERSPECTIVAS TEÓRICAS DE ANÁLISE

3.1 O Direito fundamental social à saúde

Os direitos fundamentais são frutos de construções históricas que se consolidaram basicamente a partir da modernidade. Conquistados por meios de inúmeros conflitos ganham força com o Constitucionalismo (DIMOULIS; MARTINS, 2014).

São fundamentais, conforme pontua Sarlet (2008) tendo em vista relevância das posições jurídicas como tais consideradas para a ordem constitucional.

O sentido de direitos humanos ou fundamentais tem certamente suas fontes em processos históricos muito longínquos no tempo. Todavia, somente com as mudanças sociais, econômicas e políticas no trânsito da Idade Média para a idade Moderna é que assumem tais direitos significados mais precisos (SAMPAIO, 2004, p.141).

Quando Bobbio (2004) escreveu ―A era dos direitos‖, afirmou que os direitos não nascem todos de uma vez, mas quando devem ou podem nascer, e para apresentar estes momentos de nascimento dos direitos utilizou-se da tese histórica de ―gerações de direito‖.

A ideia de gerações parte de uma classificação baseada nas fases de reconhecimento dos direitos apresentada pelo francês Karel Vasak ao Instituto Internacional de Direitos do Homem em 1979, dividida, inicialmente, por este autor, em três gerações: a

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primeira, surgida com as revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII, valorizava o direito à liberdade; a segunda, decorrente dos movimentos sociais democratas e da Revolução Russa, dava ênfase à igualdade; e a terceira geração, resultado das duras experiências passadas pela humanidade durante a Segunda Guerra Mundial, refletindo o valor da fraternidade. (SAMPAIO, 2004, p.259).

Partindo desta ideia de gerações de direitos, é comum se deparar com leituras que classificam o direito à saúde como um direito social de segunda geração, porque na chamada primeira geração de direitos, teríamos direitos que se fundam numa separação entre Estado e sociedade, que permeia o contratualismo individualista dos séculos XVIII e XIX (SAMPAIO, 2001, p.260) e na segunda geração teríamos direitos sociais, econômicos e culturais, direitos de base social resultante da superação do individualismo, decorrente das transformações socioeconômicas do final do Século XIX e início do Século XX, e da demanda por condições sociais dignas, que, para existirem exigem uma ação positiva do Estado, uma prestação (BOBBIO, 2004).

Dito de outro modo, atribuiu-se aos direitos de primeira geração o caráter negativo; porque, numa concepção mais tradicional, impunham ao Estado apenas um dever de abstenção e de respeito à liberdade privada. Aos direitos de segunda geração, por sua vez, reconheceu-se a necessidade de atuação positiva, sendo então, denominados direitos prestacionais, já que seu exercício pelos cidadãos depende da atuação efetiva do Estado (OMMATI; DUARTE, 2011).

Entretanto, como argumentado em outra oportunidade, busca-se evitar esta interpretação dos direitos fundamentais a partir da ideia de gerações, pois, apesar de interessante em termos didáticos, pode levar ao entendimento de que toda a história dos direitos fundamentais significou nada mais que um somatório de direitos e que não houve reformulações de sentido a cada mudança de paradigma (OMMATI; DUARTE, 2011).

Pretende-se aqui afastar o entendimento de que a cada geração de direitos teríamos apenas um acréscimo, um mero acúmulo ou alargamento de direitos. Na verdade, esses direitos se encontram redefinidos a cada novo paradigma jurídico: A cada novo paradigma haveria necessidade de se redefinir, compatibilizar o sentido de um direito em relação aos dos outros e vice e versa (CATTONI DE OLIVEIRA, 2004, p.201).

Os direitos fundamentais sociais nascem em fins do século XIX e início do século XX, sendo sua subjetivação definida com mais clareza na Constituição do México em 1917 e de Weimar em 1919, tendo também como destaque a Declaração de Direitos Russa de 1918 com inspiração socialista. No Brasil, esse processo tem maior determinação a partir

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Constituição de 1934 (SAMPAIO, 2001; OMMATI; DUARTE, 2011; DIMOULIS; MARTINS, 2014).

Diante da maioria desses direitos implicarem a promoção do Estado, a alocação de recursos e formulação de políticas públicas, conforme pontuado acima, é comum se deparar com percepções que compreendem o direito à saúde como um direito positivo, cuja existência demanda necessariamente o investimento de recursos estatais e a elaboração de programas governamentais, constituindo-se, por isso, como uma norma programática.

Sobre tal aspecto, Mendes; Coelho e Branco (2015) explicam:

Os chamados direitos a prestações materiais7 recebem o rótulo de direitos a prestações em sentido estrito. Resultam da concepção social do Estado. São tidos como os direitos sociais por excelência. Estão concebidos com o propósito de atenuar desigualdades de fato na sociedade, visando ensejar que a libertação das necessidades aproveite ao gozo da liberdade efetiva por um maior número de indivíduos. O seu objetivo consiste numa utilidade concreta (bem ou serviço).(...) Quanto à estrutura das normas que os consagram, descobrem-se algumas particularidades relevantes.

Algumas normas constitucionais que veiculam direitos a prestação material possuem alta densidade normativa, no sentido de que estão enunciadas de modo a dar a perceber o seu conteúdo com a nitidez necessária para que produzam os seus principais efeitos, Não necessitam da interposição do legislador para lograr a aplicação sobre as relações jurídicas. Tais normas, que permitem imediata exigência pelo indivíduo da satisfação do que comandavam, veiculam os chamados direitos originários a prestação.

A maioria dos direitos a prestação, entretanto, quer pelo modo como enunciados na Constituição, quer pelas peculiaridades do seu objeto, depende da interposição do legislador para produzir efeitos (MENDES; COELHO; BRANCO, 2007, p. 249).

As normas programáticas8, por sua vez, são aqueles comandos normativos constitucionais que traçam linhas, programas, diretrizes, que funcionarão como comandos de

7 Os autores definem ―direitos a prestação‖ aqueles que exigem ação do Estado com a finalidade de cumprir as

condições materiais indispensáveis ao exercício pleno das liberdades. Classificam como direitos a prestação jurídica e direitos a prestações materiais como espécies do gênero, direito a prestação. (MENDES; COELHO; BRANCO, 2007),

8 A expressão ―normas programáticas‖ advém da classificação das normas constitucionais a partir de sua

aplicabilidade. A partir da década de 1950, na Itália, Vezio Crisafulli trouxe algumas inovações em relação à classificação até então existente. A discussão foi trazida ao Brasil por José Afonso da Silva, em 1967, através da obra Aplicabilidade das Normas Constitucionais. A partir de então, sustentou-se que, todas as normas constitucionais são aplicáveis, isto é, podem ser aplicadas à realidade concreta. O que as difere é, senão, o grau de eficácia ou os efeitos que a norma produz em sociedade. Sendo, pois, classificadas como normas de eficácia plena, que podem ser aplicadas imediatamente; normas de eficácia contida, são inicialmente normas de eficácia plena, podendo, entretanto, sofrer redução de sua eficácia por legislação infraconstitucional. Por fim, normas de eficácia limitada, que se caracterizam pela eficácia negativa, sendo divididas em normas de princípio de organização e normas programáticas. Enquanto aquelas criam órgãos ou instituições, estas definem objetivos políticos a serem implementados (OMMATI, 2016; SOUZA NETO, SARMENTO, 2014).

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orientação direcionados aos poderes públicos, especialmente ao legislador, para nortear a atividade legislativa futura9 (SOUZA NETO, SARMENTO, 2014).

Para Sarlet (2008), a definição de determinado direito como social não se restringe exclusivamente à atuação prestacional do Estado (ou ausência dela). Não há dúvidas que, os direitos sociais, justamente pelo momento social de seu advento, buscam promover a proteção e segurança social, funcionar como mecanismos de compensação de desigualdades. Porém, os direitos sociais também buscam proteger e assegurar espaços de liberdade aos cidadãos (SARLET, 2008).

Em complemento à percepção supra, uma das críticas mais expressivas sobre a distinção extremada entre direitos ―negativos‖ e ―positivos‖ está na obra dos norte-americanos Holmes e Sustein (2011): The Cost of Rights: Why Liberty Depends on Taxes, onde mostram os gastos dos Estados Unidos com direitos individuais, direitos negativos, concluindo que todos os direitos têm custos porque todos pressupõem o custeio de uma estrutura de fiscalização para implementá-los (HOLMES; SUSTEIN, 2011).

Com base nas discussões desenvolvidas pelos autores estadunidenses, Amaral defende que, o governo está obrigado pela Constituição a proteger e agir (AMARAL, 2001, p. 75), além disso, a identificação dos direitos sociais como positiva é artificial, haja vista que, há direitos sociais negativos, tais como o direito de greve e o direito de sindicalização (AMARAL, 2001, p. 81).

Todos os direitos possuem custos, porque pressupõem a existência de custeio e, no mínimo, uma estrutura de fiscalização para sua efetivação. Portanto, distingui-los com base nesse critério seria, no mínimo, ingênuo.

Ainda quanto ao conceito do direito à saúde, outro ponto relevante a ser destacado é a habitual limitação de seu sentido quanto ao fornecimento de medicamentos, como bem apresentou Pimenta (2016) em estudo sobre a judicialização da saúde no município de Campinas –SP.

9 Em que pese a força da teoria de José Afonso da Silva quanto à classificação das normas constitucionais a

mesma não está isenta de críticas. Neste aspecto, conferir OMMATI, 2016; SOUZA NETO, SARMENTO, 2014. Para Souza Neto e Sarmento, um primeiro aspecto que pode ser questionado é o caráter formalista da classificação, ao atribuir maior ou menor grau de eficácia às normas constitucionais com base em características textuais (semânticas). Como consequência, os autores constatam que a maior parte dos direitos sociais foi relegada ao campo das normas programáticas, em razão da abstração de seus enunciados linguísticos. Disso decorre que pode haver uma proteção deficiente aos direito fundamentais sociais. Os autores pontuam, então, ―(...) que a gradação dos efeitos das normas constitucionais não pode prescindir de uma análise material, em que considerações revestidas de conteúdo moral se tornam inafastáveis. (...) No contexto presente de reabilitação do uso prático da razão, o tema da eficácia normativa não pode continuar circunscrito a abordagens formalistas, devendo envolver também considerações substantivas e morais‖ (SOUZA NETO, SARMENTO, 2014, p.374). Nessa mesma linha, conferir OMMATI, 2016.

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Nesta pesquisa, o tratamento da política de saúde como uma política de medicamentos pode ser percebido, muitas vezes pela própria confusão dos termos dentro dos documentos normativos formulados para orientação dos Tribunais, bem como pelo evidente destaque dado aos procedimentos de dispensação, registro e similaridades dos medicamentos.

A questão que se impõe na definição do conteúdo do direito à saúde para este trabalho é que o mesmo é efetivo por meio de políticas públicas, daí porque é imprescindível problematizar esse processo de formulação, seu sentido dentro das construções atribuídas à política pública e como o judiciário tem se portado frente à esta classificação.