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Disciplina de Mímese e Dança com Ana Cristina Colla

CAPÍTULO 2: TERRITÓRIOS DA PRÁTICA

2.1 Diários de trabalho: procedimentos diversos e princípios em comum

2.1.4 Disciplina de Mímese e Dança com Ana Cristina Colla

25 de março de 2015

Hoje começamos com uma manipulação do outro, trazendo a imagem do líquido sinovial entre as articulações. Foi uma dinâmica parecida com a do trabalho a partir da técnica Klauss Vianna, proposta nos outros dias do curso7: iniciamos no

chão, mobilizando as articulações por meio das imagens, trabalhando as transferências de peso e a sustentação nos apoios, subindo de nível e dinamizando. Mas, apesar da semelhança, a imagem e a sensação líquida transformou toda a qualidade de peso e força dos movimentos, e eu cheguei num lugar bem diferente dos outros dias. Senti como se não fosse eu quem estivesse conduzindo meus movimentos. Quer dizer, como se não fosse o sistema consciente, racional, mas algum sistema parassimpático, inconsciente. Isto se conectou diretamente com a instrução seguinte da Cris, que foi trabalhar o corpo como um saco de ossos, conectados pelas articulações, mas sem musculatura, como se fôssemos marionetes, conectados por fios invisíveis que eram puxados. Este trabalho transforma toda a nossa noção de peso, esforço, centro de gravidade, eixo. Imediatamente cria-se também uma qualidade expressiva, ou seja, uma certa maneira específica de se relacionar, olhar, conectar-se com o fora. Este modo de conectar-se com o próprio movimento e relacionar-se com o fora gera uma espécie de lógica própria deste corpo, desta figura, uma lógica de ação que se diferencia por completo da lógica do líquido sinovial, por exemplo. É quase como uma maneira própria de operacionalizar todos os elementos da ação, da dança. É um corpo pensamento que se evidencia como mais uma camada de movimento.

A este trabalho de saco de ossos adicionamos chicotadas e condensamentos bastante precisos e firmes, criando formas com o corpo, que poderiam se corporificar nas nossas figuras, ou desmontar como um saco de ossos novamente. Então fizemos uma brincadeira, jogando com todas estas diferentes qualidades e lógicas de movimento. É interessante perceber aqui como o fluxo, em constante movimento e transformação, também se alimenta das quebras de dinâmica, dos impulsos, das

7 A disciplina de Mímese e Dança foi ministrada para o curso de pós-graduação em Artes da Cena pela Prof.ª. Ana Cristina Colla, em parceria com a professora convidada Drª. Ana Clara Amaral, que realizou o trabalho de preparação corporal, no início do curso, a partir dos princípios da técnica Klaus Vianna.

pausas, do próprio enrijecimento, no sentido tônico muscular, e do condensamento em formas. Aí podemos diferenciar o fluxo enquanto propriedade física: dinâmica de movimento contínuo, fluído e ininterrupto, e o fluxo enquanto energia vital que percorre tanto a forma “parada” quanto “em movimento”: o sopro, o chi, a seiva, corrente de vida que nos atravessa e que por nós é atravessada. Presença e organicidade nas figuras e formas.

27 de março de 2015

Neste dia nós conversamos. Eu falei sobre a integração entre o trabalho de preparação corporal inicial - com a técnica Klauss Vianna proposta e todas as outras estratégias vindas da educação somática - com o trabalho da mímese. A princípio, pensamos na mímese como forma, mas acima de tudo ficou bem claro desde o primeiro dia que a mimese é encontro. Talvez o encontro com a forma. E, ao mobilizarmos as articulações e abrirmos muito espaço interno, foi possível criar um território para esta conexão, estar permeável para o encontro. Encontro que precisa de tempo, de espaço, de muita sensibilidade e sutileza. Encontro que permite que a forma seja preenchida de energia, de seiva, de fluxo, de sopro.

Acho que, ao final, o grande presente que eu recebi com o trabalho de mímese e dança foi perceber como ir de encontro às formas. Porque as formas são muito importantes na dança. Eu quero criar formas, meu corpo quer desenhar e ser desenhado, mas acima de tudo, é preciso que estas formas tenham vida, fluxo, espaços internos por onde a seiva e o sopro correm.

A disciplina de Mímese e Dança foi mesmo um atravessamento potente e positivo no processo de investigação prática da pesquisa. Sinto que, até este momento, eu estava em busca de uma harmonia na estrutura do treinamento técnico e expressivo, e que encontrei a estratégia de abertura, de disponibilidade e de permeabilidade de um corpo passagem, como possibilidade para articular esses diferentes aspectos em minha prática. No entanto, algo me escapava e fazia falta. Eu estava fascinada pelos espaços vazios e em como preenchê-los com energia; mas havia a questão da forma, em como dar forma a essa energia e a esses espaços vazios. Eu não sabia como lidar com as formas, era uma relação conflituosa, de apego e de rejeição. Ao mesmo tempo em que eu reconhecia e redescobria as mesmas formas codificadas da dança moderna, das danças brasileiras, dos meus padrões de movimento pessoais, eu também negava essas referências, afastava-me disso em busca de outras potencialidades. O que eu não percebia era a potência que essa história pessoal, essa memória corporal registrada em mim poderia significar num processo de treinamento técnico e expressivo.

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Acredito que a conclusão do diário de trabalho seja suficiente para representar a síntese desse momento, que foi perceber as formas como formas-em- vida e a possibilidade em ir de encontro a elas com a permeabilidade de um corpo em fluxo, que atualiza as mesmas formas a cada instante, recriando seus sentidos e sensações em constante transformação. Tal situação relembra o grand battement das aulas de Holly e a possibilidade de preencher as mesmas formas conhecidas com outros conteúdos, com outros sentidos e com outras sensações. O pintor Wassily Kandinsky discute a questão da forma nas artes visuais e traz uma interpretação interessante sobre a construção da forma exterior a partir de uma necessidade interior, questionando a manutenção e transformação das formas artísticas que se estabelecem ao longo do tempo.

A forma está invariavelmente ligada com o tempo, ou seja, é relativa, já que não passa de um meio hoje necessário pelo qual a manifestação atual se comunica e ressoa. A ressonância é, pois, a alma da forma, que só por ela pode vir à luz, e age do interior para o exterior. A forma é a expressão exterior de um conteúdo interior. Eis porque não se deve divinizar a forma. Só se deve lutar pela forma na medida em que ela pode ajudar a exprimir a ressonância interior. (KANDINSKY, 1996, p. 142).

Esse atravessamento provocou uma necessidade de abordar mais profundamente o trabalho com as formas, com os códigos formais de movimento e, por isso, o procedimento das modelagens entrou em minha prática de treinamento como uma estratégia para ressignificar e ressensibilizar as formas que eu já conhecia. A partir de então, foi possível criar uma outra relação com as formas, os códigos e os padrões de movimento, e perceber que esses aspectos exteriores não passam de um desdobramento do interior que se projeta no espaço do corpo do bailarino. Na visão de Kandinsky, para apreciarmos e concebermos as formas, é preciso compreendê-las também como elemento relativo, transitório, quase como a ideia de um corpo passagem. Assim, “devemos colocar-nos em face de uma obra de modo a permitir que sua forma atue sobre nossa alma. E, através de sua forma, de

seu conteúdo (espírito, ressonância interior) (KANDINSKY, 1996, p. 144). Portanto, a forma define-se também como um canal, uma via através da qual podemos entrar em contato com a vibração interior.

Até agora, não tenho me debruçado para descrever detalhadamente os procedimentos práticos, pois penso que as reflexões estão em outro nível de análise. Mas, nesse caso, acredito que é relevante uma explicação sobre o procedimento com as modelagens. É um exercício em que começamos de pé, numa postura neutra e, a partir da sensação do centro motor, o calor e a energia que se irradia dessa região, vamos construindo uma forma corporal, trilhando o trajeto do centro para as extremidades, passando por cada articulação do caminho. Ao chegarmos numa forma expandida, projetamos os vetores que se direcionam do corpo para o espaço, juntamente com o olhar, indo até o limite de sua amplitude. Em seguida, vamos recolhendo a forma ao centro, trilhando novamente o caminho entre as articulações, no sentido inverso, a partir das extremidades. Há muitas variações desse procedimento, mas essa é a estrutura básica. Nas atividades com as alunas de Graduação em Dança, dentro do Programa de Estágio Docente, na disciplina de técnica, eu costumava sugerir que elas alternassem entre formas livres, espontâneas, não planejadas e formas codificadas – das aulas de técnica ou de seu repertório pessoal – para experimentar outras maneiras de chegar e de sentir as mesmas formas. Toda essa investigação com o procedimento das modelagens auxiliou-me a compreender e a tratar as formas de uma nova maneira, e estimulou- me a encontrar os parâmetros que seriam importantes estabelecer como princípios fundamentais no trabalho com as formas, e que Kandinsky sintetiza perfeitamente.

Enfim é necessário estabelecer este princípio: o essencial não é que a forma seja pessoal, nacional, de belo estilo, que corresponda ou não ao movimento geral da época, que se aparente ou não a um grande número ou a um pequeno número de formas, que seja isolada ou não; o essencial na questão da forma, é saber se ela

nasceu de uma necessidade interior ou não (KANDINSKY, 1996, p.

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2.1.5 Treinamento Pessoal – primeiro semestre de 2015