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Treinamento Pessoal – primeiro semestre de 2015

CAPÍTULO 2: TERRITÓRIOS DA PRÁTICA

2.1 Diários de trabalho: procedimentos diversos e princípios em comum

2.1.2 Treinamento Pessoal – primeiro semestre de 2015

23 de fevereiro de 2015

Hoje, segunda-feira, dia 1 no diário. Sempre voltando ao dia 1... Há tanta coisa a fazer... Sei que começo metódica, me impondo alguns limites para poder me soltar. Escutar o próprio corpo e gerar movimento, simples assim. Abrir espaços.

Eu estava bastante fragmentada, meu corpo, meus pensamentos. O mais difícil são as transições, e também manter o fluxo correndo, continuidade, sem parar. Dilatar o tempo, fazer ele correr a meu favor. Quando estou ansiosa os pensamentos ficam fragmentados, entrecortados, então o corpo e o trabalho também ficam assim. A gente gasta um monte de energia para não criar nada, fica só tagarelando, e o corpo vai tagarelando junto.

É muito importante, especialmente no início, ter bastante calma e tranquilidade, é preciso estar atento aos detalhes, a cada parte do corpo, cada

micromovimento, estar presente na sensação, na percepção. É preciso dilatar o tempo para caber todas estas camadas de atenção.

24 de fevereiro de 2015

Hoje o tempo correu diferente. Dei início com bastante calma. Respiração e alongamento. Fiz também vários exercícios de pilates e algumas posições sentadas de yoga. Fui sentindo as necessidades. De pé também fiz umas sequências ritmadas, trabalhando um pouco o centro, o peso, a base dos pés e a soltura da cintura escapular, com transferências de apoio. Foi ótimo, curti bem. E então fui para a outra parte.

Trabalhei com o procedimento do sequenciamento articular: movimentar uma vértebra de cada vez e ir acrescentando as outras articulações aos poucos, até integrar o movimento do corpo todo. Deu muito certo. Primeiro porque eu não estava preocupada com o tempo, a ideia era abrir espaços. Percebi que minha respiração estava um pouco presa, então procurei trabalhar abrindo mais a garganta e as narinas, e fui bem minuciosa na soltura de cada articulação. A proposta de soltar também as articulações do crânio é fantástica, preciso fazer isto mais vezes. Eu senti até que valia começar por aí, junto com as duas primeiras vértebras, atlas e áxis. Os olhos também podem vir no início da próxima vez.

Os pés e as mãos estavam bem vivos, e com isso também veio melhor o olhar. Meu cabelo soltou e eu usei isso como um estímulo para projetar ainda mais precisamente o meu olhar. Também sinto que às vezes, quando eu lembro de dar atenção para o olhar, tenho a tendência a cristalizar numa única qualidade de foco: precisa, direta, fixa. Realmente é necessário aprimorar este trabalho, explorando com mais tempo as diferentes possibilidades deste foco do olhar.

Ao fim foi bom lembrar do princípio de ser livre, brincar, brincar e brincar. Isto até mudou um pouco a intenção do meu olhar. Tornou-se menos rígido e mais flexível, mais espontâneo (figuras 17 e 18).

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Nesses primeiros diários de treinamento pessoal, percebo que estava muito concentrada em encontrar uma harmonia entre a estrutura, a disciplina e o rigor da minha prática com a possibilidade de abrir espaços para deixar o corpo expressar-se em um fluxo livre e espontâneo. Eu estava explorando essa relação entre a técnica enquanto suporte, elemento que sustenta e que oferece uma base segura, e a expressividade como uma abertura para a exploração das percepções, do estado de presença, da conexão com os aspectos invisíveis que me atravessam. Essas questões, relacionadas à articulação entre o trabalho técnico e expressivo durante a prática, permaneceram comigo do início ao fim do processo de treinamento e estiveram constantemente fazendo-me atentar para as diferentes necessidades de treinamento que surgiam a partir de cada contexto e em cada momento do trabalho. A questão da administração e da relação com o tempo, que Figura 18: Ensaio fotográfico, 2015, Departamento de Artes Corporais (foto Leo Lin).

aparece enquanto uma necessidade fundamental, retoma uma reflexão acerca da abordagem técnica de Holly sobre o estado de impermanência da dança. Naquele momento, em que eu estava dando início ao meu processo de treinamento pessoal, preocupada apenas em abrir espaços e entrar em fluxo, havia a necessidade de dilatar o tempo, de permitir-me prolongar na exploração minuciosa dos detalhes, com muita calma. Em outro momento, porém, outras necessidades podem surgir, para impulsionar o corpo em busca de novas potencialidades e ampliar os limites do que é conhecido. Nesse sentido, o treinamento sugere uma dinâmica em constante transformação, numa espiral em que as necessidades surgem a partir de um determinado contexto e, mesmo depois de terem sido ultrapassadas ou esgotadas, podem ressurgir de novas maneiras, provocando uma adequação contínua dos procedimentos de acordo com as urgências que se manifestam ao longo do processo.

02 de março de 2015

Ensaio sobre o tempo. Ainda estou trêmula, em vibração.

Como é possível dilatarmos o tempo com nosso corpo?

Hoje eu fiz pilates, fiz yoga, e fiz a aula da Holly. Quando cheguei para o ensaio, meu aquecimento foi o exercício de purificação. Fiquei 15 minutos, sem nem perceber. Em seguida fiz o sequenciamento articular. Cheio de tempo também, bem demorado e despreocupado. Corpo em fluxo, pensamento em fluxo. E lá pelas tantas eu me dei conta de como estava firme na base, de como meu corpo estava bem sustentado, com o centro bem ativo e os membros seguramente livres. Isto só foi possível por causa de todo o meu dia hoje. Vir de bicicleta para a Unicamp, fazer abdominais, grand-pliés. Por causa desta instrumentalização foi possível entrar em fluxo, sem precisar pensar na musculatura que me auxiliaria a ficar em pé.

Investigo estratégias para atingir determinados estados de fluxo, de integração, de presença, de vida. Mas não há nenhuma garantia de que vou atingi-los por meio destas estratégias. E parece que quando atinjo um estado potente, ele na verdade esteve sempre comigo, em mim. Fui eu que não percebi antes.

É como o corpo sem órgãos. A ele nunca se chega, está-se sempre em busca. Mas ele existe, pré-existe, embora seja preciso criá-lo. Ele existe num plano virtual. O que fazemos é atualizá-lo. Mas a cada atualização, uma criação. Esta é a dinâmica do treinamento. Eu me exercito nesta brincadeira de criar, embora tudo o que eu crie já esteja presente antes mesmo de eu começar. É um movimento de descoberta, reencontro consigo mesmo e suas energias potenciais.

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Eu continuo investigando a harmonia entre o trabalho técnico e a exploração expressiva, mas busco escutar mais as próprias necessidades daquele momento e entregar-me para a inventividade e para a possibilidade de manter ou de alterar rotas previamente planejadas. Começo a fazer mais experimentações, mantendo alguns procedimentos, suprimindo outros e alterando ou criando novos e vou abrindo a minha percepção para os diversos elementos, que podem compor meu treinamento. Aqui, também expresso a minha insegurança em relação à investigação de procedimentos desconhecidos, sem nenhuma garantia de resultado, e, ao mesmo tempo, a entrega para a criação de novas estratégias, num fluxo de descoberta.

9 de março de 2015

Como dizer isso? É um paradoxo.

Só poderia descrevê-lo em silêncio, em forma de água, de ar.

Estou trabalhando ainda o centro motor e a respiração associados à mobilidade das articulações e as qualidades 'denso e suave'. Mas hoje percebi o quanto preciso me abrir, me entregar ao não-movimento, à não-ação, à ausência de intenção. Trabalhar sozinha é um mergulho profundo em si mesmo e nesse mergulho, às vezes a gente perde a referência e esquece o que estava fazendo e o porquê, entra naquele vazio mesmo, a gente entra num automático, numa ausência de si. Eu queria estar presente, aqui e agora, consciente, mas por outro lado, não queria cristalizar ações.

Comecei o trabalho com um longo aquecimento no chão, meu corpo estava precisando. Tomei bastante tempo para alongar com calma, e me preparar para a exploração do movimento. Sou bem metódica, racional, faço meus exercícios de pilates com bastante foco e concentração, procurando ser muito precisa em cada ação. E neste momento penso o quanto nós, bailarinos, podemos transformar nosso corpo em máquinas extremamente fortes e precisas, em como temos a capacidade de controlar, de dominar o corpo. Mas hoje, neste trabalho inicial de abrir espaços, senti a necessidade de despertar o outro lado, como se, invés de dançar, o meu corpo fosse dançado, invés de agir, eu reagisse, invés de controlar, eu pudesse me entregar.

Tenho refletido muito sobre uma certa qualidade de disponibilidade, de permeabilidade que percebo como uma grande potência no trabalho artístico corporal. Procuro então receber o espaço com os olhos, mais do que direcionar ou projetar alguma intenção com o foco do olhar. Procuro observar, perceber, sentir o fluxo do meu próprio corpo, sem querer produzir ou realizar nada, apenas deixando o movimento fluir. E isso não representa menos trabalho não! Pelo contrário, tudo se

torna mais importante, cada detalhe numa lupa, o corpo se expande em todas as suas moléculas. E é preciso sensibilidade para dançar com este corpo permeável. Não se pode manipulá-lo de qualquer jeito, pois ele pode facilmente cristalizar e enrijecer novamente.

A intensidade aí está na leveza, na não-ação, no silêncio, no nada. Para expressar-se, para tornar visível – produzir uma manifestação visível do que é ou está invisível em nós – é preciso também ser capaz de impressionar-se, de receber, de perceber, e deixar aquilo entrar. Abrir o olhar, abrir a mente, abrir o coração. Não só para “pôr pra fora” mas também para “pôr para dentro”. Há que ser uma troca, uma respiração, uma passagem.

Esse diário marca um ponto importante dentro do percurso prático da minha pesquisa, pois apresenta o momento de descoberta de um princípio de trabalho que me acompanha desde que comecei a experimentar um treinamento pessoal. Esse princípio de disponibilidade, de permeabilidade, é a capacidade de o intérprete não somente dar, mas receber, é o além de afetar, é o também ser afetado por tudo o que compõe uma experiência, pelo próprio movimento, pelo espaço, pelo outro. É um estado de presença com uma qualidade permeável, receptiva, aberta, que exige um esforço diferente daquele em que controlamos ou dominamos o próprio corpo, fazendo-o agir de forma condicionada e utilizando-o como instrumento ou ferramenta. Esse esforço de abertura das percepções coloca- nos no lugar de espectadores das nossas próprias ações, de verdadeiros pesquisadores, de exploradores, ampliando as possibilidades e os limites do território conhecido, o que é fundamental se quisermos pensar uma formação para artistas criadores. É uma dinâmica de troca em que nada é previsível e tudo o que é espontâneo permanece e transforma-se, em que há sempre algo que passa, algo que fica e, às vezes, algo que bloqueia.

Retorno ao princípio da compreensão do teatro como arte do encontro, como experiência que acontece entre ator e espectador. Nesse sentido, o artista é uma passagem, um intermediário, um canal, e a experiência é produzida através dessa rede de conexões cinestésicas, em que bailarino, espectador e ambiente atravessam-se, afetando e deixando-se afetar por sensações e percepções que transformam o sentido do que se vê em cena, como explicita Godard:

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São os fenômenos complexos da percepção que, ao controlar as rédeas do movimento, permitem chegar à compreensão dos processos que se operam no momento em que somos espectadores de dança. O movimento do outro coloca em jogo a experiência de movimento própria ao observador: a informação visual provoca no espectador uma experiência cinestésica (sensações internas dos movimentos de seu próprio corpo) imediata. As modificações e as intensidades do espaço corporal do dançarino vão encontrar ressonância no corpo do espectador. (GODARD, 1995, p. 23).

Portanto, o artista é aquele que deve trabalhar com suas percepções, a fim de encontrar ressonância com as percepções do espectador e do ambiente em que atua. Em seu treinamento, ele deve abrir espaço para entrar em contato com estas microssensações e atuar numa composição com as forças visíveis e invisíveis que o atravessam. Para descrever essa postura de abertura do artista criador, Paul Klee utiliza a metáfora da árvore, comparando o artista ao tronco, que serve de passagem para que a energia vital da terra, absorvida através das raízes, possa chegar à copa, e ser distribuída para todas as folhas verdes.

Dessa raiz afluem para o artista as seivas vitais que vão passar através dele e através de seus olhos. Portanto ele ocupa o lugar do tronco. Pressionado e movido pelo poder daquele fluxo, ele encaminha o que foi vislumbrado para a obra. (…) Contudo, ocupando o lugar que lhe cabe – no tronco da árvore – tudo o que faz é recolher e encaminhar aquilo que vem das profundezas da terra. Não servir nem dominar: apenas comunicar. Portanto ele assume uma posição realmente humilde. E a beleza da copa não lhe pertence, apenas passa através dele. (KLEE, 2001, p. 52)

2.1.3 Intensivo Temático com Renato Ferracini