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Procedimentos do treinamento do Lume Teatro

CAPÍTULO 1: TÉCNICA & EXPRESSIVIDADE

1.3.1 Procedimentos do treinamento do Lume Teatro

O treinamento pré-expressivo pode ser conduzido a partir de diferentes procedimentos, mas um dos elementos primordiais desse trabalho são as ações físicas, entendidas não somente em sua forma exterior, mas também enquanto impulso ou atitude interior. Toda ação física projeta-se no espaço de forma visível, mas carrega em si uma intenção, um impulso, uma vibração interna. O treinamento é conduzido a partir dessas ações físicas, que podem ser exploradas repetidamente em diversas variações, como a ação de cair em diferentes direções, por exemplo. As ações também podem ser trabalhadas de forma progressiva, integrando componentes num fluxo contínuo, como a ação de movimentar todas as articulações do corpo, acrescentando uma por vez. Durante esse trabalho, o ator vai aumentando o grau de complexidade de sua performance, à medida que acrescenta outros elementos além das próprias ações corpóreas, como a relação com o tempo, o espaço e os outros atores. Ou seja, a partir de uma estrutura formal, concreta e objetiva, como a repetição de ações físicas, o ator vai acrescentando outras camadas de percepção do seu próprio corpo em movimento e trabalhando com a conexão entre a dimensão interior e a exterior. Nesse sentido, os procedimentos de repetição e de progressão gradual do treinamento do Lume assemelham-se aos da aula de técnica de Holly; porém, em vez de utilizar sequências de movimento preestabelecidas, o ator utiliza-se das ações físicas e vai construindo sua ordenação livremente. Nesse momento, o corpo adquire segurança na execução das ações e seu foco de atenção pode se voltar para a conexão entre os impulsos internos e sua projeção externa, nas ações físicas, e para a relação com os diversos elementos

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que interferem nessa conexão. Nesse treinamento, o ator desenvolve uma técnica pessoal, um modo específico e particular de coordenar os componentes de sua ação física. Ao contrário da técnica em dança, em que esse modo específico de coordenar os elementos que compõem o movimento costuma ser compartilhado e aprimorado em conjunto, através de formas e dinâmicas de movimento preestabelecidas.

Intensificação um – O ator não apreende uma técnica a priori, mas deve se permitir um espaço-tempo para realizar experiências de limites para uma possível desestruturação de seus padrões e intensificação de seu corpo – podemos chamar isso de treinamento em sua forma mais ampliada – gerando formas de força que em seu conjunto e em recriação constante passam a ser sua técnica singular de atuação. (FERRACINI, 2013, p.30)

Durante o trabalho com as ações físicas, outros procedimentos podem ser acrescentados à dinâmica de treinamento para estimular a busca por experiências- limite e maneiras extracotidianas de relação com o corpo. Como foi discutido acima, para atingir a percepção do espectador, o ator deve despertar suas próprias percepções e realizar um mergulho em experiências de limite, de fronteira, que o obriguem a ressignificar e a ressensibilizar seu próprio corpo. Uma estratégia muito utilizada é a de realizar ações com intenções opostas simultaneamente, como mover-se muito rápido por dentro e muito lento por fora, por exemplo, o que gera um paradoxo que não tem resolução, mas impulsiona o ator na percepção de outras sensações presentes no próprio corpo e de novos sentidos para suas ações. Outro procedimento que se aplica na condução do treinamento são as pausas dinâmicas, ou seja, momentos em que o ator é impelido a parar bruscamente seu movimento exterior, mas continuar movimentando-se internamente, permitindo o fluxo livre de suas vibrações internas. Assim, é possível ganhar mais consciência dos impulsos internos e da própria conexão com as ações físicas. Às vezes, essas experiências- limite também podem acontecer através de procedimentos de exaustão, em que o ator coloca seu corpo em determinada situação extra-cotidiana por um longo período

de tempo como, por exemplo, ficar 4 horas movendo-se ininterruptamente, ou permanecer 2 horas absolutamente imóvel. Nesse momento, o ator também desenvolve uma escuta mais refinada de seu próprio corpo, observando uma série de sensações, de movimentos e de impulsos que partem do seu corpo e sobre os quais ele não tem controle absoluto.

Além desses aspectos pessoais do trabalho com o próprio corpo, o treinamento do Lume também busca estratégias para potencializar o encontro com o outro e a experiência do jogo, de afetar e de ser afetado. Na medida em que alcança uma percepção mais expandida de si mesmo, através das experiências-limite em que se coloca, o ator parte para o movimento de troca, de contato daquilo que vibra em seu corpo com o que vibra no corpo do outro. Nesse sentido, a dinâmica com as ações físicas também pode ser direcionada para a sua projeção externa, com o foco nas formas que adquirem no espaço e na relação com as pessoas que ocupam e interagem nesse ambiente. Como procedimentos concretos, os atores podem realizar improvisações em coletivos, sem necessariamente seguir roteiros, mas sim, o fluxo das ações e das reações geradas pelo encontro com o outro – que pode ser compreendido em seu sentido mais amplo, contemplando pessoas, objetos, sons, imagens. Mais uma vez, torna-se possível entrar em contato com o que é involuntário e o que é espontâneo no corpo desse encontro, refinando a escuta do intérprete para os elementos externos que atravessam e transformam suas percepções internas.

Então, podemos verificar no treinamento do Lume que o ator está constantemente desafiando-se em busca de ampliar suas percepções e de alargar os limites e as possibilidades do próprio corpo, para desenvolver seu potencial de criação. Mas, apesar de ser sempre uma busca pessoal, esse trabalho pressupõe abertura e permeabilidade para a relação, o encontro e a capacidade de ser afetado. O intérprete atua, portanto, numa relação de composição com todas essas forças em atravessamento, buscando intensificar o encontro entre os aspectos visíveis e invisíveis em sua atuação para desenvolver seu potencial expressivo, ou seja, sua

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capacidade de afetar e de ser afetado.

Intensificação dois – O foco de suas experiências [do ator] deve estar voltado para as microsensações, microafetos. Sua potência deve estar localizada, territorializada em sua capacidade de ser afetado, ou seja, em sua capacidade de deixar-se afetar pelo espaço, tempo, outro. (…) O ator, portanto, não é um fazedor profissional de ações, pois este não é o seu objetivo primeiro (apreender técnicas codificadas), mas é um atleta afetivo. Aquele atleta que se deixa afetar, que se territorializa em seu limite de sensação, recompondo-a. (FERRACINI, 2013, p.30)