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Aulas de Holly – segundo semestre de 2014

CAPÍTULO 2: TERRITÓRIOS DA PRÁTICA

2.1 Diários de trabalho: procedimentos diversos e princípios em comum

2.1.1 Aulas de Holly – segundo semestre de 2014

17 de setembro de 2014

Hoje a Holly comentou uma coisa bem interessante na aula: sobre a valoração que damos a certos movimentos em detrimento a outros numa sequência que, muitas vezes, pode des-potencializar o conjunto, ou criar um borrão, uma sujeira, uma falta de presença durante a atuação.

Estávamos fazendo uma daquelas sequências longas, no final da aula, que começava com um developpé e um grand battement lateral (figuras 13 e 14) para

depois percorrer o espaço com torções e mudanças de nível, bem mais complexas do que aqueles simples movimentos do início. Mas ela disse: Ás vezes vocês não

valorizam este primeiro movimento e pensam 'ah, é só um grand battement… mas

5 O Programa de Estágio Docente – PED - é fomentado pela FUNCAMP/UNICAMP e tem o objetivo de oferecer aos alunos de pós-graduação a oportunidade de realizarem atividades de estágio supervisionado nas disciplinas dos cursos de Graduação da Unicamp. Durante o ano de 2015 eu fui bolsista do programa e atuei como estagiária nas disciplinas de Técnica VI: Variação e exploração e Técnica VII: Expressão e integração, ministradas e supervisionadas pela Profº. Drª. Holly Cavrell.

6 Após a finalização das atividades do Programa de Estágio Docente, propostas nas disciplinas da Graduação em Dança, eu convidei as alunas que tivessem interesse para participar de um grupo de estudos, sob a minha coordenação, no período extra-curricular, e também recebi alunas de outros cursos de Graduação da Unicamp e colegas artistas de outras áreas, residentes em Barão Geraldo, Campinas,SP. Durante 2015 e 2016, fizeram parte deste coletivo: Isadora Massoni, Marina Tenório, Léa Nasca, Yandara Pimentel, Amanda Ferreira e João Casimiro.

não! Ele é a sua preparação para o que virá depois, construa a sua presença desde aí!

Eu gosto disso porque nos remete à concepção de que qualquer movimento, por mais banal e simples, pode ser dança, de que não há uma escola, ou uma forma a ser priorizada, mas sim a presença, a expressividade, a maneira de fazer. E isso é um treinamento tanto técnico quanto expressivo!

Uma outra coisa que ela comentou depois foi: Vocês parecem estar

dançando na frente de um espelho. Ampliem seu foco, olhem o espaço, as pessoas ao seu redor. Realmente, eu já tinha até me irritado nesta aula por causa da má

distribuição e organização das pessoas no espaço. E percebi como o foco delas estava envidraçado, morto, elas não estavam vendo nada, nem ao redor, nem à sua frente! Seus corpos estavam bidimensionais. É impressionante o efeito que o foco do olhar pode ter. Nem que seja por um procedimento bem simples, descomprometido com a representação ou interpretação. Mas só o fato da pessoa olhar e perceber o que vê naquele exato instante, já cria um estado de presença, de simplesmente estar onde se está.

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Aqui, percebo que há várias camadas de atenção misturadas. Ao relembrar o comentário de Holly sobre nosso movimento inicial como uma preparação para o que virá depois e a orientação de construir nossa presença a partir daí, observo a sua intenção de instigar o intérprete a se colocar neste fluxo de busca e de criação, dentro do treinamento. Na sua abordagem técnica, um grand battement nunca é um simples grand battement, nunca é só um movimento codificado, padronizado, que se reproduz de forma mecânica. O intérprete é estimulado a recriar em seu corpo este grand battement, conectando-o à sua expressividade particular e apropriando-se do movimento, tornando-o sua própria criação/recriação. Esse processo não é guiado simplesmente pelos sentimentos que eu estabeleço com meus movimentos; ou seja, eu não me aproprio somente daquilo de que gosto, da maneira que se parece mais confortável para mim, mas desafio-me em dar fluxo e vida também aos movimentos que, a princípio, não me despertam Figura 14_Ensaio fotográfico, 2015, Departamento de Artes Corporais (foto Leo Lin)

nada em especial, ou que são desconfortáveis e estranhos para mim. Nessa abordagem técnica, todo e qualquer movimento pode ser um material de exploração; por mais simples que seja, sempre haverá algo a mais para ser experimentado, e essa investigação parte do próprio intérprete.

Ainda em relação a esse comentário do diário, também identifico aquele princípio fundamental do trabalho de Holly sobre a ideia de não julgar e de estar aberto para que as linguagens integrem-se no corpo, sem ter de hierarquizar, mas priorizando uma por vez. Ou seja, este grand battement não será o mesmo em uma aula de balé ou em uma aula de dança moderna, e nem será o mesmo de um dia para o outro ou de um corpo para o outro. O que se repete aqui não é a semelhança desse movimento com seu padrão de referência original, mas é sua própria diferença. A natureza de impermanência da dança, sobre a qual Holly estabelece seus princípios de trabalho, manifesta-se novamente aqui e dialoga com as percepções de Hubert Godard sobre as formas de expressão na dança e sobre as transformações de sentido que o gesto do bailarino pode produzir.

A dança é o lugar, por excelência, que faz visível o turbilhão em que as forças da evolução cultural se afrontam, produzindo, controlando ou censurando as novas atitudes de expressão de si e de impressão do outro. Desse modo, o gesto e sua captação visual se apoiam em fenômenos de infinita variedade que impedem toda esperança de reprodução idêntica.(…) Uma variação mínima da parte do corpo que inicia o movimento, os fluxos de intensidade que o organizam, a maneira que o bailarino tem de antecipar e de visualizar o movimento que irá produzir, tudo isso faz com que uma mesma figura não produza um mesmo sentido. (GODARD, 1995, p.12) (GODARD, 1995, p.11)

A abordagem técnica de Holly faz-nos questionar, no próprio corpo, como é este grand battement hoje. Cada contexto, cada ambiente, sugere uma qualidade de presença, um estado de atenção, de tensão, de relaxamento, um tratamento diferente com a forma e diferentes graus de rigor e de flexibilidade. Portanto, cabe ao intérprete a escolha de conduzir sua prática de modo a potencializar sua experiência com o treinamento, em cada situação, abrindo-se para explorar a

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elasticidade de seus recursos técnicos e expressivos. Esse determinado estado de atenção e de presença é que irá produzir as alterações na expressividade dos movimentos, como aponta Godard, ao lançar luz para o sentido que o gesto do bailarino carrega, desde seus micromovimentos internos, provocados pela ação dos músculos do sistema gravitacional, que acontecem antes mesmo da materialização das figuras corporais no espaço.

As resistências internas ao desequilíbrio, organizadas pelos músculos do sistema gravitacional, vão induzir a qualidade e a carga expressiva de um gesto. O aparelho psíquico se exprime através do sistema gravitacional e é por seu intermédio que carrega o sentido do movimento, modulando-o e colorindo-o de desejo, de inibições, de emoções. O tônus resistente do sistema gravitacional se instala antes mesmo do gesto, desde o momento em que formula o projeto de uma ação e, portanto, sem que o indivíduo se dê conta e antes de atingir sua consciência em estado de vigília. É por essa razão que os profissionais do movimento, os dançarinos em particular, sabem que, para melhorar, modificar ou diversificar a qualidade do gesto, é preciso atingir todas as suas dimensões, inclusive o pré-movimento que somente o acesso ao imaginário permite tocar (GODARD, 1995, p.19).

É interessante observar que esse conceito de pré-movimento, apresentado por Godard, não só se condiciona à organização dinâmica do corpo em relação ao próprio peso e à ação da gravidade, mas também manifesta uma dimensão psíquica, inconsciente, interna, que afeta e é afetada pelas emoções e pelas reações provocadas no contato com o meio. Portanto, “é o pré-movimento, invisível, imperceptível para o próprio indivíduo, que acionará, simultaneamente, os níveis mecânicos e afetivos de sua organização” (GODARD, 1995, p.15). Penso que a apreensão desse conceito no treinamento pode auxiliar no desenvolvimento de uma qualidade de presença e de percepção dos aspectos invisíveis que atravessam o corpo do bailarino e que atuam na produção de sentido e na expressividade dos seus movimentos. Para concluir, aponto o trabalho com o foco do olhar, que aparece como uma estratégia pessoal para exercitar a capacidade de estar presente, e de afetar e ser afetado, de se conectar com o outro. Pode ser um procedimento muito

simples, concreto e objetivo, que não exige nada além de uma consciência do espaço ao seu redor, mas é capaz de modificar até mesmo a qualidade formal do movimento, promovendo maior precisão, clareza e amplitude dos gestos (figuras 15 e 16). Nesse sentido, Godard também comenta sobre o potencial da percepção visual em relação ao estado corporal que se experimenta ao observar a dança:

O visível e o cinestésico, absolutamente indissociáveis, farão com que a produção de sentido no momento de um acontecimento visual não deixe intacto o estado de corpo do observador: o que vejo produz o que sinto e, reciprocamente, meu estado corporal interfere, sem que eu me dê conta, na interpretação daquilo que vejo. (GODARD, 1995, p. 24)

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Acredito que esse pensamento também seja válido para compreender o estado de percepção e de observação de si e do outro ao qual o bailarino precisa recorrer para evoluir no espaço enquanto dança, e na utilização do foco do olhar como mais um recurso para ampliar suas percepções corporais e atingir a conexão com o outro.

...outro dia... em setembro de 2014

Mais uma vez, na sequência final em deslocamento pelo espaço, iniciávamos com o mesmo movimento de grand battement e a Holly fez um comentário muito interessante. Naquele dia, todas nós estávamos muito concentradas nos detalhes técnicos, no alinhamento da bacia e no posicionamento correto da articulação coxo- femural. Havia um certo enrijecimento, e era como se estivéssemos dançando com o

freio de mão puxado, como se algo segurasse o fluxo do nosso movimento,

impedindo-nos de liberá-lo para atravessar o espaço. A Holly parou o exercício e falou: Meus queridos, o que é este movimento pra vocês? Se vocês fossem explicar

para uma criança, o que vocês diriam? Faça um Grand battement? Não, vocês

tentariam descrever de outra forma. Como vocês descreveriam este movimento? Um lançamento, jogar a perna, furar o espaço, apontar… Vocês devem investigar o que os move, qual é a sua intenção neste movimento, tragam alguma imagem ou sensação, alguma ideia e só então se movam. Descubram ou criem o que é este movimento para vocês. Então, naquele momento, ela estava tentando abrir nossa

percepção para o preenchimento daquela forma, estimulando a investigação de estratégias pessoais para se conectar àquilo que estávamos realizando, integrar as diversas camadas de percepção, estar presente e vivo, mesmo quando realizamos um movimento extremamente codificado e conhecido. Ela estava chamando a nossa atenção para o nosso estado de presença durante o exercício, como um fator que pode alterar a qualidade do movimento, e de como isto também faz parte da técnica.

Ainda sobre a ideia de estar aberto para que as linguagens integrem-se no próprio corpo, sem ter de hierarquizar, mas sabendo discernir as diferenças em cada momento, observo também uma postura do corpo diante de cada abordagem técnica. No trabalho de Holly, que tem como referência a dança moderna americana, é comum realizarmos alguns movimentos codificados que vêm da técnica Graham ou Humphrey e que, por sua vez, também lidam com a referência de diversos códigos do balé clássico. Porém, esses movimentos são abordados de um modo bem diferente em cada um destes trabalhos. Às vezes, nas aulas de Holly, também fazemos sequências na barra, utilizando esse procedimento como uma variação moderna e contemporânea da estrutura do balé clássico. Entretanto, ao nos depararmos com os códigos de uma determinada linguagem, costumamos realizar esses movimentos a partir das referências que trazemos de experiências anteriores. A memória corporal manifesta-se de forma muito direta e, por isso, temos a tendência a repetir esses códigos sempre da mesma forma. Percebo que Holly procura sempre atualizar a maneira de realizar cada movimento; ela nos estimula a que nos ressensibilizemos em relação àquelas formas e àqueles padrões conhecidos e que encontremos outros modos de fazer os mesmos movimentos. Nesse processo, cada bailarino deve encontrar suas próprias estratégias para dar sentido às suas ações e torná-las vivas, presentes, preenchidas com sensações, com imagens, ou com qualquer intenção que não seja puramente mecânica. Isso é técnica-em-vida! Ou seja, além da preocupação com o aprimoramento de habilidades físicas – os aspectos visíveis nos movimentos – o bailarino também

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precisa buscar o aprimoramento dos caminhos do sensível – dos aspectos invisíveis em sua atuação –, que são capazes de transformar a qualidade de sua presença e de sua expressividade.

Nesses diários também fica claro o princípio de autonomia do intérprete, com o qual Holly aborda a técnica. Ela procura nos estimular nessa investigação pessoal, na busca por uma conexão pessoal com aquilo que realizamos. Em suas aulas, as sequências de movimentos são iguais para todos, mas cada um deve encontrar sua própria maneira de dançar, fazendo as escolhas possíveis dentro da formalidade de uma estrutura. Holly não nos dá as imagens e as sensações de cada movimento, ela oferece uma estrutura e uma série de elementos objetivos que podem compor diversas camadas de percepção; mas o trabalho de preencher as formas e de se apropriar dos movimentos, conectando e articulando essas informações no corpo, é uma responsabilidade do intérprete criador. Por isso eu falo tanto em estratégias pessoais de treinamento, pois o intérprete criador se torna realmente autônomo quando é capaz de transitar por diversos contextos de treinamento e de atuação e trabalhar com diferentes profissionais, mas mantém uma integridade e coerência em seu próprio trabalho corporal.

2.1.2 Treinamento Pessoal – primeiro semestre de 2015