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3.1 Direitos sexuais e reprodutivos: uma necessidade humana inalienável

3.1.2 Integridade corporal

Entendida como um direito à segurança e ao controle do próprio corpo, a integridade corporal é um dos pilares constitutivos que sustentam a noção de liberdade sexual e reprodutiva. Este princípio tem a função de denunciar o conjunto de violências que atingem em larga escala especialmente o segmento de mulheres, a exemplo de todas as formas de medicalização e objetificação do corpo, servidão/escravidão involuntária, estupro e tortura. Nessa perspectiva, ainda na década de 1970 a Conferência Internacional da Mulher – realizada no México - declara que a questão da inviolabilidade do corpo e o respeito às decisões individuais sobre este são elementos indispensáveis que fundamentam a dignidade e a liberdade humana (CORRÊA E PETCHESKY, 1996).

A expansão do debate sobre integridade corporal e autodeterminação sexual se inscreve no século XIX a partir do movimento feminista (em geral, o de base socialista). Sob diferentes óticas, o movimento primeiro apontou a problemática do controle de natalidade como uma luta que transcendia a emancipação política das mulheres, pois, seria uma necessidade humana controlar seus próprios corpos e adquirir conhecimentos sobre sua sexualidade e satisfação sexual. Por outro lado, nasceu também, em algumas correntes do movimento, a defesa da noção do “direito negativo”, que consistia na recusa do sexo e da gravidez indesejada (CORRÊA E PETCHESKY, 1996).

Em termos históricos, Corrêa e Petchesky, baseadas nas elaborações de Davis, sustentam que a defesa do princípio da “posse do próprio corpo” aparece pioneiramente ainda no século XVI na Europa. Segundo historicizam as autoras, em Genebra uma jovem teria sido levada à presença de anciões para que fosse questionada e castigada porque teria mantido relações sexuais com seu noivo antes do matrimônio, levando a jovem a pronunciar o que teria se tornado um ditado popular na França: “paris est au roi, et mon corps est a moi” (Paris pertence ao rei, e meu corpo pertence a mim).

Ao longo dos anos, a narrativa do “meu (nosso) corpo me (nos) pertence e/ou “meu corpo minhas regras” sofreu algumas críticas de feministas de esquerda, as quais apontavam a facilidade com que este discurso poderia ser transposto apenas para a esfera privada/individual, esquecendo-se que sobre o corpo da mulher permeiam questões de ordem política, econômica, social e cultural.

Como aponta Petchesky (1999, p. 27), apesar desta narrativa se apresentar como retoricamente poderosa, também pode ser perfeitamente compatível com o modo de produção capitalista hegemônico, na medida em que exige autodeterminação e liberdade contra os

abusos/violências, mas não contra as condições econômicas que obriga as mulheres, em algumas circunstâncias, a vender seu corpo e sua capacidade sexual ou reprodutiva.

Em acréscimo a isso, Portela (2007) analisa que “os efeitos perversos da nova ordem econômica terminam por reforçar alguns campos de escolha pessoal e profissional que se baseiam nas tradicionais concepções de heteronomia e do corpo como destino”; sendo necessário olharmos com cuidado palavras de ordem esvaziadas de um aprofundamento acerca das condições hierárquicas e desiguais impostas às mulheres.

Através destas críticas nos é possível esclarecer que tal princípio não deve ser associado a ideia de corpos como meros objetos apartados da realidade social. Ao contrário, deve inscrever o corpo como parte integral do sujeito, onde se implica saúde, bem-estar e exercício pleno da sexualidade (através da exploração dos domínios do prazer sexual e da liberdade de seu exercício) e reprodução. Assim, para além de um direito individual, a integridade corporal é um direito social, uma vez que, está associada aos direitos sexuais e reprodutivos, que são irredutivelmente sociais e essencialmente individuais, inscrevendo-se, portanto, no escopo dos Direitos Humanos.

Entende-se aqui que há uma dupla dimensão que permeia a noção de integridade corporal. A primeira, de base subjetiva, trata do direito de não ser alvo de alienação quanto a sua capacidade sexual e reprodutiva (por meio da imposição do casamento e da heterossexualidade, da defesa cultural da mutilação genital e imposição do conhecimento científico para justificar esterilizações e/ou contracepções, por exemplo). A segunda trata do direito à inviolabilidade do corpo físico (direito de não ser submetido a tortura, prisão domiciliar, violência sexual, intervenções e procedimentos médicos indesejados, mutilações e métodos contraceptivos inseguros) (CORRÊA E PETCHESKY, 1996).

Em uma perspectiva integral, tanto a primeira quanto a segunda dimensão, quando violadas, causam danos biopsicossociais, sendo comum o exercício de ambas sob o mesmo sujeito. Quanto aos grifos, traduzem uma contradição existente: “o direito de não ser” alvo de violência e alienação aparentemente está sobreposto a noção maior que norteia os direitos sexuais e reprodutivos, em ampla medida, e de maneira específica a integridade corporal: a liberdade e autodeterminação no exercício da sexualidade/reprodução. Esta contradição é reflexo das condições estruturais impostas pela sociedade burguesa, que imprime no conjunto das relações sociais as determinações da categoria violência (utilizada como potência econômica para sua reprodução social).

A despeito disso, Saffioti (2015) esclarece que o fenômeno da violência não encontra seu lugar ontológico quando associado a ruptura de integridades (seja física, psicológica, sexual, moral), já que os limites entre a quebra da integridade e a obrigação de se submeter à

sujeição aos homens, no caso das mulheres, são muito tênues, pois, mesmo sendo um mecanismo de ordem social, cada mulher tende a interpretá-lo de maneira singular (p. 80). Por esta razão a autora dá preferência a utilização do conceito de Direitos Humanos, entendendo a violência como “todo agenciamento capaz de violá-los”.

Mesmo em concordância com Saffioti, optamos por utilizar o princípio da integridade corporal – o considerando como parte constituinte e integrante dos Direitos Humanos – na tentativa de sinalizar que tal princípio cumpre o papel de situar com maior clareza a coerção, a imposição de procedimentos/medicamentos/práticas e a repressão sofridas especificamente pelo conjunto de mulheres. Entendido dessa forma, o princípio da integridade corporal assume uma ligação indispensável com a noção de respeito ao outro – a qual necessariamente deve acompanhar as experiências da vida em sociedade, sendo, portanto, um dos pontos nucleares dos Direitos Humanos.