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2. Da revolução verde ao biocapitalismo: biotecnologia, patentes e a bioeconomia mundial

2.2 O papel das sementes na nova revolução verde

Desde a década de 1970, com o nascimento da era biotecnológica, observa-se um deslocamento das pesquisas agropecuárias das instituições públicas para as grandes empresas de biotecnologia. As empresas possuem quadros científicos mais qualificados e são mais adaptadas para enfrentar o sistema de direitos e propriedade intelectual. Devido a essas mudanças, os centros de pesquisa agronômica públicos articulam-se às grandes empresas químicas farmacêuticas e alimentícias em busca de financiamento. Os interesses dessas empresas passam, assim, a comandar a agenda da pesquisa e a conduzir a atual revolução biotecnológica (JUNNE, 1992; PORTO GONÇALVES, 2006, p. 103 - 104).

A indústria de sementes, que até a década de 1970 se mantinha sob uma perspectiva local, com apoio e incentivos públicos, transforma-se paulatinamente. No decorrer dos anos 1980 e 1990, num contexto de políticas econômicas neoliberais, iniciou- se um processo de internacionalização das empresas agrícolas privadas, acompanhado por fusões e aquisições empresariais, inclusive entre setores tradicionalmente distintos (JOLY; HERVIEU, 2003; BENTHIEN, 2010, p. 68).

A conformação desses grupos empresariais apoiou-se fortemente na constituição do sistema de propriedade intelectual. Segundo Joly e Hervieu (2003, p. 10) o sistema de propriedade intelectual nasce a partir de uma grande pressão e lobby para promover um sistema extensivo de patentes para as biotecnologias agrícolas. Para as empresas de biotecnologia, o potencial revolucionário dessas tecnologias, “fonte de progresso inestimável”, não poderiam ser valorizadas sem que os investimentos em pesquisa fossem protegidos por um forte sistema de patentes.

A transformação da indústria de sementes é acompanhada pela privatização das pesquisas, com forte ênfase no mercado biotecnológico. No plano internacional, a crescente privatização da pesquisa agropecuária repercute no papel que tradicionalmente coube aos grandes centros de pesquisa nacionais, como a Embrapa, durante a revolução verde. Nos países em desenvolvimento, o processo de privatização dos centros de pesquisa ocorre a partir de duas vertentes: (i) um movimento de privatização da pesquisa nacional que tende a ser fortalecido pela falta de estrutura e de verba no setor público, resultando em parcerias com a esfera privada como única forma de dar continuidade às suas atribuições e pesquisas e; (ii) a expectativa de obtenção de inovações por meio da transferência de tecnologia produzida nas empresas de biotecnologia para os centros de pesquisa nacionais (TRIGUEIRO, 2002, p. 42; BENTHIEN, 2010, p. 87).

Conforme salienta Wilkinson e Castelli (2000), a liberação de cultivos transgênicos em escala comercial a partir da década de 1990 gerou uma mudança estrutural na constituição do mercado de sementes, recebendo um impulso ainda maior pelo estabelecimento de normas de propriedade intelectual sobre as novas formas de vida. Diversas empresas são remodeladas pelas fusões e aquisições empresariais, fortalecendo o papel da iniciativa privada nas pesquisas em biotecnologia num contexto neoliberal de restrição da ação do Estado.

Neste processo de fusões, a indústria de sementes é incorporada às empresas de outros setores, como o setor farmacêutico, químico e alimentício, gerando um aumento de pesquisas e produtos agrícolas. Esse processo reflete uma convergência entre setores distintos de pesquisa científica que inexistia anteriormente.

Para Wilkinson e Castelli (2000), as empresas originárias do setor farmacêutico buscaram diversificar seus produtos focando na biotecnologia como instrumento estratégico. Ao mesmo tempo, as empresas agroquímicas voltaram seus interesses para a diversificação, num novo campo de possibilidades e mercados emergentes para seus produtos. Também a indústria alimentícia vê sua penetração no mercado agrícola como uma estratégia de expansão comercial, já que a venda concomitante de matéria-prima (grãos) e produtos industrializados diminui seus custos com a compra de matéria-prima. Devido a estes fatores, iniciou-se a internacionalização e transnacionalização empresarial no setor agrícola.

Essa crescente industrialização da agricultura revela uma nova integração de segmentos industriais à montante e à jusante do processo agrícola. A semente, que já vinha sendo transformada em mercadoria passa, com a introdução da transgenia, a se constituir como o ponto central e estratégico da agricultura capitalista. A produção de sementes transgênicas tem por objetivo central a captura dos benefícios derivados da inovação tecnológica por parte das corporações transnacionais (SALLES-FILHO, 1993; CHRISTOFFOLI, 2009; REDES, 2003; KLOPPENBURG, 2004).

As sementes transgênicas afetaram significativamente o setor agrícola tanto pela alta especialização tecnológica como pela consolidação do processo de commodificação de elementos considerados até então naturais. A semente não aparece apenas como portadora de capacidade natural de germinação, mas como elemento do ciclo de valorização do capital na agricultura. No caso dos OGMs, a semente torna-se veículo de promoção e apropriação de parte do valor do trabalho gerado pelo agricultor, que se vê preso ao

monopólio capitalista sobre a informação genética contida na semente-mercadoria (CHRISTOFFOLI, 2009).

Apesar do potencial de desenvolver biotecnologias adaptadas às condições de estresse ou sementes-fármacos as empresas optam por desenvolver variedades protegidas contra herbicidas e pesticidas produzidos por elas próprias. Desta forma, obrigam o produtor a comprar o pacote tecnológico associado à semente, beneficiando seus interesses específicos (PORTO GONÇALVES, 2006, p. 104 - 105).

Outro fator relevante é que as sementes transgênicas não poderiam ser produzidas sem a modificação de sementes selecionadas pelos agricultores para uso na agricultura convencional. Contudo, as proteções aos direitos de propriedade intelectual podem ser concedidas às sementes transgênicas, mas não às sementes melhoradas tradicionalmente. Na falta de tais proteções, as sementes dos agricultores são consideradas parte do patrimônio comum da humanidade, e podem ser legalmente apropriadas, sem consulta ou compensação. Aqueles que desenvolvem as sementes transgênicas apropriam-se livremente das sementes dos agricultores, mas o agricultor não tem livre acesso a sementes transgênicas. Desta forma, graças aos direitos de propriedade intelectual, quem lucra é, principalmente, a bioindústria (LACEY, 2001).

O argumento que justifica o patenteamento das sementes transgênicas, e não das sementes melhoradas tradicionalmente, consiste no fato de que as sementes transgênicas incorporam conhecimento científico. Em virtude disto, elas podem satisfazer os critérios padrões para conseguir uma patente (inventividade, aplicação industrial, suficiência de revelação) e assim tornar-se propriedade intelectual (LACEY, 2001).

Por outro lado, a introdução das sementes transgênicas no meio ambiente gera riscos de contaminação dos bancos naturais de sementes e, também, das sementes melhoradas tradicionalmente, levando os agricultores a renunciarem ao direito inalienável de conservar e de trocar suas sementes melhoradas. Desta forma, os agricultores arriscam tornarem-se dependentes do monopólio mundial da produção e comercialização das sementes.

2.3. Indústrias, fusões e patentes: como o biocapitalismo se insere na vida