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Considerando que a gênese do direito tem em si forte relação com a necessidade de regulação dos conflitos sociais - advindos dos processos de inequidade social produzidos no seio da sociedade de classes - bem como tendo a clareza de que a noção de direitos também aparece nos mais distintos contextos sociais, inclusive em regimes patriarcais e autoritários - onde se estabelece uma cartilha de imposições a serem seguidas, acompanhadas de uma quantidade de direitos para regular a atividade social e assegurar a condição de reprodução da dominação-exploração dos sujeitos; situamos que há uma tendência (burguesa/liberal) de invisibilizar a diversidade humana e as condições sociais, culturais, econômicas, raciais e de gênero que circundam e estruturam as “escolhas” que envolvem corpo, sexualidade e reprodução.

O movimento feminista passa a enfatizar a necessidade de politização do privado, dando visibilidade ao corpo e a sexualidade a partir da década de 1960. No campo teórico e político formulou sua crítica aos denominados mecanismos de controle do corpo, da reprodução, da sexualidade e das relações de poder e dominação no interior da família patriarcal. A crítica às concepções normativas em torno do ser mulher trouxe à tona a noção dos corpos como uma “questão política, um lugar de disputa de poderes, de prazeres desiguais, de sofrimentos inevitáveis e de subjetividades múltiplas” (SCAVONE, 2012, p. 64).

A partir do momento histórico em que a centralidade do casamento e da maternidade – como destino universal das mulheres - passa a sofrer fortes questionamentos por parte do movimento feminista (intensificados especialmente entre as décadas de 1960-1980); impulsionou-se um processo de desnaturalização do corpo (crítica ao essencialismo biológico) e de dissocialização entre sexualidade e reprodução (a partir da ênfase política e teórica na defesa do direito ao aborto, da disseminação da contracepção, da segurança das relações sexuais e da defesa da liberdade sexual) (PORTELA, 2007).

Na esfera da sexualidade, a aparência de que algumas requisições do movimento feminista tinham sido atendidas e “resolvidas” – que partiram da noção de que a histórica repressão sexual exercida sob as mulheres já não se manifestava da mesma maneira e nem ocupava o mesmo lugar em fins do século XX e no curso do século XXI - inscreveu um debate em torno da perda de espaço político da sexualidade em detrimento do aumento de espaços coletivos que discutissem as questões reprodutivas.

O sexo passava a ser valorizado positivamente dando-nos a falsa impressão de que alguns dos objetivos das décadas anteriores haviam sido alcançados. Desnecessário dizer que sabíamos todas que, por trás das aparências, pulsava uma realidade muito mais complexa, contraditória e ambígua que exigia novas problematizações. Sabíamos, também, que não seria possível, para nós, tratar do tema dos “direitos” apenas de modo abstrato ou puramente conceitual. (PORTELA, 2007, p. 98).

Esse cenário de ocultamento do real é expressão da cooptação, de conteúdos pautados pelo feminismo, pela ordem social burguesa, que era criticada e combatida. Assim, mesmo sendo parte essencial dos processos de intensas transformações culturais e conquistas sociais para o segmento de mulheres, “algumas das ideias e conquistas feministas foram, muito rapidamente, apropriadas pela cultura dominante e, em especial, pelos meios de comunicação de massa e pela publicidade36, em um processo com o qual nos enfrentamos até hoje” (PORTELA, 2007, p. 99).

De maneira mais contemporânea, a crítica feminista em torno da objetificação dos corpos e da naturalização da reprodução encontrou-se também na questão das biotecnologias (ou tecnologias de intervenção no corpo humano), evidenciando que se por um lado os saberes e as práticas produzidas no uso das intervenções das biotecnologias podem reforçar a sujeição dos corpos, por outro podem também servir como possibilidade para subverter tal sujeição.

36 Podemos situar a apropriação enviesada da bandeira feminista de liberdade sexual em algumas campanhas publicitárias brasileiras. Como exemplo mais explícito destaca-se a campanha de lingerie estreada pela modelo internacional Gisele Bündchen, em que ela ensina mulheres a melhor maneira de informar aos seus maridos/esposos que estouraram o limite do cartão de crédito. Para tanto, a campanha demonstra o jeito considerando “errado” de falar sobre o assunto quando Gisele aparece com roupas desarrumadas. Como jeito “certo” a modelo aparece no comercial somente de lingerie. Através do repúdio de algumas organizações feministas, o Conselho Nacional de Autoregulação Publicitária e a Secretaria de Políticas para as Mulheres formalizou o pedido de suspensão da veiculação da propaganda, baseando-se na alegação de que ela “promove o reforço do estereótipo equivocado da mulher como objeto sexual de seu marido e ignora os grandes avanços que temos alcançado para desconstruir práticas e pensamentos sexistas. Também apresenta conteúdo discriminatório contra a mulher, infringindo os artigos 1° e 5° da Constituição Federal” (PRAZEERES, 2012, P.47). Ainda, segundo a autora, no jornalismo, de uma forma geral, mesmo que as reportagens tenham, em tese, a proibição de serem abertamente machistas, a “orquestração dos sentidos”, como nomeia a autora, cria um ambiente que facilita a massificação da reprodução de discriminação e violência contra as mulheres.

Num primeiro momento as tecnologias médicas desenvolvidas (em especial a fórmula de contracepção feminina) são vistas pelo movimento feminista como dispositivos que serviriam para controlar os nascimentos, dando base para fortalecer a política de independência entre sexualidade e reprodução, sendo o livre uso dessas tecnologias reivindicado para o conjunto de mulheres. O sentido desta defesa estava pautado não só em libertar as mulheres da imposição de uma sexualidade procriativa, como também “lhes possibilitar a autonomia sexual, já que até então a sexualidade heterossexual estava, em grande medida, bloqueada pelos medos e sustos de gravidezes indesejadas e sucessivas” (SCAVONE, 2012, p. 65).

Em um momento posterior exprimiu-se a preocupação com as tendências de mercantilização das demandas sociais, que passaram a pautar as buscas por dispositivos tecnológicos na área da saúde, como por exemplo: a reprodução humana (através de Tecnologias de Concepção TCs), manipulação hormonal dos corpos, cirurgias plásticas de ordem estritamente estética, implantes, dentre outros procedimentos) – instaurando, com isso, um processo de submissão do corpo ao dispositivo normalizador da medicina. Dentro deste contexto Scavone (2012) destaca que a criação de tais biotecnologias pela medicina teve por fundamento a dicotomização da sexualidade (noção de sua categorização em dois possíveis caminhos normativos: Feminino/Masculino). Tal concepção trouxe consigo a reafirmação da naturalização das funções biológicas e dos papeis sociais, reposicionando as mulheres no domínio da maternidade.

4.2 Trajetória da promoção dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres: Um caminho de