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4. Conflito(s) em torno da liberação de organismos geneticamente modificados no Brasil: um olhar sobre a instância da Comissão Técnica Nacional de

4.1. O nascimento das contradições

Desde a década de 1980, quando as primeiras técnicas de transgenia começaram a ser realizadas, a questão dos organismos geneticamente modificados (OGMs) tornou-se polêmica. Vários setores da sociedade civil, cientistas e políticos passaram a questionar os riscos e as incertezas técnicas e morais da utilização de sementes transgênicas para a saúde humana e para o meio ambiente deflagrando conflitos de caráter socioambiental que representam interesses de cunho material, político, moral e ideológico.

No Brasil, a regulação sobre procedimentos biotecnológicos teve início com a primeira Lei de Biossegurança (Lei n. 8.794), sancionada em 1995. Essa Lei, que seguia o modelo regulatório europeu, disciplinava a manipulação e o uso dos organismos geneticamente modificados, denominados transgênicos, normatizando a pesquisa em contenção, a experimentação em campo, o transporte, a importação, a produção, o armazenamento e a comercialização. Também criava uma comissão específica para tratar da biossegurança de organismos geneticamente modificados, a CTNBio, que funcionava como um órgão de consulta dos Ministérios da Saúde, Meio Ambiente e Agricultura.

De acordo com o depoimento de Francisco Aragão, membro da CTNBio e pesquisador da Embrapa/Cenargem, a primeira Lei de Biossegurança foi considerada muito boa e avançada. Porém, a Lei não passou na prova de fogo quando, em 1998, a CTNBio aprovou a soja RR (Roundup Ready) da Monsanto.

Essa liberação foi contestada judicialmente por meio da iniciativa do Instituto de Defesa dos Direitos do Consumidor (IDEC), que entrou com uma medida cautelar contra a decisão da Comissão. Em setembro de 1998, a 11ª Vara da Justiça Federal de São Paulo, baseada no princípio da precaução, concede liminar ao IDEC proibindo a União de autorizar o plantio comercial de soja transgênica, enquanto não fosse regulamentada a comercialização de produtos geneticamente modificados e realizados estudos prévios de impacto ambiental (EIA-Rima) (GUIVANT, 2004; MENASCHE, 2000).

Toda essa situação revelou as fragilidades da Lei, que tinha conflitos tanto com a legislação ambiental quanto com a legislação de agrotóxicos. De acordo com o secretário executivo da CTNBio, Jairon Alcir do Nascimento, a 1ª Lei não deixava claro sobre quem daria a última palavra em relação aos eventuais impactos no meio ambiente, se seria o Ibama ou a CTNBio.

Para Francisco Aragão, a proibição jurídica gerou uma situação de ilegalidade no Brasil. A soja cultivada de maneira irregular gerou uma situação de falta de segurança tanto jurídica quanto biológica. Além disso, o plano de monitoramento aprovada pela CTNBio não foi colocado em prática devido à situação de ilegalidade das produções. Segundo ele, em dois anos, as amostras de soja, que eram testadas pela Embrapa/Cenargem, passaram de 1% a 2%, para 80% de resultado positivo para transgênicos.

O ano de 1999 seguiu conturbado. Em maio, o Ministério do Meio Ambiente anunciou que exigiria estudo prévio de impacto ambiental de todos os produtos transgênicos que fossem analisados pela CTNBio. Na 6ª Vara da Justiça Federal, de Brasília, Idec e Greenpeace entraram com pedido de nova liminar para impedir a autorização do registro das sementes transgênicas da Monsoy (MENASCHE, 2000).

Além disso, o ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho, já havia se manifestado de forma crítica à liberação do cultivo comercial de organismos geneticamente modificados no país, posição oposta à assumida pelo ministro da C&T, Bresser Pereira (MENASCHE, 2000).

Já o ministro da Agricultura, Francisco Turra, defendia a liberação do cultivo comercial dos transgênicos, com apoio da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), e propunha a rotulagem dos produtos contendo organismos geneticamente modificados. No início de junho, refletindo o debate interno do governo e as pressões exercidas sobre ele, o ministro da Agricultura chegaria a anunciar a liberação dos cultivares, para, em seguida, negar a declaração. Os diferentes ministérios apontavam a necessidade de um posicionamento unificado do governo federal sobre a questão (MENASCHE, 2000).

No calor desse debate, um estudo publicado na revista científica britânica Nature26, indicou que o milho transgênico Bt produz pólen que poderia matar as larvas da espécie de borboleta Monarca, o que gerou grande impacto internacional (MENASCHE, 2000).

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Losey J. E, Rayor L.S, Carter M.E. Transgenic pollen harms monarch larvae. Nature. vol.20, nº 399

Ainda em 1999, as ações do Idec foram fortalecidas por diversas alianças27 que deram origem à Campanha Por um Brasil Livre de Transgênicos, que tem como objetivos proibir o cultivo, a comercialização e o consumo de sementes transgênicas e defender um projeto ecológico. Os eixos estão voltados para ações no campo legislativo e judiciário e para o esclarecimento à população. Essa rede, formada atualmente por mais de 50 entidades, produz semanalmente o boletim Por Um Brasil Livre de Transgênicos.

A organização da Campanha Por Um Brasil Livre de Transgênicos foi um reflexo de uma coalizão internacional contra a liberação dos transgênicos. Esta coalizão, conforme salienta Guivant (2004,) assumiu uma agenda definida a partir das ações desenvolvidas na Comunidade Europeia que inclui o princípio de precaução, a necessidade de avaliação de impacto ambiental, a rotulagem e a participação pública no debate. A defesa do princípio de precaução dividiu a comunidade científica e passou a ser a questão central do conflito em torno do uso das biotecnologias.

O princípio da precaução baseia-se no fato de que, até hoje, não foram apresentados estudos que comprovem a segurança desses organismos já que são raras as pesquisas realizadas na área de saúde humana e animal e as pesquisas realizadas pelas empresas diretamente envolvidas com biotecnologia, nem sempre são publicadas (DOMINGO, 2007). Em julho de 2000, o governo federal publicou uma nota defendendo o uso de OGMs e alegou que as atividades da CTNBio expressavam a política do governo com respeito à biossegurança. Em seguida, o Ministro da Agricultura anunciou os resultados da colheita de 1999/2000, afirmando que esta seria “a última safra não transgênica do país”. Numa entrevista à imprensa o ministro acusou as ONGs, que se posicionavam contra a liberação comercial dos organismos geneticamente modificados, de serem financiadas por organismos multinacionais que perderiam com a redução do consumo de herbicidas, ou por países concorrentes do Brasil no mercado internacional (PELAEZ, 2010).

Como consequência da proliferação do plantio clandestino da soja transgênica no Rio Grande do Sul, em 2003, o governo brasileiro aceitou a soja ilegal como fato consumado. Por meio de decretos, criou dispositivos legais ad hoc capazes de reforçar o poder decisório da CTNBio, a fim de garantir a rápida liberação comercial de OGMs e legalizar safras ilegais de soja geneticamente modificada, plantadas por agricultores no sul do país. No mesmo ano, várias entidades do campo montaram um acampamento em

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Brasília, com mais de mil pessoas, para lutar contra a decisão do governo federal de liberar os transgênicos (ARAUJO, DOLABELLA, 2007; PELAEZ, 2010).

O debate retorna ao Legislativo e, em 2005, uma nova Lei de Biossegurança é aprovada (Lei n. 11.105/05). Para Reginaldo Minaré, assessor da Senadora Kátia Abreu, bastariam apenas algumas modificações na primeira lei para que ela se tornasse eficiente, mas o novo governo entendeu que deveria haver um novo marco regulatório. Para Minaré, o Projeto de Lei que o governo encaminhou ao Congresso dificultaria sobremaneira o desenvolvimento científico e tecnológico do país, pois neste modelo a CTNBio seria meramente um órgão opinativo. Assim, o Congresso modificou em 80% o projeto original de forma que a segunda lei reforçava o mesmo sistema regulatório, fortalecendo a CTNBio.

A mesma argumentação é reforçada por Benthien (2010). Segundo ela, no projeto proposto pelo Poder Executivo, a CTNBio seria uma instância técnica que recomendaria a aprovação ou não do OGM. Os ministérios ficariam com poderes para acatar ou não o parecer técnico da CTNBio e de requerer o licenciamento ambiental do OGM e o registro do produto. Outra instância política definiria sobre a conveniência do OGM para o país.

Segundo Araújo e Dolabella (2007), as modificações na nova Lei foram objetos de forte lobby por parte das empresas e da bancada ruralista do Congresso. Desta forma, a Lei n. 11.105/05 favoreceu, em vários aspectos, os defensores do “avanço da ciência e da tecnologia” em detrimento daqueles que pregavam o princípio da precaução: (i) deu à CTNBio competência total para tomada de decisão em relação à liberação comercial dos OGMs, delegando aos ministérios da Saúde, Meio Ambiente, e Agricultura somente a responsabilidade pelo registro e pela fiscalização de produtos; (ii) a CTNBio passou a ter poderes totais para autorizar pesquisas em OGM e estaria, apenas eventualmente, condicionada à decisão do Conselho Nacional de Biossegurança - CNBS28 para a liberação comercial; (iii) conferiu à CTNBio competência de identificar as espécies geneticamente modificadas potencialmente causadoras de significativo impacto ambiental, dispensando, assim, estudos de impacto ambiental; (iv) forneceu maior flexibilidade na liberalização dos transgênicos, elevando o número de membros da Comissão e reduzindo o quorum necessário às deliberação.

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Criada pela nova Lei de Biossegurança (Lei n. 11.105, de 24 de março de 2005), o Conselho Nacional de Biossegurança, formado por 11 Ministros (Casa Civil; Ciência e Tecnologia; Desenvolvimento Agrário; Agricultura, Pecuária e Abastecimento; Justiça; Saúde; Meio Ambiente; Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior; Relações Exteriores; Defesa; e Aquicultura e Pesca) tem por objetivo analisar, a pedido da CTNBio, os aspectos da conveniência e oportunidade socioeconômicas e do interesse nacional, os pedidos de liberação para uso comercial de OGM e seus derivados. Também decide, em última e definitiva instância, sobre os processos relativos a atividades que envolvam o uso comercial de OGM e seus derivados. Desde sua implementação o CNBS se reuniu apenas cinco vezes e em todas ela referendaram as decisões da CTNBio.

De acordo com Francisco Aragão, membro da CTNBio e pesquisador da Embrapa/Cenargem, devido à ação de quatro grupos distintos, entre eles os cientistas, a nova Lei consolidou o modelo que já deveria ter sido adotado em 1995. Para ele, o modelo da primeira Lei não seguia nem o modelo norte-americano, nem o modelo europeu. Era a soma dos dois, pois tinha como entidades regulatórias a CTNBio e a Anvisa, o Ibama e o MAPA, como decisores.

Porém, a nova Lei não atendeu às reivindicações dos grupos sociais que mantiveram firme oposição ao novo sistema regulatório. Para o Procurador Federal, Marcellus Barbosa Lima, o total alijamento do Ibama, da Anvisa e do MAPA do processo de produção, autorização e comercialização de transgênicos deu à CTNBio poder total de decisão sobre questões que se referem à biossegurança do país. Para ele, o caráter terminativo das decisões da CTNBio é repressor da investigação profunda e da defesa da sociedade.

É interessante ressaltar que antes do início do governo Lula, o PT defendia uma posição próxima aos interesses esboçados pela sociedade civil organizada, explicitamente contrária à comercialização de transgênicos no país. Essa postura refletia ligação política e ideológica do partido com movimentos sociais como a Via Campesina e o MST. O programa do PT enfatizava o risco da dependência tecnológica e econômica das empresas produtoras de sementes transgênicas e os riscos de acesso aos mercados externos que dão preferência aos produtos convencionais. Salientava, ainda, a importância de estabelecer procedimentos de controle aos cultivos clandestinos de OGM no país, bem como de estudos de impactos ambientais, toxicológicos e socioeconômicos que contemplassem a posição estratégica do país no mercado internacional de produtos agrícolas (BENTHIEN, 2010, p. 180; PELAEZ, 2010).

A modificação de postura do PT deveu-se, principalmente, em função do forte lobby da bancada ruralista no Congresso, bem como em resposta a constante pressão de representantes de empresas multinacionais. O governo percebeu sua dependência em relação à bancada ruralista que, maioria no Congresso, manteve uma forte coalizão objetivando a sustentação de seus interesses (BENTHIEN, 2010, p. 179 - 180; LISBOA, 2007; PELAEZ, 2010).

Na busca pela manutenção da governabilidade por meio do não rompimento com suas alianças políticas, o governo Lula optou por dar uma continuidade à postura política do governo de Fernando Henrique Cardoso em relação aos transgênicos. A diferença entre ambos está na arena onde as disputas tomaram espaço. Enquanto no governo do PSDB as disputas ocorriam principalmente no Judiciário, no governo do PT elas tomaram maior

espaço no Legislativo e no Executivo, principalmente durante a elaboração e a regulamentação da nova Lei de Biossegurança (BENTHIEN, 2010, p. 197; PELAEZ, 2010).

Observa-se, portanto, que a nova Lei de Biossegurança não conseguiu solucionar o conflito socioambiental derivado da polêmica em torno dos organismos geneticamente modificados. Ao contrário, ela favoreceu a assimetria entre as diferentes posições, tornando a CTNBio palco de fortes controvérsias. Essa assimetria também dificulta o diálogo e a problematização de questões dentro da Comissão, conforme veremos a seguir.