• Nenhum resultado encontrado

3.1 Direitos sexuais e reprodutivos: uma necessidade humana inalienável

3.1.3 Igualdade

Em uma sociedade de destruição generalizada29, a luta por igualdade parece cada vez mais urgente. Como apontamos em momentos anteriores, o fato de haver interesses históricos distintos (os chamados projetos de sociedade em disputa), inscreve o fortalecimento de uma tendência hegemônica, disseminada pela agenda capitalista liberal, de reducionismo do princípio de igualdade a uma conquista formal nos marcos da democracia burguesa. Diante deste reducionismo, que busca o ocultamento da fonte originária de toda inequidade social, produzida pelo modo de produção capitalista, inscrevemos aqui a necessidade de defesa da igualdade como motor da luta anticapitalista.

Neste percurso, há de se considerar que o princípio da liberdade aparece intimamente relacionado ao da igualdade, na medida em que, o primeiro é considerado pela tradição marxista (sob a qual se sustenta este trabalho) como um valor ético-emancipador central. De tal modo, compartilhamos da concepção desta tradição empreendida de que a liberdade está ancorada na participação e socialização da riqueza socialmente produzida pelos indivíduos sociais, elevando conscientemente o gênero humano a realização de sua essência libertária.

Em termos históricos, situamos que a partir do século XIX, houve um retorno e reformulação, inspirado nas ciências naturais, do chamado determinismo biológico, que permitiu conciliar “o princípio da abolição de privilégios de nascimento com a persistência de privilégios de sexo, cor, classe e cultura” (p.117). Nesse caso, essa reconciliação se torna uma

das possíveis responsáveis por jogar um véu sobre o fato empírico de que alguns sujeitos não nascem “livres e iguais”, possuindo, portanto, acesso diferenciado aos direitos. Sob a influência do determinismo em tela, retira-se o status de condições sociais desiguais de acesso aos direitos, e se insere a noção de condições sociais “diferentes” (VARIKAS, 2009).

O determinismo biológico postula a superioridade natural de todos os homens sobre todas as mulheres (reformulando-se a partir da defesa da hierarquia dos sexos). Logo, por ser considerando um fato da natureza (homens serem superiores às mulheres), a dominação de sexo, ao mesmo tempo que se legitima e se fortalece, se torna também invisível (VARIKAS, 2009). Segundo a autora essa consequente invisibilidade faz com que as mulheres sejam vistas como uma categoria homogênea, onde direitos e deveres a elas destinados não seguem uma regra geral elaborada para todos, e sim uma lei específica válida única e exclusivamente para essa diferente “categoria”. Este contexto, permite que como membro de um “grupo diferente”, a mulher, enquanto sujeito político, possa ser excluída da “igualdade de direitos” em nome da sua “diferença”.

Os impasses da polaridade identidade-diferença prenderam o princípio da igualdade, o colocando em um constante debate do que de fato se deve alcançar: tratamento igual versus tratamento diferenciado ou igualdade versus equidade. Esta realidade opositiva se coloca a partir de um paradoxo que nos diz: 1) “o pleno reconhecimento político e social das mulheres significa que elas devem se adaptar à norma masculina; 2) serem aceitas em uma sociedade que leve em conta suas diferenças em relação aos homens reforça o regime de exceção do qual elas são objeto” (VARIKAS, 2009, p. 118).

Em análise sobre as chamadas políticas de igualdade (como por exemplo a instrumentalização da luta por igualdade profissional), Varikas (2009) indica a necessidade de reorientação destas, adotando-se, para tanto, medidas que ultrapassem a anti-discriminação na esfera produtiva e paralelamente se aproximem de uma perspectiva de transformação social “das instituições e das estruturas produtoras de hierarquias de sexo” (p. 120).

Ainda segundo a autora, devemos superar a oposição posta entre igualdade e diferença, na medida em que tanto não cabe mais refletir sobre se deveríamos adaptar as mulheres a um modelo masculino de trabalho ou se, ao contrário, deveríamos criar um modelo feminino adaptado às suas necessidades, pois:

Inserir as políticas de igualdade numa perspectiva de erosão desse modelo tem uma importância estratégica quando este define o acesso diferenciado das mulheres aos direitos sociais e, assim, ao exercício efetivo da cidadania. (...) É a fim de romper com os automatismos de uma lógica dessa espécie que feministas como Carole Pateman propõem separar os direitos sociais do trabalho, reinventando um denominador comum que, ao satisfazer as

necessidades imediatas dos homens e das mulheres, favoreça a autonomia das mulheres, permitindo que elas mesmas definam suas necessidades (VARIKAS, 2009, p. 121).

Pierruci (1990) propõe um debate sobre os efeitos da utilização da categoria diferença, pela esquerda, em um momento histórico de reemergência dos conservadorismos. Para o autor há uma grande cilada na apropriação desta categoria pelos movimentos de esquerda, pois o argumento da diferença já é historicamente apropriado pela ideologia conservadora, que o direciona, contraditoriamente, em desfavor da classe trabalhadora.

Explica o autor que a diferença tem sua origem nas formulações da direita, pois a ajuda a explicar e naturalizar as desigualdades; sendo esta categoria, pois “o grande signo das direitas, velhas ou novas, extremas ou moderadas”. É, portanto, o pensamento da direita que prescreve as diferenças, onde, mais do que sua rejeição, há na verdade uma obsessão por estas, o que produz, em larga escala, armadilhas racistas e sexistas. Assim, a onda de celebração das diferenças, nos ambientes da esquerda, legitima que a diferença seja enfocada e as distâncias entre os sujeitos alargadas (PIERRUCI, 1990).

Encontrando inspiração nesta assertiva, e compreendendo que o chamado “respeito as diferenças e/ou respeito às identidades” corresponde, a grosso modo, a uma reivindicação do “direito a diferença”, pela esquerda, o que alimenta a obsessão conservadora da direita pela diferença; defendemos aqui a necessidade de retomada do campo conceitual da igualdade, o qual inclui o aniquilamento das hierarquias entre os seres humanos, sendo, pois, um meio concreto, e não apenas formal, “de garantir para cada pessoa a possibilidade de fazer tudo o que está potencialmente ao seu alcance” (VARIKAS, 2009, p. 121).

Analiticamente, nas palavras de Varikas (2009) a igualdade garante:

O direito das mulheres em serem pessoas “como todas as outras” mediante a proibição de toda discriminação que as constitua como grupo “a parte”; a possibilidade para as mulheres serem reconhecidas e aceitas como são, isto é, com suas diferenças em relação aos homens, enfim, e sobretudo, o direito de cada mulher exprimir as particularidades que fazem delas “indivíduos diferentes de todos os outros”, o acesso a sua dignidade como indivíduo, e de sua contribuição única e insubstituível à vida em comum (VARIKAS, 2009, p. 121).

Destarte, nos é indispensável defender tal princípio, especialmente quando tratamos dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, tendo em vista que estes requisitam um rol de elementos de caráter libertário que contribuam tanto com a real libertação das mulheres quanto com a defesa de seus direitos sociais.