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3.1 Direitos sexuais e reprodutivos: uma necessidade humana inalienável

3.1.1 Diversidade sexual

Como anteriormente explicitado, antes da vigência da propriedade privada, da família monogâmica e fatalmente da exploração do homem pelo homem, a organização comunal das relações afetivas baseava-se na cooperação coletiva e na igualdade entre os sujeitos, sendo a liberdade um valor central. Neste período histórico, longe da agência das sociedades de classes e da ordem monogâmica, não havia ainda a imposição e nem necessidade de reprodução de herdeiros (da propriedade privada do patriarca), inexistindo limites impostos à expressão e a vivência da sexualidade de homens e mulheres. Isso posto, situamos que a diversidade sexual é, naturalmente e notadamente, uma característica consubstancial da vida e uma expressão da diversidade humana.

Para pensar a diversidade como objeto de reflexão ética, a entendemos como componente da realidade social, estando presente nas diferentes configurações sociais, culturais, simbólicas, escolhas e valores que envolvem raça, etnia e formas de viver.

Santos (2005) esclarece que apesar da diversidade ser um elemento constituinte da individualidade humana, seu reconhecimento não configura o abandono da dimensão genérica e da universalidade, pois “ser diverso não significa a fixação na singularidade e nem legitima o entendimento da vida social, na forma fragmentária, como algo natural, como se a fragmentação não se constituísse num resultado histórico-social” (p. 46).

Para Breilh (2006), o caráter heterogêneo do movimento do real é um princípio constitutivo da humanidade, onde os vínculos entre os sujeitos existem pela interdependência – conformando à diversidade e à unidade um movimento inter-relacionado e dinâmico. Contudo, a partir do momento em que se processa historicamente a inequidade, entendida como a apropriação e concentração do poder entre a classe dominante, entre o gênero masculino e em algumas etnias consideradas superiores, “ao invés de ser fonte do avanço humano, a diversidade passa a ser um veículo de exploração e subordinação” (BREILH, 2006).

Explica o autor que a inequidade é um processo social que tem como consequência a desigualdade social (entendida como um dos efeitos e expressão observável de uma inequidade

social). Compreender a inequidade enquanto categoria analítica possibilita apreender a essência e os determinantes do problema – que produzem injustiças, exclusões, intolerâncias, preconceitos e disparidades; instalando a inviabilidade da vivência do diverso e de suas características humanas potencialmente enriquecedoras.

Assim, a gênese de toda inequidade se assenta na apropriação do poder, que se dá através: da apropriação da riqueza socialmente produzida, da apropriação patriarcal do poder e sua influência na constituição de relações hierárquicas entre os sexos, e da apropriação do poder por parte de grupos étnicos historicamente situados como superiores.

Desse entendimento, podemos destacar, segundo Breilh, três processos de inequidade geradores da opressão e exploração-dominação dos sujeitos - classe, gênero e raça/etnicidade –, os quais, por compartilharem de uma mesma base estrutural (que acumula e concentra o poder do capitalismo), se inter-relacionam, não podendo ser vistos como processos desvinculados. Logo:

da mesma forma que a inequidade de gênero produz efeitos de injustiça para as próprias mulheres, ela alimenta, ao mesmo tempo, relações subordinadoras que contribuem para reproduzir as outras duas formas de concentração do poder, e introduz nas mais variadas formas do cotidiano um campo de adaptação e aceitação da inequidade como um modo natural de viver. Da mesma forma, a concentração da propriedade da riqueza, que determina e mantém as classes sociais, é, em última instância, uma concentração do poder de dominar, e dominar não é só uma questão de despojar os subordinados dos bens e da riqueza, mas requer, para se sustentar, ser sempre um processo de hegemonia e aceitação do domínio, mecanismo este do qual participam as relações culturais de dominação de gênero e étnicas. Em outras palavras, a dominação não é apenas classista, mas compõe uma estrutura de poder que é perpassada e reproduzida tanto pelas relações de apropriação e expropriação econômicas quanto por relações de subordinação étnica e de gênero (BREILH, 2006, p.213/214).

A questão da opressão quanto à orientação sexual (entendida como expressão da identidade e diversidade humana), sobretudo à opressão sexual vivenciada por mulheres, passou a ser discutida ainda no século XIX pelos chamados socialistas utópicos, que travaram uma batalha contra a opressão apenas no campo das ideias (por acreditarem que a violência da sociedade adivinha da falta de informação e de ideias equivocadas sobre a sexualidade humana). Ancorados em uma perspectiva reformista, vertentes do partido social democrata alemão, procuraram desenvolver estratégias educativas onde se disseminassem a questão da aceitação das relações afetivo-sexuais entre indivíduos do mesmo sexo, tendo como horizonte para a resolução da questão o incentivo a luta pela conquista dos direitos civis, tornando-se, portanto, cúmplice da ideologia liberal (SANTOS, 2005).

Santos (2005) nos chama atenção para os caminhos trilhados já no século XX pelo o que, em suas elaborações teóricas, ela vem a chamar de “esquerda democrática”. Conforme disserta, a partir das décadas de 1980/1990 há uma intensificação da atuação política de movimentos sociais em torno da liberdade de orientação sexual, donde a direção dada especialmente a estas lutas “situa a solução para o enfrentamento das questões socioculturais no terreno da luta pela igualdade formal e pelo reconhecimento dos direitos civis e direitos sociais” (p. 211).

Compreende-se, portanto, que há uma limitação em setores da esquerda no que diz respeito à naturalização do poder do capital, levando tais setores a considerar o sistema capitalista enquanto uma estrutura inabalável. Este entendimento direciona a ação política da esquerda a uma possibilidade central: a compreensão de ser impossível transformar/derrotar o sistema capitalista em vigência, devendo a atuação social dos setores da esquerda se voltar para o campo das possibilidades imediatas, dando-se “uma cara humana ao capitalismo” (SADER, 1988, apud SANTOS, 2005, p. 177).

Deste entendimento, podemos situar a importância da construção da identidade ao pautarmos a diversidade dos modos de viver e ser (os quais, geralmente não encontram legitimidade social). Os processos de resistência às situações de violência, opressão e violação dos direitos, conformam a reconstrução de espaços de socialização das vivências e obstáculos, socialmente impostos e sentidos, diante da orientação sexual, identidade de gênero e dos aspectos em torno da raça/etnia; entendendo “a diversidade humana em toda sua densidade histórica” (p.179) e levando os indivíduos a aprimorarem “a consciência do que é opressão, violação de direitos e imposição de padrões e modos de ser”. Assim, nas palavras de Santos:

A identidade se faz caminho para a formação da consciência num processo, às vezes, referenciado no embate entre projetos societários e no enfrentamento de múltiplas modalidades de subordinação e práticas de silenciamento e invisibilização impostas e sentenciadas por meio da reprodução de práticas e valores da lógica patriarcal que articula exploração e opressão e se expressa, dentre outras, no racismo, no sexismo, no heterosexismo e na lesbo/homo/transfobia (SANTOS, 2005, p. 179).

Em fins do século XX e diante da multiplicidade de sujeitos coletivos e de suas bandeiras de luta, especialmente levantadas pelos movimentos feministas e LGBTQ+, há a estreia de uma multiplicidade e pluralidade de abordagens teóricas em torno da diversidade de manifestação da sexualidade humana. A partir de então tensiona-se a dimensão estritamente biológica atribuída a sexualidade, trazendo ao debate questões que envolviam os direitos reprodutivos, as identidades sexuais e de gênero e os direitos sexuais. Paralelamente também

se estruturam saberes científicos em torno da história da sexualidade, da psicologia e psiquiatria, ginecologia (SANTOS, 2005) - os quais, de uma forma ou de outra, ao estruturarem saberes sobre sexualidades e identidades, conformaram um exercício de poder sobre os sujeitos pautado em sua legitimidade social para realizar o enquadramento dos seres humanos.

Apesar disso, podemos situar contribuições críticas de grande valor social para a compreensão histórica da sexualidade humana e de algumas de suas determinações, a exemplo da trilogia do clássico História da sexualidade, produzida pelo filósofo Francês Michael Foucault.

No contexto atual a luta em torno da liberdade de orientação sexual (LOS), necessariamente deve envolver a crítica e o questionamento do paradigma dominante da sexualidade que estrutura as relações afetivo-sexuais. Segundo Santos (2005), esse paradigma atua com base na concepção tradicional de família monogâmica heterossexual, enraizando-se a partir de bases conservadoras regidas por princípios e práticas sexistas e heteropatriarcais, tendo como características:

desigualdade nas relações sociais de sexo/gênero; rigidez na demarcação de papéis sexuais; legitimação da dominação/superioridade masculina; secundarização do feminino e suas possibilidades; idealização e naturalização da figura materna; empobrecimento da sexualidade masculina; imposição de um padrão rígido de beleza, sensualidade e desejo; fosso entre afetividade e sexualidade; identificação entre sexualidade e reprodução, o que derivou na imposição da heterossexualidade como modalidade exclusiva de relação afetivo-sexual, ou seja, a criação ideológica de um modo de convivência afetivo-sexual instituído como correto, que consolida o heterossexismo. (SANTOS, 2005 p. 180/181).

A lógica da negação da diversidade humana produz, no cotidiano da vida social, desafios, conflitos e contradições aos sujeitos, especialmente aos perifericamente situados como é o caso das mulheres, negros (as), crianças, comunidade LGBTQ+, onde se nega formalmente seus direitos e mina-se o seu poder de mobilização e controle social. Nesse sentido, para que haja a real efetivação da diversidade humana, em suas múltiplas possibilidades e manifestações, é necessário fortalecer o projeto de sociedade pautado na igualdade substantiva, e afastar-se da lógica formal (lê-se liberal) da diferença e da igualdade de oportunidades, que tendem a fragmentar a realidade social a partir da criação de grupos específicos – que fatalmente trazem como tendência o afastamento dos determinantes que estruturam a opressão e a violência na sociedade capitalista.