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3.1 Direitos sexuais e reprodutivos: uma necessidade humana inalienável

3.1.4 Autonomia pessoal

Como vimos no primeiro ponto deste trabalho, os processos de expropriação dos corpos das mulheres minaram o exercício de sua autonomia no campo da sexualidade e reprodução via “mercantilização dos direitos sociais, da natureza e da própria humanidade em mercadoria, como ocorre com a mercantilização do corpo das mulheres” (BARROSO, 2018, p. 311).

Quando partimos para a análise concreta da realidade de violência estrutural e sistêmica imposta ao segmento de mulheres (considerando-se realidades sociais, políticas e culturais distintas), o princípio da autonomia pessoal é tomado por uma série de questionamentos, limites, e, em certa medida, contradições – que o coloca em uma linha tênue entre o debate positivista e a necessidade de mediação entre o singular e o universal30 - a partir de uma análise crítica da autodeterminação no campo da sexualidade e reprodução humana.

Este passeio entre singularidade e universalidade da condição subjetiva e objetiva da opressão e exploração das mulheres é proposto por Camurça (2007). A autora, apesar de situar os elementos da dominação como uma experiência comum à todas as mulheres, elucida que a dominação-exploração, por se processar no interior das relações sociais, assume diferentes demarcações conforme classe social e identidade ético-racial, variando também em decorrência do contexto histórico e “determinações decorrentes das relações econômicas e políticas e da cultura política de cada sociedade, comunidade, territórios em que as mulheres se situam” (p. 20). Dessa forma, para o que nos interessa aqui, é “a posição social das mulheres que determina se elas estão ou não aptas a tomar decisões sexuais e reprodutivas com dignidade” (CORRÊA E PETCHESKY, 1996, p. 164), o que, de maneira geral, tem colocado a autonomia pessoal em um terreno contraditório.

Como nos mostra Breilh (2006) no campo da saúde, assim como noutros, a noção de liberdade (associada a autonomia) é forjada a partir da defesa da noção da autogestão pessoal, já que “quem pode negar a força da autogestão e a importância da autoconfiança pessoal como instrumento de libertação e intervenção? Entretanto, elas só funcionam em sentido democrático quando empregadas como alimento da organização coletiva, e não como seu substituto”.

Baseado nesta perspectiva crítica defendida por Breilh, no Brasil, o Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, desenvolveu, pioneiramente, ainda na década de 1980, processos de

30 “As relações entre a universalidade, a particularidade e a singularidade constituem, naturalmente, um antiquíssimo problema do pensamento humano. Se não distinguirmos, pelo menos em certa medida, essas categorias, se não as delimitarmos reciprocamente e não adquirirmos certo conhecimento da mútua superação de uma na outra, ser-nos-á impossível orientarmo-nos na realidade, ser-nos-á impossível uma práxis, mesmo no sentido mais cotidiano da palavra” (LUKÁCS, 1978, p.05 apud SANTOS, 2005). Assim, há, portanto, um processo recíproco de determinação entre sociabilidade e individualidade.

atenção primária com enfoque na autonomia das mulheres, pautados pela crítica ao modelo médico gineco-obstétrico hegemônico (DINIZ, S/A). Entretanto, o foco no corpo31, a redução

da educação em saúde como partilha de informações, e em alguns momentos, a individualização das demandas, aparecem como desafios a serem superados.

Nosso modelo vem propondo uma ‘medicina suave’ — dos tratamentos naturais e menos agressivos — e de preocupação com o conhecimento do corpo como um dos elementos centrais para a saúde. A usuária é percebida como um indivíduo, o “sujeito da ação de saúde, capaz de entender, decidir e cuidar do próprio corpo e da própria vida” (CFSS, 1994-96). Neste contexto, o trabalho com contracepção prioriza a ampliação da autonomia das mulheres diante dos médicos e dos parceiros. A consulta, com forte conteúdo educativo, enfatiza a partilha de informação sobre o corpo e seu funcionamento, buscando promover tanto o conhecimento quanto a “amizade” com o próprio corpo (DINIZ, S/A, grifos meus).

Por outro lado, o coletivo inaugurou a noção da mulher enquanto sujeito participe das ações de saúde, negando o exercício de figuras de autoridade na fiscalização do corpo feminino, de suas características e histórias.

De modo geral, os profissionais de saúde tendem a reconhecer a necessidade da autonomia pessoal como indispensável para o enfrentamento da violência (especialmente quando externa aos serviços). Esta noção remete à autonomia um espaço individualizador e reducionista que se aparta das reais necessidades de saúde dos sujeitos e tende a desresponsabilizar os serviços de saúde quanto ao atendimento das demandas em uma perspectiva integral.

Neste debate, outro ponto importante, e que foi elucidado por Guedes e Fonseca (2011) é a perspectiva educativa, como meio para se alcançar a autonomia, e seus significados na saúde. As autoras relembram, a partir do debate da obra Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire, que no “contexto teórico da educação para a conscientização, a autonomia é um dos temas centrais, sendo condição sócio histórica de um indivíduo ou coletividade que tenha se libertado, se emancipado das limitações que restringem ou anulam sua liberdade” (p. 1704). Vale lembrar, entretanto, que na sociedade burguesa a emancipação política é o último estágio possível, sendo um desafio contemporâneo utilizar o acesso à autonomia (mesmo que relativa, pois é

31 Paralelamente, é importante frisar que este trabalho compreende que a princípio da autonomia perpassa pelo conhecimento sobre o próprio corpo, pois que historicamente o corpo feminino tem sido colocado enquanto lugar de pecado/tabu, levando muitas mulheres ao pleno desconhecimento sobre questões que envolvam sua sexualidade e reprodução.

incompatível o exercício de uma autonomia plena às mulheres na sociedade de classes) como um dos catalisadores para o alcance da emancipação humana32.

Assim, no campo dos direitos sexuais e reprodutivos, a educação em saúde, a informação, o respeito e a autodeterminação constituem-se apenas como partes do processo de construção da autonomia dos sujeitos, sendo necessário que este princípio retroalimente a organização coletiva, de modo que ao final ele sirva à transformação social. Defende-se então a autonomia enquanto a capacidade e as condições concretas (sociais, culturais, econômicas) que possibilitam às mulheres tomarem livremente as decisões que afetam as suas vidas, as permitindo também o exercício de agir segundo tais decisões (FONSECA e GUEDES, 2011).

Na cena contemporânea devemos situar que o exercício, ou não, da autonomia, é experimentado de diferentes formas pelas mulheres de classes sociais distintas, bem como por pessoas de diferentes raças/etnias. Esta noção explicita que para umas a autonomia é relativa (no caso de mulheres com melhores condições socioeconômicas), para outras a autonomia tem um preço e para muitas requisitá-la traz consequências concretas.

Para exemplificar tal constatação, trago aqui a experiência comum de muitas mulheres, relatadas e estudadas em diversas pesquisas qualitativas e etnográficas no campo da saúde, que é vivência da violência obstétrica (entendida aqui como uma das expressões/manifestações da violência institucional). É comum que os estudos apontem que quando uma mulher se recusa a realizar um procedimento indicado por profissionais de saúde (especialmente médicos), o que em tese enfatizaria o exercício de sua autonomia pessoal; e quando essa recusa é “aceita” pelos profissionais, estes buscam formas de punir as mulheres durante o processo em que se encontram na instituição por estas não seguirem as “recomendações médicas”. Estas punições variam, e podem se expressar das mais diversas formas, veladas ou não, conformando um conjunto de práticas institucionalizadas que vão desde a negligência na oferta do cuidado até gravíssimas punições físicas e/ou psicológicas33 (como incisões e suturas sem anestesia, utilização de procedimentos mais dolorosos mesmo tendo outras formas de cuidado à disposição, constantes ameaças e apelo psicológico baseado na assertiva: “se seu filho morrer a culpa vai ser sua que não está fazendo o que a gente diz”, por exemplo).

Este percurso assinalado demonstra que um dos desafios postos à política de saúde é que além de produzir saúde, esta deve contribuir também para a ampliação do grau de

32 “A luta pela emancipação unifica todas as utopias construídas para libertar o ser humano da exploração econômica, da dominação política, do cerceamento da cultura e da subjetividade e das relações ecológicas anti- humanas, tudo isso para possibilitar a libertação da vida e do pensamento, a vigência do bem comum e a construção de sociedades mais saudáveis” (BREILH, 2006, p. 178).

autonomia das pessoas, o que em tese incluiria a autonomia como um dos objetivos e finalidades centrais dos serviços à disposição da população (CAMPOS e CAMPOS, 2012).