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"Você não é Gisele Bündchen": manifestações da violência institucional contra mulheres no cotidiano dos serviços do SUS

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Academic year: 2021

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CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL

LÍVIA MARIA E SILVA

“VOCÊ NÃO É GISELE BÜNDCHEN”: Manifestações da violência institucional contra mulheres no cotidiano dos serviços do SUS

NATAL-RN 2019

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“VOCÊ NÃO É GISELE BÜNDCHEN”: Manifestações da violência institucional contra mulheres no cotidiano dos serviços do SUS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito final para a obtenção do título de Mestre em Serviço Social.

Orientadora: Profa. Dra. Antoinette de Brito Madureira

Linha de Pesquisa: Ética, Gênero Cultura e Diversidade.

NATAL-RN 2019

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro Ciências Sociais Aplicadas - CCSA

Silva, Lívia Maria e.

"Você não é Gisele Bündchen": Manifestações da violência institucional contra mulheres no cotidiano dos serviços do SUS / Lívia Maria e Silva. - 2019.

118f.: il.

Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Universidade Fe-deral do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Sociais Apli-cadas, Programa de Pós-Graduação em Serviço Social. Natal, RN, 2019.

Orientadora: Profa. Dra. Antoinette de Brito Madureira. 1. Violência Institucional - Dissertação. 2. Direitos sexu-ais e reprodutivos - Dissertação. 3. Conservadorismo - Disser-tação. 4. Serviços de Saúde - DisserDisser-tação. 5. Violência estru-tural - Dissertação. I. Madureira, Antoinette de Brito. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/UF/Biblioteca do CCSA CDU 34:613.99-055.2

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“VOCÊ NÃO É GISELE BÜNDCHEN”: Manifestações da violência institucional contra mulheres no cotidiano dos serviços do SUS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito final para a obtenção do título de Mestre em Serviço Social

Aprovada em: ______/______/______.

BANCA EXAMINADORA:

___________________________________________

Profa. Dra. Antoinette de Brito Madureira Orientadora

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

___________________________________________

Profa. Dra. Larisse de Oliveira Rodrigues Membro Interno

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

___________________________________________

Profa. Dra. Janaiky Pereira de Almeida Membro Externo

Universidade Federal Rural do Semi-Árido

___________________________________________

Profa. Dra. Rita de Lourdes de Lima Membro Interno (Suplente)

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Para minhas sobrinhas Elis, Letícia, Maria Eduarda, Manoela, Laura, Lavínia e Natália Vitória; para que cresçam e nunca aceitem que seus desejos e sonhos sejam silenciados. Aos meus sobrinhos João Vicente, Joaquim, Pedro Artur e Theo, na esperança de que cresçam e apoiem suas primas, e outras mulheres, na luta por uma sociedade justa e igual.

Dedico também a todas as mulheres com quem tive e tenho a honra de me inspirar e partilhar experiências, conhecimentos e desafios desta sociabilidade marcada pela opressão às liberdades e às maneiras de ser.

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O sentido de agradecer vai muito além do simples ato. É o reconhecimento de que outros (as) fizeram mais do que se espera em algum momento de sua vida. Hoje, em um nada típico domingo a noite eu tento transpor em palavras os sentimentos de gratidão e reconhecimento que me tomam. Espero transparecê-los.

Inicio agradecendo a minha mãe Cleide (tia Cleide, vovó Cleide, Keidinha, Kerela), minha grande inspiração de mulher forte. Sem ela e todas as condições objetivas que me proporcionou, sem seu infinito esforço e investimento em minha educação, sem seus conselhos, cuidados e tantas e tantas orientações (porque ela é daquelas que faz lista de orientações gerais para me repassar, kkkkk) eu não teria tido a oportunidade de me dedicar a este trabalho. Graças a minha mãe e todo o trabalho “invisível” desenvolvido por ela eu consegui a paz necessária para estudar. Obrigada por tudo mãe, você é sensacional. Obrigada por ser a minha maior incentivadora.

Agradeço a toda minha família Teixeira, tias, tios, primas e sobrinhos. Em especial a minha prima Mariana, que como irmã que é me apoiou em tantas fases da vida, me incentivou e segurou minha mão e minha barra em muitos e muitos momentos. A ela devo tantas coisas que as palavras não podem transmitir. Te amo Nana, obrigada por tudo, por topar minhas neuras criativas e por ser responsável pela linda criação artística da capa deste trabalho, nem Deus sabe como você conseguiu acertar de primeira (kkkkkkk). Também gostaria de registrar um agradecimento especial ao meu primo André, por todo incentivo que sempre me deu, pelas trocas e diálogos teóricos que, segundo Bilinha, não acabavam nunca, kkkkkk, obrigada André, vamos além.

Lívia, Amlyn e Gabriela, minhas tão amadas amigas, como iria ter passado por esse processo sem a amizade de vocês? Vocês deram leveza a minha vida, trouxeram alegria e me ouviram nos momentos de angústias. Acompanharam de perto todo o processo de construção deste trabalho, todas as minhas incertezas, insônias e medos, me oferecendo em troca muita compreensão, alegria, diversão, paz. Amlyn, a minha companheira de nuh, de chá calmante, de café de paz, obrigada! Gabi, minha grande amiga de longas datas, amiga de partilhas e de alegrias, obrigada por alegrar minha vida me mandando sempre fotos de Theo para a dinda matar a saudade enquanto estudava. Livinha, minha garota linda, que me fazia querer ser engraçada sempre pra gente rir juntas das coisas, que se preocupou comigo tantas vezes nos tantos dias da minha ausência, me deu a mão e segurou até o fim. Amo vocês, tem como não amar?

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apoiarmos até o final desse processo. Foram tantos desabafos, tantas lágrimas, tantas alegrias, aprendizados, partilhas... guardarei todas em meio coração, obrigada! Em especial agradeço a minha querida amiga Rosangela, que foi o grande presente afetivo que o mestrado me deu. A nossa identificação bateu desde o primeiro dia, e como diz Giliane o bonde formou, kkkkkk.

A minha maravilhosa amiga Giliane, juntas na UFRN há 10 anos, quantas coisas já vivemos heim? de perrengues, alegrias, tristezas, insatisfações, correrias e desespero. De tudo um pouco, ou um muito. Em você me espelho, admiro e me motivo a sempre seguir. A você todos os agradecimentos não são suficientes. Entramos sempre nos desafios juntas, e depois de tudo saímos ainda mais juntas e fortalecidas para enfrentar os próximos. Me pergunto como teria caminhado até aqui sem o seu constante e diário incentivo, e sem todos os momentos de fuga que tivemos para fortalecer nossas caminhadas. Você que tem uma contribuição tão especial nas reflexões que esse trabalho propõe, obrigada por mesmo enfrentando os seus próprios problemas sempre parar pra me ouvir e me mostrar uma direção. Muito amor e gratidão por nossa amizade, respeito e sentimento de partilha. Esse processo não existiria sem você.

A minha orientadora Antoinette fonte de tanta inspiração, obrigada por me acompanhar em um percurso acadêmico mais uma vez. É um misto de gratidão e admiração o que eu sinto pela senhora. Desde a graduação em Serviço Social na UFRN me ensinou tantas coisas valiosas. Saiba, é a você que devo o meu grande amor pela pesquisa social. Enxergo a nossa caminhada juntas como um grande processo de transformação, na forma de enxergar a sociedade, no cuidado com o outro, na responsabilidade com a construção do conhecimento e na persistência por alcançar alguma resposta para nossas preocupações profissionais e acadêmicas. Agradeço por todo carinho que transparece ter por mim e pelas minhas pesquisas que você orientou (nossas meninas). Agradeço por cada contribuição dada a este trabalho, cada texto, orientação, diálogo, troca, e principalmente agradeço por toda sensibilidade, compreensão e delicadeza, sem isso o meu processo no mestrado teria tomado outro rumo. O seu olhar pro mundo me inspira, você é uma das minhas grandes referências. Gratidão. (Ps.: será que agora eu já posso ganhar uma carteirinha de eterna orientanda? Kkkkk).

A professora Larisse e a professora Janaiky que desde o processo de qualificação do projeto de mestrado muito contribuíram para aprofundar as minhas inquietações acadêmicas. A vocês meu carinho e agradecimento por se disponibilizarem a me ajudar a construir esta dissertação. Obrigada pelo incentivo e por todas as sugestões teóricas.

Agradeço a minha equipe de trabalho da 1ª Vara da Infância e Juventude de Natal (Paula, Klesda, Isa, Marisa, Simone, Flor, Romildo, Ely, Marcos e Dr. Dantas). Obrigada pela

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presente ter a oportunidade de conviver e trabalhar com pessoas maravilhosas como vocês. Em especial quero registrar a minha gratidão a minha queria amiga Paula, pessoa que me transmite paz, harmonia e que por tantas vezes se preocupou comigo e com meu desgaste emocional diante de tantas atribuições. A todos vocês da 1ª VIJ muito obrigada!!

Aos meus amigos Luciana e Marcelo, por todo apoio e carinho mútuo, por todas as risadas e alegrias e por todos os momentos compartilhados. Construir uma amizade pautada no respeito, na empatia e na diversão é uma coisa muito rara. Vocês foram essenciais para esta trajetória.Obrigada por tanto.

A Capes pela bolsa de pesquisa, que possibilitou condições objetivas para que eu pudesse me dedicar a esta pesquisa.

A todas as mulheres que atendi, visitei e trabalhei como assistente social. Este trabalho foi pensado a partir das tantas inquietações e violências vividas “por nós mulheres e nossa experiência em comum”.

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Aquilo a que chamo de mim mesma é uma coisa que agora tenho que compor, como se compõe um discurso. O que tenho de apresentar é uma coisa feita, não algo nascido. Somos úteros de duas pernas, isso é tudo: receptáculos sagrados, cálices ambulantes. (...) Tudo o que é silenciado clamará para ser ouvido, ainda que silenciosamente (Margaret Atwood -The Handmaide Tale).

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Situada no âmbito das produções que tratam sobre as condições estruturais de violência impostas às mulheres na sociedade de classes, esta investigação tem por objetivo central realizar uma análise teórica acerca das práticas de violência institucional no campo dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres usuárias dos serviços de saúde do SUS. Paralelamente busca caracterizar algumas manifestações desta violência, apontando suas especificidades, contradições e interrelações. Problematiza e analisa a base ética dos direitos sexuais e reprodutivos elucidando a relação existente entre a transgressão de princípios éticos libertários e as expressões da violência institucional. A violência institucional é aqui entendida como um fenômeno de ordem estrutural cometido por órgãos e agentes do Estado, por meio de práticas autoritárias, moralistas, negligentes e hierárquicas, que em seu conjunto ferem Direitos Humanos fundamentais. O estudo parte da compreensão de que, na área da saúde, o ideário político-prático conservador atinge fortemente o campo dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, e contribui para a disseminação de práticas de violência institucional, como também para a manutenção da ordem monogâmica-capitalista-heteropatriarcal, responsável por relegar às mulheres uma posição periférica e inferior na sociedade de classes. Esse cenário dificulta o acesso das mulheres a um conjunto de serviços e direitos sociais conquistados em meio a articulação entre o Movimento de Reforma Sanitária Brasileiro e o Movimento Feminista, apresentando para as mulheres uma realidade de negação do exercício livre de sua sexualidade e reprodução. O estudo, que contou com a combinação entre análise bibliográfica, documental e reflexões oriundas de relatos informais acessados pela pesquisadora no curso de sua atuação profissional na área da saúde, compreende que a dinâmica da sociedade capitalista impõe a existência da violência institucional, sendo este fenômeno uma das formas acessadas pelo capitalismo para exercer poder e domínio sobre os sujeitos. Os dados ainda revelam que no cotidiano dos serviços de saúde há uma tendência de naturalização da violência institucional, fato que tem por fundamento três elementos centrais: a noção de subserviência das mulheres e a imposição da maternidade, a defesa da existência de hierarquias sexuais e reprodutivas que em si envolvem classe social, raça/etnia e parcerias sexuais e a estampa de inferioridade e anormalidade atribuída a não-adequação ao sexo biológico ou a identidade sexual heteronormativa.

Palavras-chave: Violência Institucional; Direitos sexuais e reprodutivos; Conservadorismo; Serviços de Saúde; Violência estrutural.

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Situated within the scope of the productions that deal with the structural conditions of violence imposed on women in class society, this research aims to conduct a theoretical analysis on the practices of institutional violence in the field of sexual and reproductive rights of women users of health services. SUS health. At the same time it seeks to characterize some manifestations of this violence, pointing out its specificities, contradictions and interrelationships. It problematizes and analyzes the ethical basis of sexual and reproductive rights by elucidating the relationship between the transgression of libertarian ethical principles and the expressions of institutional violence. Institutional violence is understood here as a phenomenon of structural order committed by state agencies and agents, through authoritarian, moralistic, negligent and hierarchical practices that, in their entirety, hurt fundamental Human Rights. The study starts from the understanding that, in the area of health, conservative political-practical ideas strongly affect the field of women's sexual and reproductive rights, and contribute to the dissemination of institutional violence practices, as well as to the maintenance of monogamous order. -capitalist-heteropatriarchal, responsible for relegating to women a peripheral and inferior position in class society. This scenario hinders women's access to a set of services and social rights achieved through the articulation between the Brazilian Health Reform Movement and the Feminist Movement, presenting to women a reality of denial of the free exercise of their sexuality and reproduction. The study, which included the combination of bibliographical, documentary analysis and reflections from informal reports accessed by the researcher in the course of her professional practice in health, understands that the dynamics of capitalist society imposes the existence of institutional violence, and this phenomenon one of the ways accessed by capitalism to exercise power and dominion over the peoples. The data also reveal that in the daily routine of health services there is a tendency towards naturalization of institutional violence, which is based on three central elements: the notion of women's subservience and the imposition of maternity, the defense of the existence of hierarchies sexual and reproductive issues which in themselves involve social class, race / ethnicity and sexual partnerships and the pattern of inferiority and abnormality attributed to non-adaptation to biological sex or heteronormative sexual identity.

Keywords: Institutional Violence. Sexual and reproductive rights. conservatism. Health Services. Structural Violence.

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AMIU Aspiração Manual Intrauterina BO Boletim de Ocorrência

CIPD Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento CNS Conselho Nacional de Saúde

CNSM Conferência Nacional de Saúde da Mulher

DH Direitos Humanos

DIU Dispositivo Intrauterino

DSR Direitos Sexuais e Reprodutivos ESF Estratégia de Saúde da Família HIV Vírus da Imunodeficiência Humana IML Instituto Médico Legal

LGBTQ+ Lésbicas Gays Bissexuais Transexuais Queer LOS Liberdade de Orientação Sexual

MRSB Movimento de Reforma Sanitária Brasileira NASF Núcleo de Apoio à Saúde da Família NBI Necessidades Básicas Insatisfeitas PEC Proposta de Emenda Constitucional PEP Projeto Ético Político

PEPSS Projeto Ético Político do Serviço Social

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PNPM Plano Nacional de Políticas para as Mulheres RN Rio Grande do Norte

RNFS Rede Nacional Feminista de Saúde

SNPM Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres STF Supremo Tribunal Federal

SUS Sistema Único de Saúde

TCC Trabalho de Conclusão de Curso TCs Tecnologias de Concepção TFT Taxa de Fecundidade Total

UFRN Universidade Federal do Rio Grande do Norte UTI UTI - Unidade de Terapia Intensiva

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2 MULHERES, CAPITALISMO E VIOLÊNCIA ... 27

2.1 Bruxas, histéricas e feministas: a histórica violência contra as mulheres na constituição e reprodução da sociedade capitalista ... 28

3 DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS, ÉTICA E VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL: NOTAS PARA A REFLEXÃO ... 40

3.1 Direitos sexuais e reprodutivos: uma necessidade humana inalienável ... 40

3.1.1 Diversidade sexual ... 42

3.1.2 Integridade corporal ... 46

3.1.3 Igualdade ... 48

3.1.4 Autonomia pessoal ... 51

3.1.5 Integralidade ... 54

4 SOBRE A CRÍTICA À UNIVERSALIDADE ABSTRATA DO DIREITO BURGUÊS: QUAL O LUGAR DOS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS? ... 60

4.1 Impasses e domínios entre corpo, direitos e sexualidade ... 64

4.2 Trajetória da promoção dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres: Um caminho de embates ... 66

5 A VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL E O CONSERVADORISMO NOS SERVIÇOS DE SAÚDE: FUNDAMENTOS DA NEGAÇÃO DA INTEGRALIDADE NA ATENÇÃO À SAÚDE DAS MULHERES ... 79

5.1 Esterilização/contracepção compulsória, criminalização do aborto e discriminação quanto a diversidade sexual: manifestações da violência institucional nos serviços de saúde ... 85

5.1.1 “Eu tomei pílula do dia seguinte, mas quem ia acreditar em mim?”: Faces da violência institucional diante da negação do direito reprodutivo ao aborto ... 86

5.1.2 “Não pode, você vai fazer laqueadura porque não têm mais condições de ter menino”: Controle, disciplinamento, contracepção e esterilização compulsória ... 95

5.1.3 Entre rejeição, tolerância e aceitação: A diversidade sexual como arena de reprodução de violência institucional ... 102

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 107

REFERÊNCIAS ... 112

ANEXO A – IMAGEM ILUSTRATIVA DE INSTRUMENTO DE TORTURA DE MULHERES (SCOLD’S BRIDLE). ... 119

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1 INTRODUÇÃO

Fonte: Pinterest

“Agora vamos deixar você feia, minha mãe disse. E assobiou. Sua boca estava tão próxima da minha que ela cuspiu perdigotos em meu pescoço. Senti o cheiro de cerveja. No espelho eu a vi passar o pedaço de carvão em meio rosto. É uma vida sórdida, murmurou. Esta é minha primeira lembrança. Ela segurou um velho espelho rachado em frente ao meu rosto. Eu devia ter uns cinco anos. A rachadura fazia parecer que meu rosto havia sido partido em dois pedaços. A melhor coisa que você pode fazer no México é ser uma menina feia. Contei para todo mundo que tive um menino, ela disse. Se fosse uma menina eu seria roubada. Talvez eu tenha que quebrar seus dentes, minha mãe dizia” (Reze Pelas mulheres roubadas – Jennifer Clement).

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Diversos estudos no campo da saúde coletiva, ciências sociais e antropológicas têm retratado uma infinidade de situações que envolvem as relações sociais hierárquicas e a consequente violência contra as mulheres em espaços públicos e privados (ÁVILA, 2003; GUILLAUMIN, 2014; PATEMAN,1993; SAFFIOTI, 2015; SCHRAIBER, 2012). Estas e outras publicações estão ligadas ao conjunto de ideias e questionamentos elaborados pelo movimento feminista, os quais, em grande medida, serviram como base para a construção dos Direitos Sexuais e Reprodutivos (DSR) das mulheres. Mesmo diante de uma disputa política de significados em torno destes direitos1, na perspectiva defendida por este trabalho, estes dizem respeito a liberdade e igualdade no exercício da sexualidade e na vivência da reprodução – o que implica pensar essas esferas de maneira autônoma, mesmo que se relacionem noutras dimensões da vida social.

Assim, os tabus e preconceitos sobre a vida sexual e reprodutiva das mulheres, têm se constituído como um claro impedimento para uma atenção integral à estas (ÁVILA, 2003), configurando, a esfera pública, com um meio onde os direitos são formalmente negados, onde se reduzam às necessidades de saúde à esfera materno-infantil , e onde se reprime outras formas de expressão sexual que não seja a heterossexualidade. Nestes termos, é possível observar, preliminarmente, que o ataque a liberdade e igualdade no exercício da sexualidade e reprodução, no âmbito do Estado, se constitui, em violência institucional. Entretanto, pontua-se a partir de uma análipontua-se de literatura (em especial no campo da saúde coletiva e nas ciências humanas e sociais) que pouco ainda se tem investigado sobre o fenômeno da violência institucional, o qual segue a tendência de ser entendido, restritivamente, apenas sob a ótica da violência obstétrica.

Dito isto, este trabalho propõe realizar uma análise crítica acerca das práticas de violência institucional no campo dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, tendo como preocupação central responder as seguintes questões: 1) quais são as manifestações/expressões da violência institucional contra mulheres que estão presentes no cotidiano dos espaços públicos que ofertam serviços de saúde? 2) quais são as implicações dessas práticas de violência institucional para a vida das mulheres? 3) como se estabelece a relação entre as práticas de violência institucional e o agravamento dos processos de adoecimento das mulheres? 4) quais são as características deste fenômeno no contexto institucional dos serviços de saúde, especialmente considerando o campo dos direitos sexuais e reprodutivos?

Considero que as preocupações e questionamentos que pousam sobre esta investigação partem do meu percurso acadêmico e profissional enquanto assistente social, que me

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proporcionaram me deparar com um conjunto de relatos de mulheres (usuárias, profissionais, amigas, conhecidas, desconhecidas) sobre suas histórias com a violência. É unânime em suas falas a posição inferior diante das suas relações com os homens (esposos/ pais/ tios/ irmãos, primos, amigos, desconhecidos, profissionais) e com instituições (trabalho, igrejas, escolas, serviços de saúde), particularizando suas vivências em torno de um contexto de desigualdade e violência estrutural.

Nessa trajetória, destaco, como influência central sobre a escolha do presente objeto de estudo a minha atuação profissional junto à coordenação do Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF)2 de um dos municípios da terceira região de saúde do Estado do Rio Grande do Norte3 entre os anos de 2015 e 2017.

Em meio a vivências com diversos profissionais de saúde que compunham as equipes de Estratégia de Saúde da Família (ESF) do município, pude observar que haviam relações hierárquicas entre profissionais e usuárias muito bem estabelecidas, evidenciando o distanciamento da incorporação, no cotidiano do trabalho, do modelo de atenção em saúde ancorado na perspectiva defendida pelo movimento de reforma sanitária brasileiro (MRSB)4.

No cotidiano dos serviços de saúde do município observei que esse distanciamento do modelo de atenção pautado no MRSB e a consequente aproximação ao modelo de atenção biomédico5, favorecia práticas de saúde autoritárias, preconceituosas e que penalizavam as

mulheres (sujeitas centrais deste estudo), em seus direitos fundamentais, em especial os relativos aos seus Direitos Sexuais e Reprodutivos.

2 Em meio a estruturação dos níveis de atenção em saúde, no âmbito da atenção básica ou primária, tendo a Estratégia de Saúde da Família (ESF) como modelo para organização da atenção, integrando ações de caráter preventivo e curativo a indivíduos e comunidades, se insere o Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF), criado pela portaria ministerial 154/2008 para fortalecer a consolidação da atenção básica, por meio do apoio à inserção da ESF, buscando resolubilidade e reafirmando os processos de territorialização e regionalização (BRASIL, 2009a).

3 Segundo o plano diretor de regionalização do Rio Grande do Norte PDR/RN, o Estado está dividido em oito regiões de saúde. Em especial a III região conta com uma população de aproximadamente 340 mil habitantes, reunindo um total de 25 municípios limítrofes (Plano Estadual de Saúde, 2016-2019).

4 O Movimento de Reforma Sanitária Brasileiro, embasado na defesa de universalização das políticas sociais, foi protagonista das conquistas obtidas pelo campo da saúde, e trouxe consigo proposições que foram integradas a Constituição Federal de 1988, fortalecendo uma concepção de saúde que supera a lógica hospitalocêntrica. Trata-se da concepção ampliada de saúde, que expressa à necessidade de leitura crítica da realidade, compreendendo que saúde é historicamente determinada pelas formas de organização social, sendo resultante das condições de vida e de trabalho. (BRAVO, 2007).

5 Conforme problematizado por Bravo (2009), no contexto do MRSB a saúde é compreendida como construção social, que expressa lutas em torno da direção dos modelos de atenção. Tais modelos se vinculam aos projetos de sociedade em disputa, representando conceitos de saúde para responder as necessidades impostas por tais projetos. Vinculado ao projeto societário de transformação social o MRSB defende o conceito ampliado de saúde, enquanto o modelo biomédico/privatista se articula ao projeto do capital, enfatiza intervenções técnicas vinculadas ao biológico, onde a saúde é assunto de ordem individual e tratada pelo clínico.

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Munida por tais inquietações, realizei uma pesquisa6 que buscou problematizar a compreensão dos profissionais de saúde em atuação no SUS, a respeito dos direitos sexuais e reprodutivos e práticas de violência institucional perpetradas contra mulheres. Os dados coletados por meio de aplicação de questionários, observação participante e socialização em grupos, confirmaram a manutenção de algumas noções clássicas conservadoras que ainda compõem o cotidiano da prática profissional na área da saúde, como é o caso da reafirmação da função reprodutiva da mulher, de sua responsabilização no ato de reprodução, bem como da negação do aborto como mecanismo de acesso ao direito à livre escolha pela maternidade.

Os resultados da pesquisa, juntamente com as análises realizadas a partir da minha atuação profissional, revelaram que as referências coletivas dos profissionais de saúde os direcionavam à naturalização e banalização das práticas de violência institucional no campo dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, já que, notadamente, e, em muitos momentos deste percurso, os profissionais não identificaram situações de violação de direitos da mulher, dado assumirem um posicionamento profissional ora pautado em valores morais tradicionais7, ora na ideologia religiosa.

Como mencionei anteriormente, em minha experiência tive acesso a alguns relatos de mulheres, bem como pude observar como esses relatos se processavam no interior dos serviços de saúde e nas relações de poder/saber entre os profissionais e as usuárias. A seguir, elenco alguns trechos de conversas informais com usuárias, momentos de observação e trechos de relatos informais de profissionais de saúde, onde destaco o que as mulheres estão sujeitas a ouvir ao chegarem a um serviço de saúde buscando resolver alguma questão que envolva seus direitos sexuais e reprodutivos:

• Sobre quando uma mulher manifesta o desejo por um parto humanizado: “Você não é

Gisele Bündchen; essas coisas ficam para quem tem dinheiro para montar um hospital em casa”.

• Sobre a insatisfação com uma gravidez: “Com todos os métodos contraceptivos

existentes, pode-se evitar uma gravidez indesejada”.

6 O estudo foi realizado como parte do processo de avaliação final do curso de pós-graduação em saúde pública e Serviço Social (UNIFACEX) que cursei. Realizei coleta de dados no período compreendido entre os meses de janeiro e março do ano de 2016, que teve sua abrangência limitada aos profissionais em atuação na atenção básica de um Município da terceira região de saúde do Estado do Rio Grande do Norte, sendo sistematizado em forma de artigo com o título: Direitos sexuais e reprodutivos no âmbito dos serviços de saúde: uma reflexão necessária. 7 Segundo Barroco (2015) “a moral desempenha uma função de destaque no ideário conservador, sendo concebida como base fundante da sociabilidade e da política” (p. 625).

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• Sobre o aborto legal: “Porque independentemente do caso é uma vida, e por mais

grave que seja, ela não pediu para ser gerada”. Ou “Porque na verdade eu não concordo com o aborto, pois estamos falando de uma vida e não de qualquer coisa”.

• Sobre o atendimento para acesso ao aborto legal: “A gente tem que botar medo né?

Elas têm que falar a verdade, mesmo que a gente não vá chamar a polícia depois”.

Ou “eu tive um plantão que todos os médicos se recusaram a realizar o

procedimento de aborto na usuária”.

• Sobre considerar os direitos sexuais e reprodutivos como parte integrante dos direitos humanos: “Os direitos humanos integram sim, desde que a mulher seja responsável

no ato de reproduzir”.

• Sobre um fictício caso de estupro de uma usuária por seu esposo8: “Orientaria a

usuária a tentar uma relação de diálogo com seu marido, deixando claro dos seus direitos, se o mesmo insistir na violação dos mesmos, deixando claro que o diálogo é sempre o melhor caminho”.

• Sobre quando uma mulher lésbica busca um serviço ginecológico: “ouvi de um

profissional de saúde que quando soube que a usuária era lésbica ele resolveu usar o maior espéculo9 possível, para a mulher “saber o que era bom”.

• Sobre formas de garantir os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres no âmbito dos serviços de saúde: “Abordando as pacientes de forma clara, amigável e confiante.

Deixando claro os riscos e consequências de seus atos”.

Assim, esta investigação parte da compreensão de que, na área da saúde, as concepções conservadoras no campo dos Direitos Sexuais e Reprodutivos das mulheres têm contribuído para a disseminação de práticas de violência institucional, como também para a manutenção da ordem monogâmica heteropatriarcal, dificultando/negando, portanto, o acesso das mulheres aos serviços e direitos conquistados por meio da organização e reivindicações do movimento feminista e movimentos sociais; bem como adensando o agravamento dos processos de adoecimento destas, diante do disciplinamento e moralização dos seus corpos10. Outro conjunto

8 Esse caso fictício foi proposto em uma reunião de matriciamento com equipes da atenção básica, como forma de problematizar possíveis situações de violência que as mulheres poderiam trazer nos atendimentos nos serviços de saúde.

9 Instrumento metálico utilizado para exames ginecológicos. 10

Ao elaborar o conceito do dispositivo da sexualidade Foucault (1988) no diz que o seu processo de construção teve suas origens a partir das preocupações da burguesia do século XVIII em afirmar sua hegemonia perante a classe explorada. Em um primeiro momento a burguesia centrou suas estratégias em converter “o sangue azul dos nobres em uma sexualidade sadia”, recusando-se por um longo período a reconhecer corpo/sexo em outras classes sociais. Na virada para o século XIX e diante um contexto de conflitos sociais (quanto ao espaço urbano,

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de determinantes que norteiam este percurso investigativo é o entendimento de que as bases estruturais de negação de direitos fundamentais estão intimamente relacionadas aos impactos destrutivos da agenda neoliberal para a política de saúde, o que nos explica que a violência institucional tem base estrutural, não devendo ser entendida como um agenciamento restrito aos profissionais.

No contexto dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres a violência institucional se expressa em um conjunto de práticas, donde destaco aqui a negligência com o atendimento, arbitrariedade e verticalização nos processos de cuidado, falta de acesso aos serviços e/ou acesso de baixa qualidade, atendimento policialesco em situações como estupro ou abortamento, cerceamento da liberdade sobre o corpo através de procedimentos desnecessários e invasivos11, atendimento mecânico/sem vínculo profissional-usuária, sobreposição dos interesses institucionais às reais necessidades das mulheres, discriminação (motivada pelo preconceito12) diante de mulheres com infecções sexualmente transmissíveis (HIV/Sífilis/Hepatite), discriminação de ordem racial, social ou relacionada à orientação sexual/identidade de gênero, ou ainda negação formal do livre exercício da sexualidade das mulheres diante da ausência de protocolos institucionais para este campo, ou da existência deles ancorados em uma perspectiva conservadora.

As mulheres brasileiras são as principais usuárias de serviços de saúde, e são especificamente o público que mais acessa o Sistema Único de Saúde (SUS), conforme aponta o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM 2013-2015). Esse cenário de destaque na busca por serviços de saúde deve-se a realidade social de opressão, desigualdade e violência que particulariza a vida das mulheres. É, portanto, a histórica relação hierárquica e desigual

epidemias, doenças, violência), foi necessário a instauração de uma tecnologia de controle/manipulação que permitisse a constante vigilância do corpo e da sexualidade da classe explorada. Nesse contexto, a burguesia buscou redefinir e demarcar a especificidade e singularidade de sua sexualidade, surgindo daí o que o autor vem a chamar de teoria da repressão/incitação (esta díade controla a sexualidade), na qual irão se assentar o autoritarismo e a coerção sobre a sexualidade, bem como o imperativo de que esta deve ser submetida à lei burguesa.

11Existem procedimentos clínicos no interior dos serviços de saúde que recebem a denominação de “didáticos” por fazerem parte de um rol de competências que devem ser aprendidas pelos profissionais que ainda estão em formação. Em muitas instituições esses procedimentos são realizados em mulheres sem que haja uma prévia consulta a estas, no intuito de que os profissionais em formação possam adquirir conhecimento prático. No curso de medicina, por exemplo, o “fórceps didático” é utilizado tanto por professores quanto por alunos, sem que haja necessariamente indicação clínica para a utilização de tal procedimento na usuária. Esses procedimentos são considerados como elementos normatizados de assistência, porém negam formalmente a mulher o controle sobre o seu corpo (HOTIMSKY, 2009).

12 A partir de Heller (1976), este trabalho entende o preconceito como sendo um tipo particular de juízo provisório. Para a autora a partir do momento que um juízo provisório passa a ser refutado pela ciência, e mesmo assim permanece perpetuando-se na estrutura social, podemos considerá-lo preconceito. Heller esclarece ainda que o desprezo pelo diferente acompanha a humanidade desde sua gênese, porém é apenas após a instituição da sociedade burguesa que os sistemas de preconceitos se constituem como um fenômeno típico, sendo, portanto, o preconceito uma categoria própria do pensamento e do comportamento cotidiano, porém aprofundado no capitalismo.

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entre homens e mulheres, articulada as questões de raça/etnia, classe social, precarização do trabalho, orientação sexual/identidade de gênero, que impactam fortemente nas condições de saúde da mulher no campo específico dos seus direitos sexuais e reprodutivos.

Ao buscarem serviços de saúde no Brasil, as mulheres têm se deparado com um atendimento estruturado na lógica da fragmentação do cuidado, onde, de maneira geral, não há espaço para as subjetividades, não há preocupação quanto ao conforto, ao sigilo e à segurança e onde formalmente há a negação do direito de apropriação do próprio corpo, sendo o ambiente institucional essencialmente dominador13.

Este trabalho atribui esta realidade também ao atual contexto de crise vivenciado pelo SUS, que é fruto do progressivo fortalecimento do modelo de saúde privatista. Esta relação se estabelece a partir do interesse do capital de transformação da saúde em mercadoria, buscando difundir o seu ideário por meio da defesa de intervenções estritamente biologizantes e conservadoras que abarquem a doença sob a lógica da lucratividade. É este modelo hegemônico liberal, fortalecido pelo capital, e centrado na cura e no atendimento médico-hospitalar individual, que secundariza a saúde pública e o caráter de suas ações coletivas e sanitárias, relegando ao esquecimento a dimensão de integralidade e a saúde enquanto direito humano (BRAVO, 2009).

Portanto, o cenário de contrarreforma do Estado14 tem colocado requisições específicas

para o trabalho em saúde ao reciclar práticas arbitrárias e conservadoras que reproduzem o modelo de atenção biologizante, individual, curativo e fragmentado. Fica claro que essas requisições estabelecem relação intrínseca com o espraiamento e naturalização das práticas de violência institucional no cotidiano dos serviços de saúde, especialmente quando direcionadas a mulheres – dada sua histórica condição de subserviência.

Em meio a estes apontamentos preliminares, indico que o objetivo geral da presente pesquisa é analisar a violência institucional no campo dos direitos sexuais e reprodutivos das

13Goffman (1974) em sua análise sobre as chamadas instituições totais da sociedade moderna (exemplificadas por ele como sendo as prisões, os manicômios e os conventos), destaca que alguns dos elementos presentes nelas podem ser também observados em outros espaços institucionais (hospitais gerais, escolas, centros industriais e comerciais). Dentre esses elementos o autor esclarece que no interior dessas instituições totais, assim como em outras não totais, há, de maneira geral, uma figura de autoridade que rege todos os aspectos da vida dos sujeitos/internos. Há também o estabelecimento de rotinas administrativas e regras institucionais onde todos devem ser tratados de maneira uniforme (a partir da racionalização de um sistema de regras formais a serem postas em prática pelos funcionários). Assim, com o controle das aparentes necessidades humanas exercido por estas instituições, se cristalizam suas tendências dominadoras na vida dos sujeitos.

14Entende-se a contrarreforma do Estado nos termos de Behring; Boschetti (2011), como reação do capital, por meio de políticas neoliberais, para redimensionar o Estado em direção ao desmonte das conquistas sociais obtidas pela classe trabalhadora no contexto de redemocratização do Brasil, onde se alcançou reformas substanciais expressas na Constituição Federal de 1988.

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mulheres como expressão da violência estrutural promovida pelo capitalismo através de suas tendências ideopolíticas conservadoras. Como objetivos específicos o estudo busca: identificar formas de expressão do pensamento conservador nos serviços de saúde relacionando-as com o fenômeno da violência institucional; caracterizar manifestações da violência institucional do campo dos direitos sexuais e reprodutivos; identificar as relações de poder/saber que têm embasado as relações profissionais de saúde/usuárias; problematizar e analisar a base ética dos direitos sexuais e reprodutivos e sua relação com a violência institucional.

Como ponto de partida para explicar os caminhos metodológicos desta investigação, devo destacar como as influências da minha trajetória profissional, na área da saúde, passeiam no decorrer das linhas deste produto final. Para delinear o objeto de pesquisa em questão, parti de um processo de observação participante, no qual, enquanto profissional de saúde atuante em um serviço de atenção primária, apreendi os primeiros questionamentos e inquietações relativos ao fenômeno da violência institucional e suas implicações na vida das mulheres.

A observação é uma técnica de pesquisa valiosa, que combinada com um método de análise concreta da realidade social, tem a possibilidade de traçar constructos e determinações acerca de um objeto de investigação. Segundo Minayo (2013) a observação participante pode ser uma ponte importante no desenvolvimento de uma pesquisa qualitativa, pois ao estar face-a-face com objeto observado, o observador é parte do contexto sob observação, modificando e sendo modificado por este contexto ao mesmo tempo (p.274). Na visão da autora, a utilização desta técnica tem a possibilidade de inscrever uma contribuição para a construção do processo de pesquisa.

Assim, tendo a responsabilidade de expor os resultados e debates teóricos de forma crítica, este trabalho toma por base a teoria social de Marx, elegendo, portanto, como método de apreensão do real, o materialismo histórico dialético. O pensamento dialético, matriz da teoria social marxista, propõe alcançar e capturar a essência/estrutura/dinâmica do objeto investigado, tendo o pesquisador, através de sínteses e procedimentos analíticos, o desafio de reproduzir “no plano ideal, a essência do objeto que investigou” (NETTO, 2011, p. 22).

Como parte do movimento das sucessivas aproximações com o objeto investigado, em um primeiro momento sistematizei um conjunto de análises por mim realizadas sobre os elementos observados durante a minha atuação profissional. Como fui parte do processo em tela também sistematizei momentos de trocas, aprendizados, atendimentos a usuárias e relatos que percorreram essa trajetória. A organização destes “dados brutos” (por estarem ainda no nível da aparência), fundamentou a separação e organização de possíveis categorias a serem aprofundadas teoricamente, o que levou-me a segunda fase da investigação.

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Esta fase esteve marcada como primeiro momento de análise teórica de algumas categorias elencadas como importantes como por exemplo: direitos sexuais e reprodutivos e violência contra as mulheres e movimento feminista. A partir das leituras preliminares que cercavam estas categorias e através de textos clássicos como: A origem da família, da propriedade privada e do estado (de autoria de Engels) A mulher na sociedade de classes: mito e realidade (de autoria de Safiotti) e O calibã e a bruxa (de autoria de Fedecci); estabeleci um novo conjunto de descritores para a análise bibliográfica contida nesta dissertação.

Para tanto utilizei a priori o Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) a partir de descritores como violência institucional, direitos sexuais e reprodutivos e violência nos serviços de saúde e contracepção/esterilização e saúde das mulheres, selecionando posteriormente publicações que trouxessem em seu conteúdo indicadores que me auxiliassem a caracterizar algumas manifestações da violência institucional contra mulheres nos serviços de saúde. Especialmente neste banco de dados não identifiquei nenhuma publicação, entre teses e dissertações brasileiras, que investigasse a violência institucional no campo dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Entretanto, encontrei diversos estudos que tratavam da qualidade de acesso aos serviços de saúde, da criminalização do aborto, da violência obstétrica, do planejamento familiar (dentre outros).

Para subsidiar a análise bibliográfica realizou-se também uma análise documental, que tratou de se preocupar com os principais elementos de leis, normas técnicas, produções e pesquisas consolidadas pelo Ministério da Saúde sobre o campo vasto dos direitos sexuais e reprodutivos, donde pode-se destacar a lei do planejamento familiar, a política nacional de atenção integral a saúde das mulheres, a norma sobre atenção humanizada ao abortamento e a política nacional de atenção integral à lésbicas, gays, bissexuais e travestis; sendo utilizado também dados sobre os índices de mortalidade de mulheres em idade fértil, considerando os ciclos: gravidez-parto-puerpério-aborto, acessados através do Departamento de Informática do SUS - DATASUS.

A partir de uma análise mais acurada do conjunto de publicações acessadas no BDTD, em alguns artigos de revistas e publicações feministas, bem como nos dados apreendidos através da análise documental, estabelecendo neste percurso uma relação contínua com as reflexões fruto da minha atuação profissional (e com relatos informais que tive acesso); reuni elementos para caracterizar algumas manifestações da violência institucional. Para elucidar as características próprias do objetivo investigado, utilizei trechos das investigações qualitativas acessadas com a análise bibliográfica, os quais dão voz à realidade de negação de direitos vivenciada por mulheres brasileiras. Estes trechos estarão recuados em itálico para serem diferenciados das citações diretas deste trabalho.

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É importante dizer que a ideia inicial desta investigação era realizar um trabalho de campo onde os sujeitos principais fossem as mulheres que tivessem experiências com situações de violência institucional. Entretanto diante de algumas dificuldades logísticas para acessar essas mulheres, bem como em meio ao processo aligeirado imposto ao Mestrado; analisei que as pesquisas bibliográfica e documental combinadas com as reflexões e relatos informais por mim acessados através da minha atuação como assistente social, dariam conta do objetivo central desta pesquisa. Assim sendo, de forma breve, buscarei descrever a seguir os conteúdos que receberão atenção nos capítulos que compõem esta dissertação.

No capítulo II tomei o processo histórico de violência contra a mulher com a intenção de explicitar a funcionalidade da marginalização das mulheres para o desenvolvimento e reprodução da sociedade capitalista. Neste percurso procuro pontuar o papel do Estado na regulação da sexualidade e reprodução das mulheres, indicando o patriarcado e família monogâmica como estruturas de poder que cumprem a função de sujeita-las a uma condição de violência estrutural.

No capítulo III realizo uma análise sobre a base ética dos direitos sexuais e reprodutivos, associando sua transgressão às práticas de violência institucional no interior dos serviços de saúde. O capítulo é composto por cinco notas, que retratam os princípios integridade corporal, autonomia pessoal, integralidade, diversidade e igualdade. Tem por objetivo estabelecer um diálogo entre tais princípios e a realidade de negação de exercício da sexualidade e reprodução vivida pelas mulheres na sociedade capitalista, tomando, particularmente, o interior dos serviços de saúde como espaço de reprodução desta violência.

O capítulo IV apresenta um panorama histórico da trajetória de construção dos direitos sexuais e reprodutivos, destacando-se alguns embates e polêmicas que circundam o delineamento destes direitos. Para tanto, parte-se de alguns apontamentos críticos sobre os Direitos Humanos, assinalando-se as tendências contraditórias do Estado burguês.

No capítulo V abordo a relação existente entre o alastramento do ideário conservador e a naturalização da violência institucional. Analiso e caracterizo posteriormente três expressões/manifestações da violência institucional nos serviços de saúde: a) criminalização do aborto b) contracepção/esterilização compulsória e c) discriminação diante da orientação sexual.

Nas considerações finais busquei destacar as principais reflexões que esta dissertação propõe. Resgatei o debate teórico que associa a violência sofrida pelas mulheres como um problema de ordem estrutural imposto pelo próprio capitalismo, buscando indicar, por fim, alguns caminhos possíveis para compreender características da violência institucional e suas formas de manifestação.

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Acredito que esta dissertação traz em si um desafio contemporâneo para produção de conhecimento, especialmente por vincular em seu conteúdo um projeto de transformação das relações sociais e alcance da emancipação humana. No Brasil atual, onde se destaca o domínio ultra-conservador promovido com a eleição presidencial de Messias Bolsonaro, observamos um ataque massacrante a todos os direitos sociais da coletividade, destacando-se a moralização das demandas trazidas pelos sujeitos e arbitrariedade15. Neste contexto, as razões históricas que determinaram a colocação das mulheres em uma posição inferior, se intensificam e se reatualizam, aprofundando consequentemente as desigualdades sociais, econômicas e políticas. Espero que este trabalho contribua política e teoricamente com a luta pelo rompimento da moral conservadora e superação da sociedade capitalista que a impõe.

15 Para o interesse deste trabalho, destaca-se, por exemplo, a recomendação do Ministério da Saúde (através do despacho 017/2019) de que se extinga o termo “violência obstétrica” dos documentos oficiais que norteiam à atenção obstétrica no Brasil.

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Era terça-feira (para nós as terças eram “dia de carro”) e como a Unidade de Saúde estava relativamente calma, começamos a nos preparar para as visitas. Já fazia mais de um mês que não visitávamos aquela região da zona Rural e o ACS (agente comunitário de Saúde) já havia me alertado que naquele dia teríamos muitas visitas a fazer. – “O ar condicionado está quebrado de novo, viu, Lívia? Vamos levar poeira” – brincou ele, e seguiu falando sobre cada família que iriamos visitar, indiscriminavelmente. Para ele, dentre todos os casos, a situação de Margarida (Margô) era a que exigia uma “intervenção” mais urgente. - “Você precisa ver como é lá (...) Margô não escuta nada que a gente diz, todo ano tem um filho sem ter condições de criar”... “esse último menino que ela teve nem pré-natal ela fez direito (...) mas eu ia sempre lá avisar que ia ter consulta, só que ela é irresponsável né? ”. Margô, 35 anos, é mãe solo, responsável por 10 filhos e beneficiária do Bolsa Família. Vive com a família em uma casa feita de barro, pedra e palha (popularmente conhecida na região do Nordeste como “casa de taipa”). Margô era conhecida na região onde vivia por ser uma “mãe desleixada”. Diziam que Margô era para ser proibida de ser mãe, porque “botava os meninos no mundo só pra sofrer”. Diziam que Margô era “encrenqueira”, “mal-educada”, que não se cuidava, que não cuidava dos filhos. Diziam que Margô “vivia com um e com outro”, diziam que Margô não sabia quem eram os pais de seus filhos. E, na unidade de saúde, alguns profissionais diziam: “Margô precisa ser esterilizada, Margô precisa de laqueadura”. Como se todos os problemas enfrentados por Margô se restringissem apenas a necessidade de controle de sua sexualidade e reprodução. “Mas por que ela não enxerga que não dá pra ela ter essa quantidade de filhos?” “Por que ela não toma a injeção que a gente dá de graça para ela”? “Ela ia viver muito melhor se não tivesse essa quantidade de filhos” ... “Por que ela insiste em manter relações sexuais com aquele fulano que já deve ser pai de bem uns cinco filhos dela”? “Use pílula, Margô! Tome injeção, Margô! faça logo essa laqueadura, Margô!” - Durante meus dois anos de atuação profissional visitei a família de Margô algumas vezes. Nesse período ela engravidou mais uma vez. Não realizou as consultas de pré-natal e buscou esconder a gravidez dos profissionais e da comunidade até onde pôde. Em um dos nossos últimos momentos ela me falou com tranquilidade sobre a gestação em andamento; sempre tínhamos conversas abertas, onde ela geralmente buscava tirar alguma dúvida sobre seus benefícios ou alguns problemas que ela estava enfrentando no momento. Neste dia, Margô me disse que estava escondendo aquela gestação “do povo do posto” porque ninguém ali entendia ela – “ninguém pergunta nada pra eu, Dona Lívia, ninguém do posto quer saber o que eu quero”. É verdade, Margô, ninguém perguntou o que você queria. E

mais uma vez, mesmo sem ser perguntada, Margô desafiou. (Trecho de diário

de campo. São Miguel do Gostoso, verão de 2016).

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2 MULHERES, CAPITALISMO E VIOLÊNCIA

Fonte: Pinterest

Este capítulo tem como objetivo lançar luz sob a questão da marginalização da mulher enquanto socius, situando a expropriação16 da sua sexualidade e de sua reprodução como

requisitos para satisfação dos interesses da ordem hegemônica capitalista heteropatriarcal. Busca também demonstrar a funcionalidade histórica do patriarcado e da família monogâmica para a reprodução do capitalismo, compreendendo que tais estruturas de poder cumprem o papel aglutinador de sujeitar o segmento de mulheres a uma condição crônica de violência estrutural.

16 Marx utiliza a categoria expropriação para explicitar um dos processos que sustentam a dinâmica capitalista. Para tanto, demonstra a violência estrutural como uma das expressões da expropriação, que se dá pela extirpação das condições sociais que permitem aos sujeitos produzir e reproduzir a vida social. De maneira geral “refere-se à privação de alguém, de algo, por meios ilegítimos e violentos (BARROSO, 2018).

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2.1 Bruxas, histéricas e feministas: a histórica violência contra as mulheres na constituição e reprodução da sociedade capitalista

Durante sua trajetória histórica o capitalismo utilizou-se de diversas estratégias para oprimir, explorar e controlar as mulheres. Com a intensificação do exercício desse controle, através de violência e repressão, assentado na divisão sexual do trabalho e no trabalho não remunerado realizado pelas mulheres, houve o favorecimento do processo de acumulação capitalista, sendo este processo de exploração das mulheres funcional para a perpetuação da dominação e da reprodução social do capital.

A redefinição tanto das relações entre homens e mulheres quanto das tarefas nas esferas produtivas e reprodutivas da vida social, realizada a partir da intervenção violenta do Estado especialmente nos séculos XVI e XVII, sintetiza o caráter hierárquico e socialmente construído dos papéis sexuais na sociedade capitalista. Neste período a reprodução humana e o crescimento populacional passaram a ser regulados pelo Estado, que retirou das mãos das mulheres o controle sobre a reprodução que elas detinham.

Outras determinações estruturais também contribuíram para o exercício do controle estrito da função reprodutiva e da vida das mulheres. Dentre elas destaca-se o nascimento da propriedade privada na sociedade de classes, o crescimento das relações econômicas capitalistas e a gênese da família monogâmica.

Anterior ao estágio do que se conhece por monogamia17, algumas teses explicam que

existiu um estado social e comunal no qual homens e mulheres experimentaram uma liberdade sexual sem que houvesse violação da moral estabelecida. Nestas primeiras formas de organização da vida humana as mulheres tinham uma posição social superior, devido ao fato de sua reprodução ser tida como um fenômeno de ordem sobrenatural, mágica e exclusivamente controlada por elas. Com a descoberta de que este fenômeno reprodutivo tinha inteira participação dos homens para se efetivar, o vínculo especial em torno das mulheres e seu poder sobrenatural de dar a vida foi desfeito (ENGELS, 2012, SAFFIOTI, 2009).

Nas sociedades tidas como comunais, onde não existiam premissas como a concorrência, a acumulação, a exploração ou a hierarquização de uma classe de pessoas sob outra, tornava-se impossível se apropriar do trabalho excedente de outro ser humano, já que diante do pouco desenvolvimento da capacidade produtiva, nessa época, as pessoas buscavam satisfazer apenas suas necessidades mais básicas de subsistência. Com a descoberta da 17 Ao longo da história da humanidade existiram várias formas de relacionamento conjugal: poligamia (homem com relacionamento conjugal com várias mulheres), poliandria (mulher com relacionamento conjugal com vários homens), matrimônio por grupos (comunal), e a monogamia.

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agricultura e da pecuária o trabalho humano deu um salto qualitativo, possibilitando aos indivíduos produzirem mais do que era necessário para a sua sobrevivência (LESSA, 2012).

Foi a passagem de sociedades com difíceis condições de sobrevivência (as sociedades comunais) para sociedades onde aparece como fundamental o trabalho excedente o que tornou necessária a exploração do homem pelo homem18. O que antes era de domínio coletivo (as

formas de transformação da natureza e os meios de produção) passa a ser de domínio de uma classe de pessoas. Assim, a nova forma de organização social, a sociedade de classes, instaurada a partir do surgimento da propriedade privada, tem sua gênese correlata ao trabalho explorado. Com o desenvolvimento histórico e acelerado das forças produtivas nas sociedades de classes, a falta de recursos e a carência do momento histórico anterior foram substituídas pela abundância. Nesse percurso, tanto as classes sociais se configuram como essenciais para o desenvolvimento contínuo das forças produtivas quanto também assim se configura a família monogâmica (LESSA, 2012).

O contexto de surgimento da família monogâmica parte da exigência, posta na sociedade de classes, de que os filhos de uma determinada união tivessem sua paternidade indiscutível, para que lhes fossem transferidos, sob forma de herança, os bens privados do patriarca (ENGELS, 2012). Como consequência desse contexto, se acentua a estrutura patriarcal, que devidamente apropriada pelo capitalismo, reflete-se como “um pacto masculino para garantir a opressão das mulheres”, sobre o qual as relações sociais se alimentam e se constroem.

A base econômica do patriarcado não consiste apenas na intensa discriminação salarial das trabalhadoras, em sua segregação ocupacional e em sua marginalização de importantes papéis econômicos e político-deliberativos, mas também no controle de sua sexualidade e, por conseguinte, de sua capacidade reprodutiva (SAFFIOTI, 2009, p. 12).

Saffioti entende o patriarcado como uma forma de expressão do poder político e do direito político que todos os homens exercem pelo fato de serem homens. Não se trata de uma relação privada, mas civil, dando direitos sexuais aos homens sobre as mulheres (praticamente sem restrição). Conquanto, configura-se em um tipo hierárquico de relação que invade todos os espaços da sociedade, tem base material, corporifica-se e representa uma estrutura de poder baseada tanto na ideologia quanto na violência. Funciona como um mecanismo de controle

18 “A passagem da sociedade primitiva à sociedade de classes ocorreu de muitas e variadas formas. Sem desconsiderar essas diferenças – que são importantíssimas para a análise de cada modo de produção, de cada sociedade, etc. −, todas as sociedades de classe se distinguem essencialmente das primitivas (s.i.c.) porque são fundadas por uma nova modalidade de trabalho, o trabalho explorado, alienado. Este requer a organização e a aplicação da violência pela classe dominante sobre os trabalhadores e a separação entre o trabalho intelectual e o trabalho manual. Em poucas palavras, é imprescindível a gênese das classes sociais” (LESSA, 2012, P.23).

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automático, que pode ser acessado pela totalidade dos sujeitos sociais, inclusive por mulheres, conferindo aos homens o direito de dominar as mulheres “independente da figura humana singular investida de poder19” (Saffioti 2009, p. 108).

Mesmo tendo a clareza de que a gênese do patriarcado é anterior ao modo de produção capitalista20, não restam dúvidas de que é no estágio de acumulação inicial do capital que o

patriarcado mais se expande, tornando-se funcional ao capitalismo e formando um sistema de poder estruturado no limiar entre as relações capitalistas e o poder hierárquico dos homens. Assim, o predomínio do homem por meio da monogamia consolidou a escravização das mulheres aos homens. Portanto, o desenvolvimento das relações antagônicas entre homens e mulheres correlaciona-se ao aparecimento das primeiras formas de antagonismo de classes, que têm como elemento central a opressão de uma classe sob a outra e de um sexo sob o outro (ENGELS, 2012).

Com isso, o aniquilamento dos laços comunais que referenciavam experiências de liberdade sexual (não associadas ou influenciadas pelo poder moral de instituições reguladoras como o Estado), se fez elemento essencial para que a classe dominante imprimisse sua ideologia individualista nesta nova forma de organização familiar, que pautava a reprodução e manutenção da propriedade privada como equalizador.

A família monogâmica surge como mecanismo ideológico da classe dominante para individualizar a sobrevivência humana que em experiências anteriores estava atrelada à coletividade, e neste sentido é que ela é um mecanismo desmobilizador das pessoas e dificultador de possíveis formas de resistência às condições de exploração e alienação do seu trabalho (LESSA, 2012).

Nesse contexto de mudanças na estrutura social, as condutas das mulheres diante de sua própria sexualidade passaram a ser fortemente monitoradas, sendo perseguida e penalizada toda

19 Algumas obras de literatura e ficção científica, a exemplo do romance distópico The Handsmaid’s Tale (popularmente conhecido no Brasil como O Conto da Aia) retratam como um sistema autocrático de base patriarcal consegue acessar uma diversidade de sujeitos para disseminar o seu projeto de dominação da sociedade. No livro, a narratória apresenta os elementos constitutivos de um Estado patriarcal de base radicalmente teocrática, que foi alcançado através de um golpe político orquestrado por um grupo de pessoas composto por homens e mulheres (no entanto fica claro que o “pacto” é feito entre os homens, os quais se utilizam das mulheres posteriormente para a disseminação do projeto opressor). A figura da esposa de um dos comandantes, desta nova sociedade, radicalmente anulada em termos de direitos, aparece como uma das responsáveis por estruturar as ideias, defendê-las e massificá-defendê-las (por vivenciar um grau de alienação tão elevado ao ponto de não reconhecer que a mesma estrutura de poder que ela defenderia, iria também oprimi-la). Nesta sociedade distópica (onde as mulheres perderam todos os seus direitos civis, políticos, reprodutivos e sexuais), mulheres e homens, de diferentes posições sociais, são colocados em uma dupla função infindável: vigiar e ser vigiado, porém, de maneira particular, nesta sociedade as mulheres são cruelmente silenciadas.

20 Estima-se que o Patriarcado nasceu há em média 5 mil anos atrás, sendo considerado, em termos históricos, muito jovem e sucessor das sociedades igualitárias (SAFFIOTI, 2015).

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aquela mulher que transgredisse as normas sociais e disciplinares adotadas pelo Estado. Em países europeus criou-se leis severas especialmente direcionadas para punir qualquer mulher considerada culpada de “crimes reprodutivos” como a contracepção, o infanticídio e o aborto.

Federici (2004) analisa que a principal iniciativa repressora do Estado baseava-se no aniquilamento do controle que as mulheres vinham exercendo sobre seus corpos, sua reprodução e sua fertilidade. A autora destaca o fato histórico da caça às bruxas, ocorrido durante a transição do modo de produção feudal para o modo de produção capitalista como de grande relevância para a demarcação de uma verdadeira guerra do Estado contra as mulheres, na qual este passou a demonizar todas as maneiras de controle de natalidade e sexualidade historicamente utilizadas pelas mulheres, bem como perseguiu e acusou mulheres pela suposta realização de seitas e sacríficos de crianças.

Notadamente, a caça às bruxas atuou de tal forma na estrutura social que a partir da condenação da sexualidade das mulheres (reconhecida como responsável por todo o mal existente), foi possível sedimentar uma ampla reestruturação da vida sexual, ajustando-a à nova disciplina capitalista do trabalho – onde qualquer atividade sexual que se distanciasse da função procriativa, ou práticas que atuassem no sentido de diminuir o tempo e a energia disponíveis e necessários para o trabalho, foram cruelmente criminalizadas.

Esta perseguição, seguida da punição severa (execução), de toda aquela que violasse as normas reprodutivas estabelecidas pelo Estado, secundarizou e marginalizou a histórica atuação das mulheres como parteiras, bem como relegou ao estatuto de crime todas as técnicas de controle sobre a procriação desenvolvidas e utilizadas pelas mulheres ao longo dos anos. O medo de que as mulheres continuassem a exercer o domínio exclusivo sobre seus corpos levou as autoridades a introduzirem médicos homens para a realização de partos. O que antes era um assunto de foro exclusivo e particular das mulheres passou a sofrer interferências diretas do Estado, através dos seus agentes e instituições (FEDERICI, 2004).

Entre parteiras e curandeiras populares houve neste período intensa perseguição e criminalização do saber até ali construído em torno do ser mulher. Essa perda de espaço possibilitou a sedimentação de uma forma institucionalizada de controle, a qual Federici aponta estar atada aos marcos do surgimento da medicina profissional, que mesmo diante de suas pretensões curativas (voltadas às patologias), e em detrimento da criminalização do saber popular, “erigiu uma muralha de conhecimento científico indisputável, inacessível e estranha para as classes baixas” (p. 365-366).

A perda de poder e o escanteamento da figura das parteiras reduziu e marginalizou a histórica e exclusiva atuação das mulheres sobre o processo de procriação como um todo. A introdução da figura dos médicos modificou o instituto do parto, incutindo-se uma prática - que

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