• Nenhum resultado encontrado

Técnica & expressividade na formação de uma intérprete criadora

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Técnica & expressividade na formação de uma intérprete criadora"

Copied!
103
0
0

Texto

(1)

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

PAULA TELLES D'AJELLO

TÉCNICA & EXPRESSIVIDADE

NA FORMAÇÃO DE UMA INTÉRPRETE CRIADORA

CAMPINAS 2016

(2)

TÉCNICA & EXPRESSIVIDADE

NA FORMAÇÃO DE UMA INTÉRPRETE CRIADORA

Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestra em Artes da Cena - Teatro, Dança e Performance.

ORIENTADOR: HOLLY ELIZABETH CAVRELL

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA

ALUNA PAULA TELLES D'AJELLO, E ORIENTADA PELA PROFª. DRª. HOLLY ELIZABETH CAVRELL

CAMPINAS

(3)
(4)
(5)

Dedicatória

Dedico esta pesquisa às minhas professoras e alunas de ontem, hoje e amanhã.

Que eu possa dançar, aprender e ensinar por muitas vidas ao lado de minhas companheiras.

(6)

À minha família, em especial à minha mãe, Néli Telles D'Ajello, e ao meu pai, Paulo César Tettamanzy D'Ajello, pela própria vida e pelo apoio afetivo e material que tornou possível exercer minha missão na dança. Também ao meu irmão, Luis Fernando Telles D'Ajello e sua esposa, Nathália Dias D'Ajello, irmã que a vida me deu, por serem pilares de amor em minha formação.

À minha mestra, professora, diretora, orientadora e amiga, Holly Cavrell, por sua imensa capacidade de enxergar a dança e o intérprete em sua potência criativa. Pela extrema generosidade no compartilhamento de sua vasta experiência e no modo como trata todas as pessoas ao seu redor. Ela me ensinou que, apesar do rigor e da disciplina, a dança pode ser uma aventura excitante e transformadora

Ao mestre, professor, provocador, colaborador e amigo, Renato Ferracini, pela mesma generosidade em compartilhar experiências e por se colocar como um explorador ao lado de seus orientandos, numa postura sempre disposta a ir ao encontro da diferença como potência positiva. Renato mostrou-me um caminho infinito de conhecimento e de percepção que redimensionou minhas perspectivas sobre a arte e a expressão.

Aos colegas e parceiros de estudos, Maitê Lacerda, André Sarturi, Fausto Ribeiro e Thiago Xavier, que contribuíram com inúmeras sugestões, reflexões, questionamentos, participações, com seu acolhimento racional e afetivo, naquelas horas em que só havia uma solução: sentar numa mesa de bar e trocar ideias.

Às parceiras de dança, de batucada, de conversa, de sonhos e de receitas, Isadora Massoni, Marina Tenório, Lea Nasca, Yandara Pimentel, Amanda Ferreira e também ao parceiro de ritmo e som, João Casimiro, que compartilharam o processo de treinamento proposto no Grupo de estudos. Pela sua disponibilidade, abertura e entrega para a experiência, pela dedicação e confiança no trabalho e pela oportunidade que me deram de revelar, através de seus corpos, a potência que eu desconhecia em minha própria pesquisa.

Ao coletivo de colegas, professores, funcionários do Instituto de Artes, do Departamento de Artes Corporais e do Lume Teatro, sedes da minha formação

(7)

artística e pessoal durante dez anos de vivências e aprendizados na cidade de Campinas, em Barão Geraldo.

(8)

vez, mergulho que abrange a compreensão e sobretudo a incompreensão. E quem sou eu para ousar pensar? Devo é entregar-me. Como se faz? Sei, porém que só andando é que se sabe andar e – milagre – se anda.

Não se compreende música, ouve-se. Ouve-me então com teu corpo inteiro.

(9)

Resumo

Esta pesquisa é uma investigação teórico-prática do encontro entre a abordagem técnica de dança moderna e contemporânea de Holly Cavrell e o treinamento expressivo desenvolvido pelo Lume Teatro. Meu objetivo foi observar as contribuições que o trabalho com estes dois referenciais poderia gerar para o processo de formação de uma intérprete criadora. A questão que me motiva nesta pesquisa está em como compreender a expressividade enquanto processo e não somente como resultado, e conduzir um trabalho de aprimoramento técnico que permita, ao mesmo tempo, a liberdade de expressão do bailarino, visando ao desenvolvimento de seu potencial criativo. Partindo da investigação dos princípios e dos procedimentos presentes na abordagem técnica de Holly e no treinamento do Lume, busquei perceber as necessidades que emergiam em minha prática e encontrar estratégias pessoais para integrar os aspectos técnicos e expressivos presentes em minha atuação. As experiências práticas de treinamento individual e coletivo realizadas durante a pesquisa são apresentadas em diários de trabalho, um registro sensível que reverbera os atravessamentos neste processo, revelando as questões que passam, que ficam, e que bloqueiam o corpo de uma intérprete em criação. Busco dialogar as reflexões que surgem no território da prática com os conceitos de Gil, Godard, Klee e Kandinsky sobre corpo, consciência, percepção, forma e expressão em arte. As considerações finais apontam três conceitos -disponibilidade, fluxo e forma - que surgiram ao longo do processo de pesquisa como sínteses pessoais de diversos conteúdos estudados.

Palavras-chave: Técnica em dança; expressão corporal; treinamento de ator; bailarino intérprete criador; dança contemporânea; teatro; performance.

(10)

This research is a theoretical-practical investigation of the meeting between Holly Cavrell's technical approach of modern and contemporary dance and the expression training developed by Lume Theater. My goal was to observe the contributions that the work with these two references could generate for the education process of a dance performer. The question that motivates me in this research is how to understand expressivity as a process and not only as a result, and to conduct a work of technical improvement that allows, at the same time, the freedom of expression of the dancer, aiming the development of his creative potential. Starting from the investigation of the principles and the procedures present in Holly's technical approach and Lume's training, I sought to understand the needs that emerge in my practice and to find personal strategies to integrate the technical and expressive aspects present in my performance. the practical experiences of individual and collective training, conducted during the research, are presented in work diaries, a sensitive record that reverberate the crossings in this process, revealing the issues that pass, linger, and block the body of a dance performer. I seek a dialogue between the reflections that arise in the territory of the practice with the concepts of Gil, Godard, Klee and Kandinsky on body, consciousness, perception, form and expression in art. The final considerations point to three concepts -availability, flow and form - which emerged throughout the research process as personal syntheses of several concepts studied.

Keywords: Dance technique; body expression; training for actors; dance performer; contemporary dance; theatre, performance.

(11)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...12

CAPÍTULO 1: TÉCNICA & EXPRESSIVIDADE...14

1.1 Pontos de partida: experiências na minha formação em dança...14

1.2 Referências: a abordagem técnica de Holly Cavrell...21

1.2.1 Procedimentos da abordagem técnica de Holly Cavrell...33

1.3 Referências: o treinamento do Lume Teatro...37

1.3.1 Procedimentos do treinamento do Lume Teatro...44

1.4 Necessidades de uma intérprete em criação...47

CAPÍTULO 2: TERRITÓRIOS DA PRÁTICA...50

2.1 Diários de trabalho: procedimentos diversos e princípios em comum...50

2.1.1 Aulas de Holly – segundo semestre de 2014...51

2.1.2 Treinamento Pessoal – primeiro semestre de 2015...59

2.1.3 Intensivo Temático com Renato Ferracini...65

2.1.4 Disciplina de Mímese e Dança com Ana Cristina Colla...73

2.1.5 Treinamento Pessoal – primeiro semestre de 2015...77

2.1.6 Programa de Estágio Docente – primeiro semestre de 2015...77

2.1.7 Grupo de Estudos...82

CAPÍTULO 3: CORPO PASSAGEM...86

3.1 O que passa, o que fica e o que bloqueia?...87

3.2 Estratégias de uma intérprete em criação...92

3.3 Disponibilidade, fluxo e forma ...98

REFERÊNCIAS...101

(12)

TÉCNICA & EXPRESSIVIDADE

NA FORMAÇÃO DE UMA INTÉRPRETE CRIADORA

Por Paula Telles D’Ajello

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa de Mestrado carrega um histórico de questionamentos e de experiências em minha atuação prático-reflexiva como intérprete criadora desde o início da minha formação em dança, que aconteceu bastante cedo em minha vida. A questão das relações entre a técnica e a expressividade no processo de formação de uma intérprete criadora acompanha a minha prática há muito tempo, desafiando-me a encontrar estratégias pessoais para transitar entre diversas abordagens do movimento e para conduzir meu próprio processo de treinamento.

Nessa busca por uma integração entre o aprimoramento dos aspectos técnicos e expressivos envolvidos em minha atuação como intérprete e o desenvolvimento de meu potencial de criação, encontrei, nos princípios e procedimentos da abordagem da técnica em dança moderna/contemporânea de Holly Cavrell e no treinamento expressivo do Lume Teatro, as referências para a minha investigação.

Nesta pesquisa, eu busquei observar as contribuições que o encontro entre esses dois modos de trabalho foi capaz de gerar para a formação de intérpretes criadores, através dos atravessamentos e das reflexões provocadas pela experimentação prática dos procedimentos em meus treinamentos pessoais e coletivos e em disciplinas e cursos ministrados por Holly Cavrell, Renato Ferracini e Ana Cristina Colla. O registro deste processo prático-reflexivo de pesquisa está estruturado em três capítulos.

(13)

13

motivaram a elaboração do projeto de pesquisa e as questões norteadoras que acompanharam o processo de investigação. Nesse capítulo primeiro, também faço uma análise dos princípios de trabalho da abordagem técnica de Holly Cavrell e do treinamento do Lume Teatro, apontando os pontos de partida que conduziram a experimentação prática em treinamentos individuais e coletivos.

O segundo capítulo volta-se para o território da prática e para as experiências vivenciadas nas disciplinas de técnica conduzida por Holly Cavrell, nos treinamentos propostos por Renato Ferracini e em cursos ministrados por Ana Cristina Colla, além dos treinamentos pessoais e coletivos realizados com as alunas de Graduação. Esse capítulo também apresenta a escrita dos diários de trabalho como um registro sensível dos questionamentos, reflexões e atravessamentos que emergiram no território da prática e revela uma série de relações com os princípios apresentados como pontos de partida e com conceitos de outros autores.

No terceiro e último capítulo, procuro observar os resultados impressos em meu corpo e em meu pensamento e sintetizar o que passa, o que fica e o que bloqueia no território das experiências práticas à luz dos princípios apresentados como ponto de partida; além disso, retorno aos questionamentos iniciais, procurando vislumbrar os elementos que carregarei comigo dessa formação técnica e expressiva e também o que se atualiza em minha prática como intérprete criadora.

As considerações finais formalizam-se a partir de três palavras-chave que emergiram das investigações práticas e acompanharam-me ao longo de todo o processo de pesquisa: disponibilidade, fluxo e forma. São apresentadas como três conceitos pessoais que sintetizam as contribuições que o encontro entre a abordagem técnica de Holly e o treinamento do Lume geraram em minha formação como intérprete criadora.

(14)

CAPÍTULO 1: TÉCNICA & EXPRESSIVIDADE

1.1 Pontos de partida: experiências na minha formação em dança

Acredito que tenha começado realmente a dançar por volta dos seis anos de idade, embora tenha uma foto no jardim de infância, fazendo um perfeito tendu effacé, com as mãozinhas na cintura, aos três (figura 01). O fato é que foi aos seis anos que entrei em uma escola de dança e que iniciei as aulas de balé. Nessa

primeira formação, que durou 8 anos, eu tive o aprendizado da técnica de balé clássico e do repertório tradicional de balé romântico e dei início à minha carreira como jovem bailarina. Minhas colegas e eu participávamos de diversos festivais de dança e, como havia muitas coreografias de repertório repetidas, podíamos comparar as variações entre cada intérprete. Nesse contexto, a especificidade

(15)

15

técnica é muito apurada: os mínimos detalhes no alinhamento correto das posições, na clareza das transferências de peso, na sustentação do corpo em saltos e giros e na iniciação e na finalização correta dos movimentos fazem toda a diferença em sua pontuação final (figuras 02 e 03). Apesar do ambiente competitivo, acredito que essas experiências desenvolveram minha capacidade de observação do movimento e auxiliaram-me a aprimorar a técnica com maior discernimento. Ao mesmo tempo, havia critérios de pontuação para a expressividade dos bailarinos, como o olhar, a musicalidade, a forma de entrar e sair do palco, a gestualidade do tronco e das mãos e a harmonia nas transições entre um movimento e outro. Desde então, eu comecei a perceber os detalhes que realmente faziam a diferença entre uma intérprete e outra, para além da forma e da mecânica dos seus movimentos.

Dei continuidade à minha formação com o aprendizado de outras técnicas de dança moderna e contemporânea e participando em grupos de dança com bailarinos de formações diversas, em conjunto com músicos, atores, cantores, diretores de teatro e orquestra. Esse conjunto ampliou minhas referências de

(16)

atuação como intérprete. O contato com diferentes estilos de dança e com artistas de outras áreas desafiou minhas habilidades técnicas e meu potencial expressivo já conhecidos, além de ter instigado a necessidade de aprimorar esses aspectos em minha prática de treinamento.

No ambiente da minha formação inicial, em escolas livres ou academias de dança que oferecem aulas em diversas modalidades e estilos, a técnica costuma ser entendida enquanto aquisição e domínio de habilidades motoras e está associada a um modo de trabalhar o corpo como instrumento, ferramenta, quase como um objeto, manipulado por meio de formas e de movimentos codificados a partir de padrões de alinhamento externos. Dessa maneira, eu desenvolvi um grande controle sobre meus movimentos. As aulas de balé clássico, jazz, dança moderna e dança contemporânea auxiliaram-me a construir um corpo disciplinado e ágil, capaz de articular diversas dinâmicas de movimento e de adaptar-se a diferentes formatações e estilos de dança. Por outro lado, a expressividade, muitas vezes, é compreendida a partir da ideia de talento, dom, ou habilidade inata do intérprete e que, por sua natureza subjetiva, não pode ser desenvolvida ou trabalhada. Essa concepção gerava conflitos em minha prática de treinamento, pois eu sabia a importância desse aspecto em minha atuação, mas não tinha recursos para desenvolvê-lo.

Ao ingressar no curso de Dança da Unicamp, um ambiente voltado para a formação de intérpretes criadores, entrei em contato com diversos procedimentos de criação que estimularam o desenvolvimento da expressividade por meio de práticas de improvisação, de jogos cênicos e de exercícios de composição coreográfica. Comecei a explorar alguns recursos, como a repetição, as mudanças de velocidade, as variações de nível e de direção e as modulações na dinâmica e na amplitude dos movimentos como ferramentas de expressão, mas todos esses elementos partiam de referências externas. Eu continuava buscando uma conexão mais profunda com aquilo que estava criando e acreditava que a expressividade seria algo que me auxiliaria a atribuir sentido aos meus movimentos, ou qualquer intenção que não

(17)

17

fosse puramente mecânica. Assim, surgiu a necessidade de investigar a capacidade expressiva enquanto processo e não somente como resultado, na busca por compreender de que modo a expressividade emerge e o que é necessário para aprimorar seu processo de produção.

Os cursos realizados com os atores-pesquisadores do Lume Teatro1, em

especial com o Prof. Dr. Renato Ferracini, apresentaram-me mais do que procedimentos de um treinamento expressivo, e sim, um outro modo de compreender o corpo e a atuação do ator/bailarino. Nessa perspectiva, o corpo não é visto somente como instrumento, ferramenta, objeto manipulado a partir de padrões externos, mas também enquanto sujeito sensível, perceptivo, capaz de transformar sua energia a partir da relação com o outro. Essas experiências estimularam o desprendimento das referências externas e um mergulho em minhas próprias qualidades de energia, que ampliaram minha sensibilidade e minha percepção do próprio movimento. Desse modo, foi possível encontrar, no corpo, novos sentidos para os mesmos movimentos e potencializar minha capacidade de relação com o tempo, o espaço e os outros bailarinos, por meio de uma conexão interna com esses elementos. Simultaneamente à investigação da expressividade na dança, havia um trabalho de aprimoramento técnico, associado a práticas de educação somática e à consciência corporal, realizado nas disciplinas de técnica em dança da Unicamp, que também despertaram, em meu corpo, outras percepções além da forma externa dos movimentos. Foi nesse contexto, em meu terceiro ano de curso, que comecei a fazer as aulas de técnica ministradas pela Prof.ª Drª. Holly Cavrell2. A abordagem da técnica de dança moderna/contemporânea de Holly

1 O Lume Teatro - Núcleo interdisciplinar de pesquisas teatrais da Unicamp – foi fundado em 1985 pelo então professor do curso de artes cênicas, Luís Otávio Burnier, com interesse na elaboração e sistematização de técnicas vocais e corpóreas para o ator. O grupo, inicialmente formado por sete atores-pesquisadores, mantém sua sede em Campinas que integra uma equipe administrativa e de técnicos artísticos, bolsistas, atores e pesquisadores colaboradores. Mais em: http://www.lumeteatro.com.br/.

2 Holly Elizabeth Cavrell é coreógrafa, bailarina, professora e pesquisadora. Natural de Nova Iorque/EUA, veio para o Brasil em 1989 para trabalhar no Departamento de Artes Corporais da Unicamp. Atuou como bailarina em companhias internacionais como a Martha Graham Dance Company e trabalhou como coreógrafa em grupos como o Balé da Cidade de São Paulo.

(18)

permitiu-me encontrar espaço, dentro do treinamento físico, para perceber os aspectos internos que influenciavam os movimentos. Assim, além da preocupação com as linhas desenhadas pelo corpo e com sua trajetória no tempo e no espaço, havia outra camada de atenção, voltada para a percepção das sensações do peso, do fluxo respiratório, da energia que parte do centro do corpo e da atuação dessas forças durante o movimento. A integração entre os aspectos internos e externos do movimento provocou uma transformação em minha postura diante do treinamento.

Em 2009, realizei o trabalho de conclusão de curso com a orientação de Holly e coorientação de Renato, juntamente a sete colegas do curso de Dança. Estávamos interessadas em explorar os estados de energia despertados pelo treinamento do Lume Teatro e, ao mesmo tempo, assumir as referências de movimento da nossa formação em dança contemporânea. Esse processo gerou uma série de conflitos em relação ao modo de conduzir os trabalhos. Naquele momento, havia o conhecimento físico, mecânico do corpo, que possibilitava o domínio sobre nossas ações, e um conhecimento sensível, energético, que nos colocava em uma zona de imprevisibilidade. Em nosso espetáculo Vão de passagem, realizado em no prédio em construção do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (figura 04), construímos uma dramaturgia que evidenciava todos esses conflitos. Assim, fundamos o Grupo VÃO3 e demos prosseguimento ao trabalho de forma

autônoma. Nesse mesmo ano, desenvolvi uma pesquisa de iniciação científica, também sob a orientação da Professora Holly, em que busquei relacionar a sua abordagem técnica ao treinamento do Lume, por meio de uma análise comparativa. Eu me perguntava como desenvolver o potencial expressivo do intérprete criador em conjunto com o aprimoramento de sua habilidades técnicas.

Atualmente é diretora da Cia Domínio Público e professora no curso de Graduação em Dança e no Programa de Pós-graduação em Artes da Cena da Unicamp. Mais informações em: http://lattes.cnpq.br/0365005501636387/.

3 O Grupo VÃO é um coletivo formado por intérpretes criadoras com interesse em pesquisa e criação na fronteira entre dança, performance e artes visuais. Com ações na cidade de São Paulo desde 2010 o Grupo VÃO desenvolve uma linguagem em dança contemporânea baseado na investigação de estados corporais e na relação entre corpo, espaços não convencionais e a aproximação com o público. Mais informações em: https://www.facebook.com/grupovao/.

(19)

19

Depois da minha formatura no curso de Dança da Unicamp, tive a oportunidade de realizar o Professional Study Program com a José Limón Dance Company, em Nova Iorque/EUA4 - um curso de aprimoramento voltado à técnica e

ao repertório da dança moderna americana, em especial à técnica Limón. Foi uma experiência intensa, pois me encontrei em um ambiente bastante rígido e, de certa forma, fechado a outras possibilidades de concepção da dança que diferissem dos códigos preestabelecidos na metodologia, criada há mais de 60 anos (figura 05). Embora tenha experimentado um grande desenvolvimento em algumas de minhas habilidades técnicas em dança, eu me questionava sobre o sentido e o rigor daquela 4 A José Limón Dance Company foi fundada em 1946 pelo bailarino e coreógrafo José Limón com direção de Doris Humphrey. As obras artísticas e o desenvolvimento metodológico da técnica Limón foi internacionalmente reconhecido como um trabalho de vanguarda da segunda geração de artistas da dança moderna norte-americana. Atualmente a companhia é dirigida por Colin Connor e Carla Maxwell, e reproduz o repertório tradicional das peças criadas por Humphrey e Limón, além de oferecer cursos de aperfeiçoamento para bailarinos. Mais informações em: http://limon.org/.

(20)

metodologia no contexto da dança contemporânea. Ao retornar para o Brasil, trouxe novas questões para o mesmo problema: como conduzir um trabalho de aprimoramento técnico que permita a expressão criativa do intérprete? E de que maneira a técnica pode potencializar a expressividade?

O conjunto dessas experiências e desses questionamentos representa os pontos de partida desta pesquisa, em que investiguei a abordagem técnica de Holly Cavrell e o treinamento expressivo do Lume Teatro, observando as contribuições que o encontro entre esses dois modos de trabalho pode gerar para a formação de intérpretes-criadores. A seguir, descrevo com mais detalhes os princípios e os procedimentos de cada uma dessas referências, buscando os seus cruzamentos e suas complementaridades em relação à técnica e à expressividade.

(21)

21

1.2 Referências: a abordagem técnica de Holly Cavrell

É importante explicitar aqui que Holly jamais buscou codificar ou sistematizar um método de ensino. Seu trabalho como professora estruturou-se por meio de uma série de procedimentos organizados em um conjunto, que poderia ser nomeado como uma abordagem técnica da dança moderna e contemporânea, criada a partir de experiências vivenciadas e dos resultados obtidos ao longo do tempo. Em seu livro Dando corpo à história (2015), Holly coloca-se como sujeito e objeto da pesquisa ao observar as transformações do corpo na dança ao longo da História, incluindo sua perspectiva enquanto artista. Ela relata que, em sua formação inicial, também passou por diversas abordagens do movimento e estudou dança clássica, dança moderna, jazz, improvisação; fez aulas de yoga, pilates, técnica vocal, sapateado, flamenco e aprendeu sobre as abordagens somáticas como a técnica Alexander e o método Feldenkrais, desenvolvendo estratégias pessoais para transitar entre todas essas práticas.

Eu vivi e trabalhei em mais de quinze países como bailarina, professora e coreógrafa, negociando com cada cultura e me adaptando por meio de uma única regra: não julgar. (…) Assim é possível assimilar diversas formas de dança sem sentir que uma é melhor que a outra. O propósito é permitir que essas impressões se misturem, integrem-se, para que não tenham de ser eliminadas do corpo. Eu carrego muitas técnicas diferentes no meu corpo, mas priorizo uma por vez. (CAVRELL, 2015, p.19)

Penso que essa ideia de não julgar e estar aberto para que as linguagens integram-se, carregando as informações no corpo, mas priorizando uma por vez, é um dos princípios que regem o trabalho de Holly e que o mantém atual. Quando treinamos nosso corpo por muito tempo em uma determinada linguagem, muitas vezes nos encontramos “presos” a essa técnica, ou estilo de dança, como se a estrutura formal daquele treinamento limitasse nossas possibilidades de movimento e de expressão. Tal situação acontece bastante com bailarinos clássicos, pois a técnica do balé, dependendo de como é abordada, pode ser bastante rígida para o

(22)

corpo, dando a sensação de estarmos aprisionados àqueles códigos. Entretanto, essa forma de controle pode ser visível em qualquer treinamento que esteja mais comprometido com padrões e com modelos externos de resultado do que com o processo interno de aprendizagem, como observa Holly em seus questionamentos sobre a sistematização de técnicas em dança.

Se a maioria dos sistemas busca estabilidade, em que momento uma técnica ou tendência de dança é reconhecida como um sistema? Essa formação evolui constantemente ou o corpo é manipulado por táticas camufladas de controle? Treino de dança en masse, en bloc é, até hoje, parte do processo de aprendizado convencional e, surpreendentemente se parece com uma fábrica de modelos corporais. (CAVRELL, 2015, p.30)

Quando um intérprete percebe-se limitado dentro dessa fábrica de modelos corporais, busca diversificar suas atividades, desafiando o corpo em outros tipos de treinamento. Esse processo pode ser bastante libertador, mas também é capaz de gerar muitos conflitos internos, pois cada técnica tem suas especificidades no modo de trabalhar o corpo, as quais, muitas vezes, podem ser contraditórias. Tal fato não quer dizer que seja preciso negar o conhecimento adquirido ou eleger um tipo de treinamento como melhor do que outro, mas é importante saber discernir uma abordagem técnica da outra e ser capaz de agregar as novas formas de movimento sem suprimir as antigas. O intérprete que se coloca nesse lugar de desafio e de experimentação tem a oportunidade de desenvolver recursos pessoais para se adaptar a diferentes estilos e diferentes formatações de dança e, assim, ampliar suas possibilidades de atuação. É então que o bailarino aprimora sua autonomia de trabalho, fazendo suas próprias escolhas, dentro do contexto em que está inserido, a cada momento, e tornando-se seguro para desenvolver suas estratégias pessoais de treinamento e de criação.

Eu construí um corpo de escolhas emblemáticas e este panorama de qualidades me permitiu passar de amadora a profissional, ao

(23)

23

desenvolver um corpo que é um compêndio de linguagens de dança, recorrentemente negociando novas estruturas. Acredito que seja mais correto dizer que hierarquizamos nossas experiências e isso elimina o ato de moralidade de fazer escolhas e juízos. (CAVRELL, 2015, p.20)

No trabalho de Holly, os intérpretes são estimulados a experimentar, no próprio corpo, as diferenças entre um modo de fazer e outro, sem julgamento. O processo de aprendizagem não é conduzido de maneira excludente, selecionando a maneira “certa” e a “errada” de se mover a partir de referências externas. Tudo é possível, desde que o intérprete saiba o que está fazendo e qual a escolha mais adequada para cada situação. Assim, invés de simplesmente seguir as orientações do professor, buscando atingir um modelo de resultado, o intérprete coloca-se como pesquisador, explorando procedimentos e discernindo os resultados a partir da experiência vivenciada em seu próprio corpo. Desse modo, desenvolve-se uma postura que afirma a autonomia e o engajamento do intérprete diante do treinamento. Nessa perspectiva de trabalho, a técnica deixa de ser abordada apenas como a aquisição e o domínio de habilidades motoras e passa a ser entendida também enquanto exploração de possibilidades de movimento e de expressão, o que pode ser identificado como outro princípio fundamental da abordagem técnica de Holly.

Do ponto de vista de uma intérprete criadora, acredito que seja interessante pensar a técnica como exploração de possibilidades de expressão, ou seja, o desenvolvimento e o aprimoramento de um trabalho corporal que permita ampliar a capacidade de expressar, por meio dos meios materiais de que dispomos, uma necessidade interior, uma vibração, o impulso que move o artista. Ao investigar o corpo na dança ao longo da história, é possível perceber, como aponta Holly, que muitas técnicas, ou modos de trabalhar o corpo e os materiais que compõem a dança, surgiram das necessidades de expressão particulares de um determinado artista ou conjunto de artistas. Essa necessidade interior, por sua vez, está sempre

(24)

vinculada ao contexto social, político e cultural no qual os artistas estão inseridos.

Observar a técnica em diferentes períodos de tempo é uma boa maneira de elucidar identidades estéticas de uma época. A maneira como treinamos o corpo diz muito a respeito de como nos sentimos em relação a ele e o que motiva a arte. (….) Chamo de técnica um conjunto de procedimentos ou métodos de disciplina e estruturação do corpo, com vistas a capacitação ou domínio de um estilo ou linguagem de movimento e, em muitos casos, a técnica não foi somente um modo de codificar o corpo, mas um meio para se obter liberdade, expressão e naturalidade. (CAVRELL, 2015, p.35)

As técnicas de dança moderna americana, por exemplo, surgiram antes enquanto movimento artístico, filosofia. Na virada do séc. XIX para o séc. XX a dança passou por uma transformação radical de valores, o que levou artistas como Isadora Duncan e Loie Füller (Figuras 06 e 07) a buscar novas formas de expressão que pudessem satisfazer sua necessidade interior. Elas fizeram parte da primeira geração de criadoras da dança moderna americana e impulsionaram um movimento que se se projetou para o mundo, reformulando o ideal feminino imposto pelo balé romântico para assumir um novo papel da mulher na sociedade moderna. “Neste espírito revolucionário de início de século, enfatizava-se o movimento por si próprio como experiência fundamental para a expressão individual do artista” (SILVA, 2005, p. 19).

(25)

25

Entre as décadas de vinte e trinta, Martha Graham e Doris Humphrey (figuras 08 e 09) fizeram parte da segunda geração de coreógrafas modernas e destacaram-se como pioneiras na criação de um novo estilo. O contexto histórico e social de sua época provocou a urgência em falar sobre os conflitos existenciais do Homem, bem como o desejo em desenvolver uma linguagem que aproximasse a dança dos valores nacionais norte-americanos. Estas artistas também estavam interessadas em expressar com mais profundidade os movimentos instintivos do corpo, e a própria condição humana, em constante resistência com o meio. Elementos como a

(26)

respiração e o fluxo em contração e relaxamento foram utilizados como propulsores para o movimento, que deveria partir do troco, entendido como centro vital das emoções, para as extremidades, onde se modelavam em formas e gestuais simbólicos. Além disto, o peso do próprio corpo como impulso para os movimentos e as dinâmicas de queda e suspensão evidenciavam a tensão entre os opostos, representando o drama existencial em suas danças (COHEN, 1966). Naturalmente, após um certo período de tempo, as formas dramáticas da dança moderna da deixaram de fazer sentido para uma sociedade em constante transformação, que ansiava pelo desenvolvimento econômico e tecnológico. “O que era considerado moderno tornava-se uma forma institucionalizada de arte, (...) resultando em formas codificadas que enrijeciam a criatividade.” (CAVRELL, 2015, p.157).

(27)

27

A partir da década de quarenta, Merce Cunningham (figura 10), ex-bailarino da Cia de Martha Graham, emancipou-se das formas dramatúrgicas de sua mestra e lançou-se ao acaso, ao lado do músico John Cage, em busca do inesperado, do imprevisível. O momento era de transição e construção de um novo projeto de mundo, e Cunningham apoiou-se na estrutura corporal e no suporte técnico adquirido na companhia de Graham para experimentar novos paradigmas de criação e composição. Sem jamais abandoar sua formação técnica, Cunningham ampliou seu léxico de movimentos acrescentando novas variações aos velhos códigos formais da dança moderna, mas as transformações mais relevantes se

(28)

deram no âmbito da composição coreográfica. Assim, diferentes contextos sócio-políticos deram lugar a novas necessidades de expressão e outros modos de pensar e trabalhar o corpo em movimento.

(29)

29

Em torno dos anos sessenta e setenta, o interesse por uma movimentação natural, cotidiana, desprovida de intenção dramática tomou o lugar de destaque em movimentos de vanguarda como a Judson Dance Theatre e a Grand Union (figuras 11 e 12). Para estes coletivos, qualquer pessoa poderia estar no palco e qualquer movimento poderia ser dança, a técnica foi quase que abandonada em função de um posicionamento político. Estes artistas rejeitavam a ideia de virtuosismo técnico e de expressividade subjetiva, que acabava por criar mitos e padrões idealizados e inatingíveis. Neste momento era preciso radicalizar a prática para transformar o pensamento, e o trabalho corporal tornava-se um movimento de cunho mais ético e político do que estético, no sentido de preocupar-se mais com uma postura, comportamento, uma motivação interior, do que com uma imagem, aparência ou representação exterior.

Figura 11_Judson Dance Theatre, 1965 e 1966. Robert Morris, Lucinda Childs, Steve Paxton, Yvonne Rainer, Deborah Hay, Tony Holder, Sally Gross, Robert Rauschenberg, Judith Dunn, and Joseph Schlic

(30)

As décadas que se seguiram trouxeram transformações nesse sentido e nos anos oitenta houve uma intensa retomada da fisicalidade e grande abertura para a colaboração interdisciplinar. Depois da extensa experimentação promovida nas décadas anteriores e do alargamento dos limites formais e expressivos da dança, este período teve sua potência afirmativa no acabamento e sofisticação do espetáculo. O processo não era mais importante do que o resultado e a novidade estava em apresentar um produto muito bem elaborado e repleto de elementos surpresa. A mistura e sobreposição de estilos, que caracterizou a arte deste período, ampliou as possibilidades criativas da dança e provocou, mais uma vez, novas

Figura 12_The Grand Union, 1975. Barbara Dilley, David Gordon, Nancy Lewis, Trisha Brown, Douglas Dunn e Steve Paxton.

(31)

31

necessidades de expressão, além do desenvolvimento e a apropriação de outras técnicas corporais (SILVA, 2005).

Nesse panorama, é possível perceber que diferentes interesses geraram condutas e posicionamentos diversos em relação ao modo de criar, que, por sua vez, despertaram novas necessidades de treinamento. No contexto da dança contemporânea, a função do coreógrafo como autor dos movimentos diluiu-se e os bailarinos passaram a adotar um papel muito mais participativo na criação artística. Tanto os trabalhos de aprimoramento técnico quanto os de criação parecem estar mais comprometidos com a investigação de potencialidades corporais do que com o domínio formal de códigos preestabelecidos. A cada processo criativo, os artistas apropriam-se de diferentes estratégias para conduzir seu treinamento e utilizam conhecimentos de outras áreas como suporte para a sua investigação. Por essa razão, o trabalho de Holly, apesar de manter diversos fundamentos da dança moderna americana, como discutirei a seguir, é uma abordagem contemporânea, que leva em consideração as necessidades de expressão que emergem do nosso contexto e que estimula o questionamento de como essa situação afeta o corpo e a dança que se faz no presente.

A natureza da dança inclui seu estado de impermanência. Mas isto não impede o questionamento em relação àquilo que os corpos carregam em si como heranças visíveis e históricas. O que seria uma cartografia registrada no corpo e como poderíamos interpretar as informações que convergem para o corpo dançante? Seria o movimento na dança visto como técnicas e sistemas de conhecimento acumuladas ao longo do tempo ou como estratégias que permitem a visibilidade e compreensão de ideias do artista e seus diversos contextos? (CAVRELL, 2015, p.17)

Acredito que essa reflexão colocada por Holly, sobre o estado de impermanência da dança possa apontar mais um princípio de sua abordagem técnica: a concepção do treinamento enquanto um conjunto de estratégias que permitem a visibilidade de ideias do artista e não apenas como sistema de

(32)

conhecimentos codificados, que padronizam os corpos em modelos preestabelecidos. Portanto, se essas ideias evoluem e transformam-se ao longo do tempo, de acordo com as necessidades de expressão que emergem a partir do contexto de cada época, a técnica e o treinamento também devem se atualizar e acompanhar essa busca por novas formas de expressão. Nesse sentido, é importante frisar que compreender a técnica como um espaço de experimentação e de exploração de potencialidades corporais não significa dizer que não existam conteúdos objetivos e relevantes a serem apreendidos ou que não haja uma estrutura concreta que possa favorecer o processo de formação do artista. Em qualquer treinamento, sempre existirá algum grau de rigor e de disciplina, mas a questão aqui é encontrar o discernimento das estratégias mais adequadas para cada momento, fazendo as escolhas de forma consciente.

Recentemente vi um anúncio para um workshop no qual as pessoas podiam treinar “sem ficarem presas a contagens ou formas”. A propaganda deste workshop extingue modelos tradicionais, mas me leva a questionar se a música ou o sistema métrico para o treino do corpo está em extinção, ou se há uma relutância em se reconhecer uma estrutura como parte de um caminho formativo em direção à criatividade individual. A necessidade de dançar é puramente individual hoje? (…) O que vem primeiro para o corpo que dança, a insurreição ou a instituição? (CAVRELL, 2015, p. 30)

A pergunta de Holly no parágrafo transcrito parece-me bastante pertinente para a formação de intérpretes-criadores no contexto da dança contemporânea e faz-me questionar quais são nossos objetivos, onde está o nosso rigor e qual o nosso grau de disciplina no treinamento. E, a partir disso, refletir sobre o entendimento da técnica em dança como forma de controle ou como meio para a liberdade de expressão. Ao contrário da rigidez formal e da estrutura que “aprisiona” os corpos em treinamento que estão comprometidos somente com modelos de referência externos, como discuti acima, existe também uma tendência a abandonar toda e qualquer formalidade em prol da “liberdade” expressiva e criativa do

(33)

33

intérprete. Entretanto, essa tendência pode ser uma armadilha, pois, sem elementos concretos ou uma estrutura clara e objetiva, eliminamos quaisquer referências e perdemos a capacidade de avaliar nosso processo de aprendizagem. Dessa forma, tornamo-nos escravos de nossos próprios hábitos e maneiras pessoais de dançar, o que, mais uma vez, limitará nossas possibilidades de atuação e, principalmente, de relação com outros artistas. Pergunto, então, de que forma podemos transitar entre esses dois polos opostos e estabelecer uma relação mais harmoniosa entre estrutura e liberdade no treinamento. Que estratégias podemos estabelecer no treinamento para integrar os aspectos formais de uma técnica e as necessidades expressivas do intérprete criador?

Observando os procedimentos da abordagem técnica de Holly, acredito que seu trabalho também vise a oferecer uma estrutura, para que o bailarino desenvolva a capacidade de coordenar e de articular os diversos elementos que compõem seu corpo em movimento. Por meio do aprimoramento técnico, o bailarino é capaz de adquirir uma série de habilidades sensório-motoras e de desenvolver o domínio de seu corpo em diversas possibilidades de movimento. A partir desse domínio corporal adquirido, outras estratégias podem ser empregadas para ir além dos aspectos formais, possibilitando ao bailarino incorporar cada vez mais elementos ao seu material, acrescentando complexidade à sua atuação. Nesse sentido, a técnica na abordagem de Holly pode ser pensada como um suporte para a criatividade, na medida em que oferece recursos necessários para que o bailarino possa explorar a diversidade de seu material e, então, ampliar seu potencial expressivo.

1.2.1 Procedimentos da abordagem técnica de Holly Cavrell

A abordagem da técnica em dança de Holly está fundamentada em princípios da dança moderna norte-americana encontrados especialmente no trabalho de Doris Humphrey e Martha Graham, mas, como foi discutido acima,

(34)

também se utiliza de estratégias próprias para compor um treinamento corporal voltado ao intérprete criador atuante no contexto da dança contemporânea.

Até onde minha história pessoal me diz respeito, eu era passionalmente atraída pelo movimento de Graham, encantada e didaticamente instruída por Humphrey, e transformada pela coreografia de Tamiris. Cada uma delas desenvolveu uma parte de mim e permitiu a construção de uma identidade pessoal expressiva, filosófica e consciente de sua arte. Ao ensinar as técnicas de Graham e Humphrey, tornei-me verdadeiramente submersa no universo de cada uma, porque eu tinha que transmitir não apenas os exercícios mas, também, os princípios por detrás dos movimentos. Para poder inspirar, eu precisava de um profundo conhecimento empírico de seus trabalhos, não apenas uma familiaridade de passos e estilo. (CAVRELL, 205, p. 124)

Portanto, o trabalho de Holly lidou com essas referências, não a partir de uma reprodução formal de códigos, mas da compreensão empírica de seus princípios. As técnicas de Humphrey e Graham foram criadas a partir de diferentes necessidades expressivas, mas compartilham princípios de movimento em comum, que podem ser observados nas técnicas de dança moderna, de modo geral. Entretanto, esses princípios não permanecem sendo transmitidos da mesma maneira nos dias de hoje, pois seu entendimento foi também transformado ao longo do tempo. Abaixo enumero três princípios fundamentais da dança moderna americana, mas descrevo-os da forma como são entendidos no trabalho de Holly:

 Respiração associada ao movimento: a respiração como forma de conectar as tensões musculares internas e externas para estabelecer um fluxo dinâmico e contínuo de expansão e recolhimento; pode ser entendido também como elemento de elasticidade nos movimentos em oposição dinâmica e em torções e espirais;

(35)

35

propulsor dos movimentos, de onde parte a energia necessária para a execução das ações; entendido como o centro vital ou core (núcleo), onde surgem os impulsos que se irradiam pelo corpo, do centro para as extremidades, em um movimento de sucessão articular;

 Peso: a ação da gravidade sobre o corpo e a resistência organizada pelos músculos gravitacionais, provocando quedas e suspensões em partes isoladas do corpo ou no corpo inteiro e em movimentos de transferência de um ponto de apoio ao outro, gerando deslocamentos; também entendido enquanto força, impulso, o uso do peso do corpo como propulsor nos movimentos em lançamento.

Esses princípios concretizam-se em diversas dinâmicas ou padrões de movimento que determinam modos específicos de articular as habilidades motoras, tais como: expansão e recolhimento; oposições dinâmicas; torções e espirais; movimento em sucessão articular; queda e suspensão; lançamentos e transferências de peso (STODELLE, 1978).

Na abordagem técnica de Holly, essas dinâmicas de movimento específicas são aprimoradas por meio de procedimentos bastante utilizados em aulas de dança, que chamamos de sequências de movimento. As sequências possuem um encadeamento lógico na ordenação das ações, o que define uma série de transições entre um movimento e outro. Geralmente, cada sequência é focada no trabalho com um tipo de movimento e suas variações, como as flexões do tronco ou as transferências de peso sobre dois pés, por exemplo, mas naturalmente o corpo inteiro move-se de forma coordenada. No entanto, as sequências também podem ser mais complexas, agregando diferentes tipos de movimento de forma assimétrica, dependendo da necessidade didática, do nível de aprimoramento e do contexto de atuação dos bailarinos. Nas aulas de Holly, as sequências são exploradas repetidamente, numa progressão gradual de complexidade. À medida que os bailarinos repetem as mesmas sequências, adquirem segurança e naturalidade ao

(36)

realizar os movimentos e as transições, e, então, outros elementos vão sendo agregados. Assim, durante a execução repetida das sequências, os intérpretes podem ampliar seu foco de atenção para além dos próprios movimentos, incluindo também a percepção de sua relação com o tempo, o espaço e os outros bailarinos.

Outro procedimento utilizado em suas aulas é o trabalho em duplas, que pode envolver a manipulação do corpo do outro ou somente a observação e a orientação mútuas. Por meio desse trabalho colaborativo, os bailarinos têm a oportunidade de entrar em contato com sensações presentes no corpo que não haviam percebido anteriormente, o que permite ampliar sua capacidade de propriocepção. Além disso, os intérpretes são estimulados a compartilhar aquilo que já aprenderam, auxiliando o outro em seu processo de aprendizagem. Dessa forma, apropriam-se do conhecimento adquirido e desenvolvem a autonomia e a capacidade de criar estratégias pessoais para conduzir seu processo de aprendizagem.

Nas aulas de Holly, durante todo o trabalho, a atenção do bailarino é dirigida primordialmente para a percepção e a consciência das sensações internas (fluxo respiratório, sustentação do centro motor, peso), além de sua atuação na execução dos movimentos. Desse modo, o foco de aprendizado volta-se mais à sensação interna do movimento do que para sua forma externa. Mas isso não quer dizer que a forma, nessa abordagem técnica, não seja importante; ao contrário, as formas que os movimentos adquirem são relevantes, não somente enquanto aperfeiçoamento do alinhamento postural, mas também porque envolvem a projeção e a amplitude do corpo no espaço. A questão, nesse trabalho, é que as formas não se configuram como um fim em si mesmas: elas são entendidas como a consequência exterior de uma atitude interior.

À medida que o trabalho avança e as sequências tornam-se mais complexas, incluindo deslocamentos pelo espaço, o bailarino também é conduzido a integrar ao movimento a percepção de seu corpo em relação aos elementos que o rodeiam (tempo, espaço, outros bailarinos). Nesse momento, o intérprete é

(37)

37

incentivado a observar de que maneira os aspectos externos afetam e transformam sua atitude interna, ou, ainda, de que modo uma atitude interna pode afetar e transformar sua relação com os aspectos externos. Então, em conjunto com a percepção de suas sensações internas, a ação do bailarino também é conduzida no sentido de alargar seus limites corporais e levar os movimentos para além de sua forma, buscando a flexibilidade do corpo em relação com o tempo, com o espaço e com o outro. Portanto, a partir desses procedimentos, o intérprete é estimulado a sobrepor diversas camadas de percepção e a trabalhar em constante relação com as forças visíveis e invisíveis que modelam e conduzem sua dança, ampliando suas possibilidades de expressão.

1.3 Referências: o treinamento do Lume Teatro

O Lume Teatro – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da Unicamp – foi fundado pelo ator, diretor e pesquisador Luís Otávio Burnier, com interesse na elaboração e sistematização de técnicas corpóreas e vocais para o ator. Em seu livro A Arte de Ator: da técnica à representação (2009), o pesquisador descreve o processo de treinamento realizado com os atores Carlos Simioni e Ricardo Puccetti, elaborado com base em princípios do Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski, da Antropologia Teatral de Eugenio Barba, e de técnicas estrangeiras como o Butô.

Burnier acreditava que o instrumento de trabalho do ator não pode ser definido simplesmente como o corpo, mas como um corpo-em-vida; portanto, a técnica para trabalhá-lo deverá ser uma técnica-em-vida (Burnier, 2009, p. 24). Partindo desses princípios, buscou desenvolver uma metodologia que aprimorasse não só os aspectos físicos e mecânicos do corpo do ator, mas também sua presença e energia – os aspectos invisíveis em sua atuação.

Com frequência se diz que o instrumento de trabalho do ator é seu corpo. Falso. O instrumento de trabalho do ator não pode ser o corpo. Não podemos transformar um defunto em ator. O corpo não é

(38)

algo, e a nossa pessoa algo distinto. O corpo é a pessoa. A alma o

anima, mas sem ele não seríamos pessoas, mas anjos. Tampouco é

o corpo vivo o instrumento de trabalho do ator. A arte é algo que está em vida, ou seja, algo que irradia uma vibração, uma presença. É o

corpo-em-vida, como prefere Eugenio Barba, o instrumento do ator.

(BURNIER, 2006, p.25)

Percebo que a busca por uma concepção expandida de corpo, que se delineia desde os primórdios da pesquisa do Lume, faz parte dos princípios fundamentais que regem esse treinamento de ator. O trabalho do Lume está comprometido com a busca de experiências que os provoquem a pensar: o que mais pode o corpo? Em uma investigação incansável de suas fronteiras e de seus limites ou, nas palavras de Renato, “uma busca de transbordamento das potencialidades e intensividades do corpo, no corpo e para o corpo” (FERRACINI, 2006, p. 82).

É curioso pensar que em determinados ambientes de formação em dança, como as escolas de balé clássico ou academias que oferecem aulas avulsas de todos os estilos, os bailarinos não costumam questionar se é o corpo seu instrumento de trabalho, nem sobre o que é ou pode ser seu corpo, questões que, à primeira vista, parecem óbvias. Talvez por esse mesmo motivo o treinamento do Lume instigue-me tanto, pois é capaz de gerar experiências que me fazem pensar o corpo e, principalmente, vivenciar meu corpo de forma intensiva, atualizando constantemente seus sentidos e suas relações. Ao me aprofundar nesse trabalho de ator, parti de um entendimento do corpo como ferramenta sobre a qual eu teria o controle, para uma concepção de corpo como organismo vivo, de natureza pulsante, em constante transformação de si mesmo, o corpo-em-vida, que existe numa relação dinâmica de troca com o meio e com os elementos que os compõem mutuamente.

Existem, no entanto, como nota o próprio Barba, pelo menos duas dimensões deste corpo-em-vida: a dimensão física e mecânica e a dimensão interior. As duas formam uma unidade. (…) Pode-se, e é muitas vezes necessário, trabalhar estas dimensões separadamente.

(39)

39

No entanto, não se pode perder de vista a unidade. Trabalhar tão somente a dimensão física e mecânica seria formar jovens belos e fortes, mas não necessariamente atores; trabalhar apenas a dimensão interior poderia ser terapêutico, mas tampouco formaria atores. Uma não existe sem a outra, mesmo que o enfoque possa estar momentaneamente concentrado em uma ou outra destas duas dimensões. (BURNIER, 2006, p.26)

Assim, o treinamento do Lume desenvolveu-se a partir do princípio da existência destas duas naturezas do corpo do ator: a dimensão interior e a dimensão exterior, que, embora possam ser trabalhadas de maneiras distintas, fazem parte da mesma unidade. O instrumento de trabalho do intérprete pode ser compreendido, então, como o corpo em todas as suas dimensões visíveis e invisíveis. Ou seja, o corpo físico – formado por estruturas ósseas, musculares, circulatórias, respiratórias – e o corpo sensível – energético, mental, emocional –, ambos em relação dinâmica com as percepções que os atravessam e que os impulsionam num movimento de contínua transformação. O treinamento do intérprete torna-se, por sua vez, uma busca por ampliar a percepção dessas diferentes dimensões do corpo-em-vida, tendo em vista suas possibilidades de integração e de conexão entre si e com outros corpos-em-vida.

Portanto, fazem parte dos princípios fundamentais do trabalho do Lume não só a busca de uma compreensão expandida de corpo, mas também a integração e a articulação das diversas dimensões e dos diversos elementos que compõem esse corpo em relação de troca. A partir da necessidade de trabalhar o ator como um todo, conectando seu corpo físico a sua sensibilidade e a sua energia, o treinamento do Lume foi sendo lapidado buscando uma relação mais harmoniosa entre a técnica e a expressão. Em minha formação, e no percurso desta investigação artístico-acadêmica, identifico as mesmas necessidades de treinamento e as questões norteadoras que dispararam o processo de pesquisa do Lume e que Burnier explicita em sua tese.

(40)

Como desenvolver um trabalho que permitisse uma elaboração e codificação técnica e, ao mesmo tempo, o fluir da plenitude do ator? Como nesta busca conseguir uma estrutura objetiva, prática e técnica que trabalhasse simultaneamente a dinamização de energias potenciais do ator e a sua capacidade de articular e modelar os instrumentos de sua arte? Essas questões estiveram nos primórdios deste trabalho. (BURNIER, 2009, p. 26)

Conduzido por essas motivações, Burnier inicialmente dividiu seus procedimentos em dois tipos de prática: o treinamento energético – no qual o ator busca desconstruir tudo o que é conhecido e viciado em seu corpo, de forma a despertar energias potenciais latentes em seu ser – e o treinamento técnico – em que o ator trabalha na coordenação e na articulação dos aspectos formais do seu corpo, organizando e disciplinando essas intensidades de energia. Porém, ambos representam duas facetas de um mesmo treinamento pessoal, em que o ator busca despertar, dinamizar e dilatar as energias potenciais latentes em seu próprio corpo, modelando e articulando essas intensidades corpóreas em ações físicas e vocais. Além disso, “todo trabalho está baseado em uma premissa fundamental: o ator como criador. (…) como criador fundamental, o ator como criador e re-criador de seu próprio corpo/voz, seu próprio texto, seu próprio espetáculo.” (FERRACINI, 2006, p. 48). Assim, o trabalho do ator deve partir de sua própria pessoa, de seu próprio corpo em movimento e em relação com o outro, para criar os materiais essenciais de sua arte. Desse modo, na perspectiva do Lume Teatro, o treinamento é entendido como o momento anterior à elaboração de personagens e independente de qualquer dramaturgia preestabelecida, em que o ator trabalha a si mesmo, partindo do seu próprio corpo e das energias potenciais latentes em seu ser.

É importante dizer que essa divisão entre treinamento técnico e treinamento energético é, simplesmente, para facilitar a abordagem do assunto. Dentro de trabalhos técnicos, o ator deve buscar o contato com suas energias e descobrir que “portas” aquele trabalho técnico abre em sua pessoa. O contrário também é válido: para trabalhos energéticos o ator nunca poderá esquecer da técnica, ou

(41)

41

seja, dos aspectos que dão forma precisa às suas ações físicas e vocais no tempo e no espaço. A diferença básica é, simplesmente, o enfoque que é dado por um e por outro.(FERRACINI, 2003, p. 128)

Então, o trabalho do Lume estruturou-se a partir de uma perspectiva sobre o corpo que implica, consequentemente, um modo de trabalhar suas dimensões interior e exterior como elementos indissociáveis, que coexistem num mesmo plano, numa relação não hierárquica de cocriação e de composição. Dessa forma, não há supervalorização de um aspecto sobre o outro no corpo do ator, e nem mesmo em seu treinamento – ao mesmo tempo técnico e energético –, mas a consciência da presença e da conexão desses elementos a todo momento. Assim, no treinamento do Lume, é possível partir de ações físicas, movimentos corporais ou mesmo de sentimentos, de imagens e de sensações. Qualquer elemento pode ser um ponto de partida, desde que haja discernimento do enfoque e que se busque uma conexão entre as dimensões interior e exterior, ou seja, entre o que se passa dentro e o que acontece fora. Acredito que esse princípio de horizontalidade, ou de não-hierarquia, é um dos fundamentos que tornam a pesquisa do Lume tão acessível a artistas que atuam em diferentes áreas e com formações diversas, pois direciona o foco do trabalho para o próprio intérprete criador e para suas escolhas, estimulando a busca por recursos e por estratégias pessoais de treinamento que promovem autonomia e liberdade para apropriar-se do conhecimento compartilhado, carregando as experiências em seu próprio corpo.

Também é importante dizer que a pesquisa do Lume é uma forma de pesquisa-em-vida, em movimento dinâmico e, assim como suas práticas e procedimentos modificam-se ao longo do tempo, as palavras e os conceitos que acompanham seu processo de investigação também passam por constantes transformações e atualizações. Então, ao longo de mais de 30 anos de história, o próprio entendimento das dimensões do corpo e de suas fronteiras invisíveis também foi ampliado e redimensionado, assim como a relação entre os aspectos técnicos e energéticos na prática de treinamento do ator, além das outras

(42)

possibilidades de conexão que ele pode explorar em sua atuação. É possível dizer que há muito mais dimensões desse corpo-em-vida do que podemos nomear como interior e exterior, dentro e fora, corpo físico e corpo energético, e que todas essas fronteiras são permeáveis, pois a própria existência de um corpo-em-vida pressupõe uma troca com o meio. Nesse movimento de troca, de atravessamento, em que dentro e fora confundem-se, o corpo não mais se define por uma forma delimitada, por suas bordas, mas por suas relações de troca, por linhas de conexão com outros corpos. Em seus Ensaios de atuação, Renato Ferracini desenha com clareza esse conceito: “O corpo, portanto, é um mapa, um campo de forças em atravessamento dinâmico. As forças, por princípio, são relacionais. Assim, o mapa corpóreo de forças somente pode ser potencializado na relação com outro mapa corpóreo de forças” (FERRACINI, 2013, p.36).

É interessante observar que, na perspectiva de trabalho do Lume, essa concepção expandida de corpo está associada a uma concepção expandida de teatro, que também permanece em constante atualização. Nesse sentido, a pesquisa do Lume apresenta uma visão do teatro como experiência que acontece entre o ator e o espectador, o teatro como uma arte do encontro e que, assim como todas as artes performáticas, apresenta a particularidade essencial da presença. Ou seja, para que a experiência do teatro aconteça, é necessário que ator e espectador estejam vivos, presentes, um diante do outro, partilhando mesmo espaço e mesmo tempo. O ator, nesse teatro do encontro, busca atingir a percepção do espectador, mas para isso ele precisa ser capaz de despertar suas próprias percepções. “De fato, para um ator de nada serve trabalhar o corpo, se ele não se constituir em um meio pelo qual pode entrar em contato consigo mesmo e com o espectador” (BURNIER, 2009, p. 24). Portanto, a presença do ator no teatro é sempre relacional e não se limita somente a uma capacidade pessoal do artista em expressar seus impulsos internos, ou representar formas codificáveis em signos capazes de gerar sentido. Mas compreende, principalmente, uma potência de relação, de conexão consigo e com o outro, e os diversos elementos que compõem a experiência, uma

(43)

43

“potência de afetar e ser afetado”, como diria Ferracini (2013):

O corpo material – transbordado e atravessado por forças – somente se potencializa e se intensifica na relação com o outro, e por ser esse mapa de invisibilidades não pode mais ser definido por sua subjetividade individualizante, mas pelo grau de potência que ele produz enquanto mapa de forças em relação ao encontro com outro ou o encontro com o redimensionamento de suas próprias forças. E o que é esse grau de potência? É um certo “poder de afetar e ser afetado” (FERRACINI, 2013, p.36)

Dessa forma, ao entrar em contato com o treinamento do Lume, despertei minha percepção para a potência do encontro com o outro (sejam o tempo, o espaço, um objeto, o espectador), capaz de intensificar minha relação com o corpo e, portanto, transformar minha atuação como intérprete criadora. Acredito que essa concepção do corpo em sua potência de encontro e a capacidade de “afetar e ser afetado” sejam mais um princípio que rege a pesquisa do Lume Teatro e que pode apontar um caminho para o entendimento da expressividade na dança.

Imagino, ainda, se seria possível pensar a expressividade como a conexão, ou o encontro entre aspectos internos, sensíveis, invisíveis de um corpo e a sua manifestação exterior, visível, perceptível. No caso da dança, podemos entender essa conexão de várias maneiras e em diversos graus de abstração. Podemos identificar, por exemplo, a relação do bailarino com o seu próprio corpo e a percepção das sensações internas que impulsionam e que desenham seus movimentos no espaço. Ou, ainda, debruçar-nos sobre a relação de um intérprete com elementos externos a si, mas que influenciam em sua atuação, como a arquitetura do ambiente ou a presença do espectador. De fato, a percepção que o bailarino adquire e o grau de atenção que ele emprega à conexão entre os aspectos visíveis e invisíveis em sua atuação exerce um grande papel no desenvolvimento de seu potencial expressivo. Quanto mais recursos o intérprete dispuser para articular o

(44)

encontro entre esses elementos, maior será sua potência de composição. A questão, na condução de um processo de produção de expressividade, seria saber quais são esses recursos e de que maneiras eles podem ser trabalhados e articulados para promover tal conexão.

1.3.1 Procedimentos do treinamento do Lume Teatro

O treinamento pré-expressivo pode ser conduzido a partir de diferentes procedimentos, mas um dos elementos primordiais desse trabalho são as ações físicas, entendidas não somente em sua forma exterior, mas também enquanto impulso ou atitude interior. Toda ação física projeta-se no espaço de forma visível, mas carrega em si uma intenção, um impulso, uma vibração interna. O treinamento é conduzido a partir dessas ações físicas, que podem ser exploradas repetidamente em diversas variações, como a ação de cair em diferentes direções, por exemplo. As ações também podem ser trabalhadas de forma progressiva, integrando componentes num fluxo contínuo, como a ação de movimentar todas as articulações do corpo, acrescentando uma por vez. Durante esse trabalho, o ator vai aumentando o grau de complexidade de sua performance, à medida que acrescenta outros elementos além das próprias ações corpóreas, como a relação com o tempo, o espaço e os outros atores. Ou seja, a partir de uma estrutura formal, concreta e objetiva, como a repetição de ações físicas, o ator vai acrescentando outras camadas de percepção do seu próprio corpo em movimento e trabalhando com a conexão entre a dimensão interior e a exterior. Nesse sentido, os procedimentos de repetição e de progressão gradual do treinamento do Lume assemelham-se aos da aula de técnica de Holly; porém, em vez de utilizar sequências de movimento preestabelecidas, o ator utiliza-se das ações físicas e vai construindo sua ordenação livremente. Nesse momento, o corpo adquire segurança na execução das ações e seu foco de atenção pode se voltar para a conexão entre os impulsos internos e sua projeção externa, nas ações físicas, e para a relação com os diversos elementos

(45)

45

que interferem nessa conexão. Nesse treinamento, o ator desenvolve uma técnica pessoal, um modo específico e particular de coordenar os componentes de sua ação física. Ao contrário da técnica em dança, em que esse modo específico de coordenar os elementos que compõem o movimento costuma ser compartilhado e aprimorado em conjunto, através de formas e dinâmicas de movimento preestabelecidas.

Intensificação um – O ator não apreende uma técnica a priori, mas deve se permitir um espaço-tempo para realizar experiências de limites para uma possível desestruturação de seus padrões e intensificação de seu corpo – podemos chamar isso de treinamento em sua forma mais ampliada – gerando formas de força que em seu conjunto e em recriação constante passam a ser sua técnica singular de atuação. (FERRACINI, 2013, p.30)

Durante o trabalho com as ações físicas, outros procedimentos podem ser acrescentados à dinâmica de treinamento para estimular a busca por experiências-limite e maneiras extracotidianas de relação com o corpo. Como foi discutido acima, para atingir a percepção do espectador, o ator deve despertar suas próprias percepções e realizar um mergulho em experiências de limite, de fronteira, que o obriguem a ressignificar e a ressensibilizar seu próprio corpo. Uma estratégia muito utilizada é a de realizar ações com intenções opostas simultaneamente, como mover-se muito rápido por dentro e muito lento por fora, por exemplo, o que gera um paradoxo que não tem resolução, mas impulsiona o ator na percepção de outras sensações presentes no próprio corpo e de novos sentidos para suas ações. Outro procedimento que se aplica na condução do treinamento são as pausas dinâmicas, ou seja, momentos em que o ator é impelido a parar bruscamente seu movimento exterior, mas continuar movimentando-se internamente, permitindo o fluxo livre de suas vibrações internas. Assim, é possível ganhar mais consciência dos impulsos internos e da própria conexão com as ações físicas. Às vezes, essas experiências-limite também podem acontecer através de procedimentos de exaustão, em que o ator coloca seu corpo em determinada situação extra-cotidiana por um longo período

Referências

Documentos relacionados

O trabalho de migrantes de Fagundes- PB nas usinas Maravilha e Santa Tereza, em Pernambuco aborda as mudanças estruturais do Sistema Capitalista, que atingem a questão do mercado

Quando mudei para o Brasil, uma das grandes diferenças que percebi é que a taxa equivalente ao overdraft, o cheque especial, era dez vezes mais no Brasil do que na

Postura contrária foi encontrada com a colega de trabalho, já que as duas trabalham na escola Beta, onde a professora (E) diz.. que seria importante conhecer esse aluno, pois

Outro ponto importante referente à inserção dos jovens no mercado de trabalho é a possibilidade de conciliar estudo e trabalho. Os dados demonstram as

A Psicologia, por sua vez, seguiu sua trajetória também modificando sua visão de homem e fugindo do paradigma da ciência clássica. Ampliou sua atuação para além da

De seguida, vamos adaptar a nossa demonstrac¸ ˜ao da f ´ormula de M ¨untz, partindo de outras transformadas aritm ´eticas diferentes da transformada de M ¨obius, para dedu-

O Gráfico M-N apresenta um conjunto de pontos (N,M) obtidos a partir destas três propriedades físicas medidas para os principais minerais na constituição das

❏ O produto e não haja informações na literatura científica, ou esta indique a necessidade da quantificação do fármaco inalterado e do metabólito, o protocolo de estudo poderá