• Nenhum resultado encontrado

5. O reflexo de diferentes ideologias na percepção do risco: uma análise da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio

5.2. Avaliação de risco na sociedade precaucionária

No mundo globalizado, os riscos ecológicos ameaçam a natureza e a sociedade humana de várias formas. Por meio do avanço tecnocientífico surgem novas situações de risco imensuráveis. A sociedade permanece alheia em relação às ameaças das novas biotecnologias que são, frequentemente, trivializadas e minimizadas estatisticamente, tanto pelas pesquisas científicas quanto pelas próprias instituições criadas para controle dos riscos (BECK, 1997).

Os riscos podem ser causados por agentes físicos, agentes químicos, ou agentes biológicos. Os riscos relacionados aos possíveis efeitos adversos do desenvolvimento biotecnológico são denominados de bioriscos. Existem riscos relacionados a forças naturais e ao hazard social. Os riscos relacionados à inovação tecnológica são reconhecidos como complexos, pois se relacionam com os múltiplos hazards da interação entre as diferentes dimensões socioambientais (RENN, 2008).

Do ponto de vista da gestão do risco, dois tipos de risco devem ser considerados: (i) os riscos derivados de uma certeza (risco nuclear, por exemplo), comumente chamados de perigo, suscitam um sistema de prevenção, ou seja, quando há um conhecimento prévio dos possíveis efeitos da tecnologia, recorre-se a um sistema de prevenção de riscos; (ii) os riscos potenciais (como os riscos dos organismos geneticamente modificados - OGMs), que suscita uma abordagem de precaução, ou seja, como não se conhecem os riscos e não há como preveni-los, a tecnologia deve passar por um processo de avaliação da viabilidade do seu uso (HACHE, 2005, p. 187; GALLAIS, RICROCH, 2006, p. 189).

A noção de precaução difere, assim, da noção de prevenção (que é utilizada quando se há certeza do perigo). A aplicação da precaução ocorre sempre que há incertezas quanto à gravidade dos riscos potenciais (LECOURT, 2003, p. 28).

O princípio da precaução surgiu no final da década de 1960, no sistema jurídico alemão, como um conjunto de prescrições sobre como gerir e regulamentar os potenciais riscos da indústria química. Posteriormente, foi aplicado em áreas como saúde pública e segurança alimentar, sendo incluído em diversos tratados internacionais. Tal princípio afirma que, na ausência de certeza científica quanto à existência de um risco de dano grave ou irreversível, aplicam-se medidas de prevenção a esse dano (DUPAS, 2006, p. 235).

O princípio refere-se ao risco potencial, que ainda não tenha sido integralmente demonstrado, devido à insuficiência ou caráter inconclusivo dos dados científicos. A tomada de decisão, portanto, deve levar em consideração a superação ou gestão das incertezas. Neste caso, é imperativo reconhecer a existência da incerteza e fixar níveis de riscos considerados aceitáveis (LEITE, AYALA, 2004, p. 77 - 78).

Mais que isso, o princípio da precaução não se resume somente em determinar quais são os riscos que dada sociedade deseja correr, mas está ligado ao questionamento sobre a adoção de determinada tecnologia ou atividade, ou seja, implica uma reflexão crítica sobre o modelo de desenvolvimento (SILVA, 2004; HERMITTE, DAVID, 2004).

Juridicamente, o princípio da precaução reclama a responsabilidade dos Estados, que deve intervir para a segurança do meio ambiente ou da saúde humana e animal. O princípio foi adotado na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento no Rio de Janeiro (1992). O Princípio 1537 da Declaração do Rio de Janeiro postula a precaução

como parte intrínseca da política ambiental internacional, tendo sido incluída em muitos

37

Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas

instrumentos jurídicos internacionais ambientais. O princípio da precaução é um instrumento reconhecido como soft law, e não se caracteriza como regra jurídica. Porém, o fato de estar presente na maioria das declarações internacionais sobre proteção ambiental contribui para que seja gradualmente inserido nas legislações nacionais como regra obrigatória (WOLFRUM, 2004; SADELEER, 2004; GALLAIS, RICROCH, 2006, p. 190).

O Brasil é signatário do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, acordo internacional firmado no âmbito da Convenção de Diversidade Biológica, com a finalidade de proteger a diversidade biológica, considerando também a saúde humana, frente aos riscos dos organismos geneticamente modificados. O Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança apoia-se amplamente no enfoque da precaução. Esse Protocolo afirma que a ausência total de certeza científica e a falta de conhecimentos relevantes relacionados à amplitude dos potenciais efeitos adversos de um organismo geneticamente modificado (OGM), para a conservação e o uso sustentável da diversidade biológica, um Estado- Membro pode restringir ou proibir o uso e a importação desses organismos (SALAZAR, 2008; SANDS, 2004).

Vários países adotam um sistema de gestão de risco instituindo comitês, comissões e agências com o papel de assegurar decisões políticas frente a avaliações de risco e à biossegurança. A avaliação de risco, num contexto de incerteza, torna-se uma questão política e jurídica. Nestas instituições, de forma geral, as informações, modelos e hipóteses divergentes devem ser apreciadas num processo de avaliação de risco, que, necessariamente, deve ser guiado por um princípio de transparência e justificação das escolhas (HERMITTE, DAVID, 2004).

A avaliação do risco compreende um processo sistemático, com bases científicas, de identificação e caracterização de possíveis efeitos dos riscos. Os procedimentos devem incluir a identificação e estimativa dos danos potenciais, sua magnitude e frequência de ocorrência, bem como as alternativas tecnológicas. Embora uma avaliação de risco incorpore juízos e valorações subjetivas, ela deve ser um procedimento objetivo, em termos quantitativos e qualitativos (GLIDDON, 1999; NODARI, GUERRA, 2001).

No caso dos organismos transgênicos, ou seja, que contêm material genético modificado de modo permanente por meio de engenharia genética, a necessidade de avaliação do risco baseia-se no fato de que os sistemas genéticos resultam de interações complexas entre os vários genes do organismo e o meio ambiente. Desta forma, não há como dimensionar se intervenções genéticas relativamente simples podem produzir

mudanças significativas no sistema vivo como um todo e se poderão afetar a natureza e a espécie humana a longo prazo (FUKUYAMA, 2002, p. 124 - 127).

No complexo processo de transferência gênica e duplicação celular, a visão reducionista dominante não permite a concepção de problemas essenciais como o plano geral do organismo e/ou suas interconexões com o meio ambiente (efeitos epigenéticos e pleiotrópicos)38. Os riscos associados a uma variedade modificada dependem das interações

complexas decorrentes da modificação genética específica, da história evolutiva de cada organismo envolvido, das características ecossistêmicas do local onde o organismo é liberado, bem com do hazard e das interações com os outros seres vivos. Esta complexidade se agrava com o aumento da área cultivada com OGMs em todo o mundo (THOM, 1979, p. 9 - 11; PETERSON et al., 2000; NODARI, GUERRA, 2001, p. 89).

Um bom sistema de avaliação de riscos relacionados aos transgênicos deve considerar os aspectos físico-químicos e biológicos de cada produto modificado. Deve levar em consideração a probabilidade de ocorrência de danos à saúde humana, animal, ambiental (em diferentes biomas), os efeitos prejudiciais, a seriedade dos danos, e a possibilidade de contenção e reversão dos efeitos adversos. Deve levar em conta, também, aspectos de falha humana e as questões socioeconômicas, como também contar com um sistema de supervisão e monitoramento (LACEY, 2006, p. 116).

Observa-se, entretanto, que apesar de a avaliação de risco ser um procedimento essencial de mapeamento, projeção, minimização ou controle dos riscos potenciais, a ligação entre a atividade científica e a efetivação da avaliação de risco nem sempre é linear. A percepção do risco depende de como cada ator social compreende o processo de risco e de como são influenciados pelo seu meio sociocultural e profissional. Também é importante a compreensão de como estes atores dimensionam o grau de importância do risco para a sociedade e para sua vida (HERMITTE, DAVID, 2004; BORRAZ, GILBERT, JOLY, 2007; LUPTON, 2006).

Os riscos, ao serem incorporados nos processos discursivos, assumem padrões particulares de interpretação, compreensão e comunicação. Desta forma, o risco deixa de ser um dado objetivo para se afirmar como produto de uma controvérsia, baseada em múltiplos conteúdos, que reproduz um conflito valorativo, conforme será demonstrado na sessão seguinte.

38